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Leis que querem acabar com o abuso sexual online colidem com exigências de privacidade tecnológica

Leis contrárias ao abuso sexual infantil online precisam levar em conta o direito à privacidade dos usuários (Foto: Caleb Woods / Unsplash)

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Em 2022, foram registadas na União Europeia 1,5 milhão de denúncias alertando sobre conteúdos de abuso sexual de menores na rede. No mesmo ano, o Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas nos Estados Unidos recebeu mais de 32 milhões de informações sobre supostos casos de exploração e abuso sexual de menores através do seu canal de denúncia online.

São dados que revelam a magnitude de um problema que a imensidão da rede tornou impossível resolver. A situação motivou uma petição de apelo à ação das Nações Unidas (ONU) num manifesto assinado por 71 Estados que enfatizava a urgência de tomar medidas para proteger os menores.

No entanto, as tentativas dos governos de criar legislação para detectar e denunciar abusos têm sido confrontadas pelos defensores da privacidade, que afirmam que, por mais louvável que seja o objetivo de proteger os menores, abre uma lacuna que pode ser utilizada para outros fins.

O sistema de criptografia é a galinha dos ovos de ouro da privacidade na Internet. A criptografia ponta a ponta garante que apenas os destinatários das mensagens possam acessar seus dados. Isso exclui não apenas usuários terceiros, mas também o próprio provedor de serviços de mensagens.

Embora os dados sobre abuso sexual online revelem a urgência de encontrar uma solução, a possibilidade de comprometimento do sistema de criptografia coloca as empresas de tecnologia contra isso.

O que os defensores da privacidade afirmam é que, quando se trata de criptografia, não há nuances: ou ela é completa ou não é segura. Não se pode abrir uma porta na criptografia apenas para detectar o grooming [aliciamento e assédio sexual virtual de menor] ou distribuição de material pornográfico. Uma vez aberto, está aberto a tudo. E para todos. Se os serviços de segurança conseguem ter acesso, outros agentes com interesses menos nobres também podem.

Portanto, qualquer proposta que tente olhar para o conteúdo que é distribuído nas aplicações que utilizam esta tecnologia é recebida com muito ceticismo e defensiva.

Propostas controversas em cima da mesa

No Reino Unido, está em disputa a "Lei de Segurança Online", que inclui uma cláusula que permite ao Ofcom, o organismo nacional independente que regula a indústria das comunicações, exigir que as empresas instalem tecnologia para escanear mensagens em busca de material de abuso infantil.

Apple, Signal e WhatsApp são algumas das empresas tecnológicas que manifestaram publicamente o seu desacordo com esta proposta. Estas empresas garantiram que preferem deixar de prestar seus serviços a terem que cumprir a regulamentação.

Nos Estados Unidos, por sua vez, a proposta legislativa conhecida como EARN IT [ganhe isso, em livre tradução] gerou polêmica semelhante ao discutir a possibilidade de responsabilizar as plataformas pelas consequências de um caso de abuso sexual infantil, se for considerado que não fizeram o suficiente para proteger a criança.

Vozes críticas denunciam que, se a responsabilidade recair sobre as plataformas, estas adotarão todos os meios necessários — como a digitalização e a filtragem dos conteúdos dos seus utilizadores — para mitigar o risco. No final, os próprios aplicativos invadiriam constantemente a privacidade de seus usuários, ressaltam.

Por seu lado, a União Europeia trabalha uma proposta semelhante à do Reino Unido e que pretende passar de um quadro em que as ações realizadas pelas plataformas são voluntárias para um regime obrigatório com consequências para quem não cumpre as medidas.

Os rascunhos provocaram uma reação semelhante às dos dois países anteriores. Mais de 300 engenheiros de 33 países assinaram uma carta aberta para pedir à UE que repensasse a forma de lidar com esta questão. Na carta, os especialistas afirmam que a tecnologia atual não permite a detecção de material de abuso infantil sem um número significativo de falsos positivos e, além disso, a segurança e a privacidade de todos os outros utilizadores ficam comprometidas.

O setor de tecnologia deve assumir sua responsabilidade

Tendo em conta este contexto, a tarefa dos legisladores não é fácil. Por um lado, os números relativos ao abuso sexual de menores são prementes. Por outro lado, a solução parece um quebra-cabeça onde falta sempre a mesma peça: como proteger os menores sem colocar em risco a segurança de todos os usuários.

