Dizem (o que não é improvável) que os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras. O problema é que os piores deles nunca desistiram de tentar transformar a realidade, à custa de muitos estragos. Para sorte nossa, a plêiade desses piores sempre formou minoria, inclusive nos Compêndios de História mais engajados. Mas, para desgraça de todos e infelicidade geral, os danos suscitados foram extensos, exorbitantes e principalmente duradouros. A verdade é que um Descartes, um Kant e um Hegel (e mais um punhado de herdeiros: Marx, Gramsci & Cia.) já bastam para embaçar, mesmo que só em parte, o edifício luminoso do conhecimento. Variantes à parte, o objetivo é sempre o mesmo: destruir a realidade em favor de uma ideia, nesse pesadelo permanente de construir um “mundo melhor”.
Os historiadores da filosofia (o que é mais do que provável) costumam classificar seus biografados mediante uma série de critérios — em geral arbitrários e parciais. Os mais previsíveis opõem: realistas X racionalistas, materialistas X idealistas, otimistas X pessimistas – e alguns outros pares rimados. Mas a comparação mais inusitada costuma colocar a maioria dos transformadores do mundo, esses proverbiais “construtores de utopias e impérios”, frente e frente com o exército de uns poucos — especialmente de um só: o filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, o insigne defensor da ideia de que “vivemos no melhor dos mundos possíveis”.
Polímata, notável por sua extraordinária erudição, é coisa que admira e consterna ver o grande Leibniz reduzido a um verbete curto nos livretos de autoajuda, e reparar que até seus defensores desdobram-se em contorcionismos (e sorrisos amarelos) para justificar a máxima leibniziana tão popularizada. Afinal, num mundo marcado por aquecimento global, injustiças, desigualdades, incêndios amazônicos e até uma inusitada pandemia viral, alguém pode ter ainda a ousadia de o definir como “o melhor dos mundos possíveis”?
Lamento contrariar maiorias e unanimidades e me incluir entre os ousados: arrisco dizer que só entendendo plenamente a frase de Leibniz decifraremos a chave capaz de abrir a porta para o mundo moderno. E, desde já, o melhor caminho é: otimistas e pessimistas, tratem de deixar de lado a pergunta sobre a quantidade de líquido no copo – meio cheio ou meio vazio? – e se preocupem em saber, afinal, que sabor ele tem.
Um Leibniz para chamar de seu
Em qualquer enciclopédia básica, o verbete Leibniz informa que o ilustre alemão nascido em Leipzig (1646-1716), foi matemático, engenheiro, filósofo, lógico, geólogo e (para encurtar a lista) um historiador sagaz e diplomata astuto. Deixou importantes contribuições para a física e para a tecnologia — além de antecipar uma série de noções que só viriam a se consolidar muito mais tarde em diversas outras áreas: filosofia, teoria das probabilidades, biologia, medicina, geologia, psicologia, linguística – e, precocemente, até informática.
Leibniz escreveu tratados sobre filosofia, política, direito, ética, teologia, história e filologia. E, sem exagerar, contribuiu inclusive para o campo da biblioteconomia: quando atuou como superintendente da biblioteca Wolfenbüttel (na Alemanha), desenvolveu um sistema de catalogação que serviria de guia para muitas das maiores bibliotecas da Europa. Escreveu em várias línguas, sobretudo em latim, francês e alemão. Foi também um um educador entusiasta, cuja capacidade empreendedora ajudou a fundar numerosas instituições de ensino pela Europa.
Por existirem “tantos Leibniz” no meio acadêmico, é costume que eruditos apelem para seus interesses imediatos na hora de escolher um Leibniz para chamar de “seu”. Mas o fato de que este currículo invejável e variado não livrou nosso polímata de ganhar a etiqueta majoritária de pensador otimista (mais uma vez, a famigerada frase…) já é motivo suficiente para deixarmos os outros aspectos de lado – e, em nosso breve artigo, tratarmos exatamente deste.
A Cruz ainda no centro
As datas costumam variar, e também alguns nomes próprios — mas quase todos concordam em definir o Renascimento como um período iniciado no século XV ou XVI e que trouxe grande progresso técnico e material — e, consequentemente, um grande desenvolvimento econômico, político, artístico, espiritual e cultural. Entre as presumíveis conquistas, todos destacam o fim do “obscurantismo religioso” e o nascimento da racionalidade científica.
A filosofia (nosso foco aqui) logo tratou de se adaptar aos “novos tempos”, cuidando de colocar o homem no centro das discussões e ressaltar as possibilidades “objetivas” da técnica, no lugar antes ocupado pela teologia. A Idade das Trevas cedeu terreno à Era das Luzes, como diziam os então “novos pensadores”– passando ao largo de alguns detalhes “menores”, como por exemplo: chamar de Trevas uma época onde existiram a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, o monumento poético chamado A Divina Comédia e a magnitude das catedrais góticas. Em contraposição, as Luzes trataram de oferecer a Revolução Francesa e sua emblemática guilhotina.