Empresas de tecnologia e defensores da privacidade criticam as propostas, mas as plataformas também deveriam assumir a responsabilidade de serem parte do problema.

Um relatório da pesquisadora Laura Draper aponta que, embora seja verdade que a privacidade é um direito que não pode ser comprometido, dois aspectos relevantes devem ser levados em conta quando se discute o papel que ela desempenha na legislação.

Em primeiro lugar, embora a privacidade do utilizador em geral deva fazer parte da análise, o interesse compensatório de privacidade da criança abusada também deve ser tido em conta. É uma grave invasão de privacidade quando criminosos postam essas imagens na Internet e as redistribuem.

Em segundo lugar, o próprio conceito de privacidade exige uma análise mais matizada, segundo a pesquisadora. A interpretação mais estrita aplicada às comunicações tende a situar a privacidade como um valor absoluto que exclui o olhar de todas as partes, exceto do remetente e do destinatário.

No entanto, poderia ser feita uma avaliação mais matizada que concebe a privacidade como o direito de ser protegido contra a intervenção excessiva do governo ou o acesso de intervenientes maliciosos, como hackers criminosos ou empresas privadas.

Ao tentar equilibrar a privacidade do usuário com o combate ao abuso sexual online, os responsáveis políticos precisam de ser transparentes na definição de privacidade, conclui Draper.

Quem defende a última aproximação aponta que existem vários cenários para além do mundo online em que a pessoa entende que alguns dos direitos que detém podem estar comprometidos por uma questão de segurança. Isto é expresso, por exemplo, por alguns advogados em declarações recolhidas pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que indicam que os juízes têm o direito de decidir quando a proteção das vítimas é um interesse superior ao da privacidade.

Por exemplo, quando você viaja, você sabe que existe a possibilidade de sua bagagem seja revistada para evitar situações de risco no aeroporto. Além disso, embora seja garantido o direito à propriedade privada, uma ordem judicial pode permitir a entrada e busca em uma propriedade devido a alguma situação excepcional.

Os defensores de uma legislação mais intervencionista também salientam que, embora a tecnologia não tenha criado o crime, ampliou o abuso, razão pela qual é a própria tecnologia que deve contribuir para a solução desta questão.

Algumas organizações defendem que a proteção das crianças e a garantia da privacidade não são irreconciliáveis. A Internet Watch Foundation (IWF) [Fundação para Observação da Intenet, em livre tradução], por exemplo, afirma que já existem exemplos de tecnologias que podem ser implementadas para garantir que materiais conhecidos de abuso sexual infantil não possam ser partilhados em ambientes encriptados de ponta a ponta.

A organização garante que, embora o prestador de serviços de comunicação possa perder a capacidade de “ver” os conteúdos que passam pelos seus canais, pode intervir quando alguém carrega os conteúdos.

Quando um arquivo é carregado, um único fluxo de números pode ser convertido em um código digital. As empresas podem comparar esse código com códigos gerados por imagens e vídeos de abuso sexual infantil em um processo conhecido como hashing. É um processo automatizado e deve funcionar da mesma forma para serviços criptografados, afirma a IWF.

“Ao enviar arquivos para uma plataforma criptografada de ponta a ponta, não há razão para que eles não devam ser verificados e bloqueados se corresponderem à impressão digital ou ao hash de imagens conhecidas de abuso sexual infantil. Seria automatizado e não intrusivo", diz ele.

O que é certo é que, com a distribuição de cada vez mais material de abuso sexual infantil e cada vez mais extremo, é urgente tomar medidas. A investigação da IWF mostra que, em 2022, um número recorde de 51.369 páginas web foram removidas ou bloqueadas pela organização com material de categoria A sobre abuso sexual de menores. Este é o tipo de imagem mais grave e pode incluir os piores tipos de abuso sexual, incluindo crianças, bebês e até recém-nascidos.

Embora os legisladores tenham de encontrar a fórmula mais segura, também não podem cruzar os braços e acomodar-se numa posição derrotista que pressupõe que nada pode ser feito.

Copyright © 2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Las leyes que quieren acabar con el abuso sexual «online» chocan con las tecnológicas

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