Haveria ainda muito a dizer sobre este retrato caricato e mentiroso de uma etapa histórica tão fértil — a passagem da Idade Média à Renascença. Mas basta ressaltar que, no centro de tudo isso, teremos sempre uma questão incontornável: mais do que apenas criticado em teoria, o Deus Criador e Juiz estava ameaçado de perder o lugar matricial no conhecimento e no comportamento moral dos homens. Neste novo ambiente cognitivo, as Ciências ganhavam “letra maiúscula” e conteúdo técnico-teórico, jogando para escanteio os temas milenares que Aristóteles e Santo Tomás de Aquino consolidaram e deixaram de herança, como pilares fundantes da Civilização Ocidental.
Felizmente, alguns pensadores resistiam — com destaque especial para Sir Thomas Moore e Gottfried Wilhelm Leibniz.
Pois é precisamente neste sentido que Leibniz situa seu famoso enunciado de que “vivemos no melhor dos mundos possíveis” — defendido e explicado em mais de um livro, mas sobretudo nos volumes de Teodiceia e no breve e certeiro Discurso de Metafísica.
Longe de qualquer arroubo de um Doutor Pangloss (o personagem que Voltaire criou para satirizá-lo), quando Leibniz afirma, logo na abertura de Discurso…, que “Deus é um ser absolutamente perfeito” e que “existem várias perfeições diferentes e Deus as possui todas ao mesmo tempo”, está reconhecendo com humildade cristã a presença de um Criador que sabe o que está fazendo — e que, por Misericórdia, faz sempre o melhor.
Precocidade reconhecida, e alguns detratores
O mais fascinante e desafiador na biografia de Leibniz é que ele não desprezou as pesquisas matemáticas e lógicas da época para privilegiar as reflexões teológicas. Para espanto nos simplistas, todos esses assuntos dividiam espaço em seu espírito Um resumo de sua biografia dá conta de sua pluralidade precoce:
* Em 1666 (tinha apenas 20 anos) Leibniz se formou em direito, em Nuremberg (uma proeza para a época).
* Em 1668, recusaram-lhe o grau de doutor, alegando que era “muito jovem”.
* Em 1676 (antes de completar 30 anos), já tinha desenvolvido algumas fórmulas elementares dos cálculos diferencial e integral — e descoberto o teorema fundamental do cálculo, só publicado em 11 de julho de 1677. (De 1677 e 1704, o “cálculo leibniziano”, como ficou conhecido, ganhou força em todo o continente europeu.
* Em 1685, criou uma máquina de calcular, considerada superior à de Blaise Pascal (porque realizava as quatro operações).
Mas se o nome de Leibniz desfruta até hoje de notoriedade e respeito reverencial na área das “ciências exatas”, o mesmo nunca se pôde dizer de seu pensamento filosófico e religioso — que já na época enfrentou grande resistência, num ambiente em que as fórmulas matemáticas, os cálculos e as máquinas de calcular pretendiam dar conta de tudo, e não apenas das questões do mundo físico.
Justamente porque, nesse mister, Leibniz constituía um ponto fora da curva: nele, Razão e Fé não se opunham, mas se complementavam e se justificavam, num sistema sofisticado e instigante. Sem temer a rejeição de seus pares, ele incorporou elementos fundamentais da filosofia escolástica que os homens do seu século desprezavam e já consideravam extinta e superada. Por conta disso, Leibniz amargou o exílio dentro da própria pátria — sobretudo, o exílio temporal.
Mas há dois outros motivos que atrapalham a “posteridade” de Leibniz — quer dizer, seu legado — fazendo dele até hoje uma espécie de “peixe fora d’água” na História da Filosofia. Avesso ao ambiente das Universidades, o filósofo foi ao mesmo tempo um ativo semeador de Academias científicas independentes, onde a liberdade de pesquisa não se submetessem à hierarquia dos diplomas e das convenções — e isso, convenhamos, não é muito bem visto entre os doutores da Cátedra...
Além disso, o filósofo de Leipzig nunca se preocupou em sistematizar sua filosofia em livros seriados: embora tenha escrito copiosamente, era difícil (e até hoje o é) extrair um método filosófico estruturado de tantos e tantos opúsculos, cartas e volumes que publicou ou deixou inéditos. Em suma, suas principais contribuições foram redigidas de forma nada meticulosa em francês ou latim, e poucas em seu alemão natal.
Só aos 40 anos ele se preocupou em escrever a primeira exposição organizada de seu pensamento: o brilhante mas breve (cerca de 100 páginas) Discurso de Metafísica. Nele, o mestre deixa explícita sua dívida espiritual com a escolástica — e sua absoluta independência em relação aos cartesianos que desde então começavam a dominar o mundo, transformando-o para pior.
Anacrônico em vida, Leibniz felizmente sobrevive, e de várias maneiras: não apenas nos gabinetes de engenharia e de cálculo – mas sobretudo no coração daqueles que creem serenamente viver no melhor dos mundos (este) que Deus criou e conduz. Só duram no tempo as coisas que não pertenceram ao tempo.
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