"Aqui está uma forma apropriada de conversar com crianças pequenas sobre gênero: 'os pais adivinham o sexo do bebê com base nos genitais e às vezes eles erram", diz uma professora de cabelos cor-de-rosa, em um vídeo de pouco mais de um minuto publicado em uma conta no TikTok, rede social chinesa que conta com mais de um bilhão de usuários no mundo.
Em outra publicação, um indivíduo explica que pessoas que são contra o aborto “parecem realmente interessadas em descobrir o sexo de seus filhos bem cedo” por causa da “ideia cultural de que gênero confere humanidade”. A humanização, portanto, impediria a interrupção da gravidez.
Estes e outros vídeos compõem o acervo da página intitulada Libs of TikTok (“Progressistas do TikTok”, em tradução livre), protagonista das mais recentes disputas de narrativas que dão forma à “guerra cultural” nos Estados Unidos. Criada em novembro de 2020, o objetivo da página, presente no Twitter, no Instagram, no YouTube e, mais recentemente, no Substack, é divulgar publicações feitas por professores e educadores adeptos da teoria queer, segundo a qual toda a sexualidade humana é resultado de construções sociais arbitrárias e opressoras. O conteúdo é coletado em publicações feitas pelos próprios influenciadores em perfis abertos.
Antes de chegar às manchetes por causa de uma reportagem do The Washington Post, o Libs of TikTok angariou fãs entre influenciadores conservadores e progressistas críticos à cultura “woke”, que inclui adeptos das teorias de “desconstrução” dos gêneros. “Libs of TikTok é uma das melhores páginas já criadas na história”, elogiou o apresentador Joe Rogan. Vídeos divulgados pela página foram amplamente repercutidos pela Fox News, pelo The Daily Wire e outros veículos conservadores, alguns com consequências que extrapolaram o ambiente virtual: há relatos de professores que foram demitidos ou tomaram advertências depois que seus vídeos viralizaram na internet.
Isto teria sido suficiente para que a repórter Taylor Lorenz, do The Post, justificasse a cobertura do que chamou de “um poderoso influenciador de mídia social multiplataforma, espalhando o sentimento anti-LGBTQ+ e alimentando a máquina de indignação da mídia de direita”. A reportagem, publicada no último dia 19, dá a entender que a página serve apenas à viralização de forma distorcida e exagerada de conteúdo privado produzido por professores LGTB aleatórios sem nenhuma má intenção.
A realidade é bem mais complexa. Um exemplo é o caso do professor Tyler Wrynn, que pediu demissão após a repercussão negativa a um vídeo publicado no TikTok que foi parar na página, descrito pela matéria como “uma expressão de orgulho e amor por seus alunos LGBTQ”. As palavras de Wrynn, na verdade, foram: “se seus pais não amam e aceitam você por quem você é neste Natal, f*da-se, eu sou seu pai agora”. "Isso (a exposição do vídeo) certamente contribui para a guerra cultural, mas o mesmo acontece com a afirmação direta de que os professores devem suplantar o papel dos pais", avalia o analista Bill Zeiser, em artigo para a revista The Spectator.
Há que se ponderar que a conta já promoveu conteúdos falsos, como uma publicação alegando que uma escola americana havia instalado uma caixa de areia no banheiro para estudantes que se identificavam sexualmente como gatos. Outros, na avaliação da jornalista Kat Rosenfield, em artigo para o Unherd, geram algum desconforto ao expor pessoas que são "muito jovens, ou claramente doentes, ou ambos". Mas muitas das denúncias - sobretudo as que tiveram resultados concretos - são alarmantes.
O próprio Zeiser ressalta, por exemplo, o caso do professor da Universidade Estadual de Nova York que foi dispensado depois que o Libs Of TikTok compartilhou um vídeo seu dizendo: “a noção de que [contato sexual] é errado mesmo com uma criança de um ano não é muito óbvia para mim. Há relatos em algumas culturas de avós fazendo sexo oral em bebês para acalmá-los quando estão com cólicas.”
Doxxing e perseguição
Antes a reportagem de Lorenz fosse uma mera descrição enviesada e distorcida da página: ao publicar o nome da mulher, o emprego e o endereço da responsável por trás da página, o Washington Post decidiu dobrar a aposta. Apontada como uma corretora de imóveis residente no Brooklyn, em Nova York, a criadora teve seus histórico de posicionamentos políticos descrito no artigo.
Segundo a jornalista, a mulher teria duvidado do resultado das eleições americanas e participado das manifestações de 6 de janeiro de 2021, que descambaram na invasão ao Capitólio (ainda que não haja indícios de que ela integrava o grupo que efetivamente entrou no prédio). Além disso, cometeu o “crime” de pedir a renúncia do ex-governador de Nova York, Andre Cuomo, e elogiar o governador republicano da Flórida, Ron DeSantis.
Dezenas de apoiadores e ex-apoiadores do presidente Donald Trump, jornalistas, analistas e intelectuais liberais e conservadores teceram duras críticas às ditas manifestações e mesmo aos que insistem na tese de que as eleições americanas foram fraudadas. Qualquer que seja o posicionamento político da eleitora em questão, contudo, ele é amparado pela Constituição americana, que prevê a liberdade de expressão e o direito à privacidade. A divulgação de dados pessoais como nome completo e endereço é conhecida como “doxxing”.
Com a publicação da matéria, o Washington Post deu início a uma nova enxurrada de menções ao Libs of TikTok. Dias depois da reportagem, a autora, Taylor Lorenz, afirmou ser vítima de dezenas de ameaças por parte de perfis de direita, acusação encampada por outros veículos que cobriram o caso. Em resposta, a criadora da página afirmou: "Essa psicopata apareceu nas casas de pessoas que têm o mesmo sobrenome que eu. Eu recebi dúzias de ameaças de morte, e agora ela se faz de vítima".
"Destruir a vida de cidadãos aleatórios expondo-os a um público mais amplo e hostil é um empreendimento bipartidário", lembra Kat Rosenfield, citando ocasiões nas quais jornalistas conservadores expuseram identidade e endereço de pessoas físicas por publicações polêmicas, de gravidade menor ou similar às veiculadas pelo Libs of TikTok. "Mas a prática parece particularmente nojenta quando é liderada por uma das grandes empresas do ramo. Em um exemplo de destaque, também do Washington Post, o jornal inexplicavelmente acabou com a vida de uma mulher aleatória que havia usado uma fantasia ofensiva de Halloween em uma festa dois anos antes", explica.
Além das vozes conservadores conhecidas, o caso levou jornalistas progressistas a saírem em defesa da página, a exemplo do fundador do The Intercept e colunista da Carta Capital, Glenn Greenwald. "Imagine se alguém expõe a identidade de um ativista trans que é popular no Facebook ou um ativista do Black Lives Matter com muitos seguidores no Twitter. Você acha que essas pessoas que estão defendendo Taylor Lorenz diriam 'oh, foi uma reportagem justa'? 'Isso é jornalismo de verdade'? Eles decretariam uma crise nacional de saúde mental e de liberdade de imprensa. Estariam hasteando bandeiras a meio-mastro", provocou o jornalista, reiterando que Lorenz pode, no máximo, dizer que foi vítima das mesmas táticas das quais se utilizou contra a página.
Em meio à guerra de narrativas, o Twitter @LibsOfTikTok saltou de cerca de 680 mil seguidores para a marca de um milhão, além de angariar algumas centenas de apoiadores financeiros. Ainda que haja progressistas defendendo e divulgando o perfil, boa parte da imprensa se recusa a considerar que, talvez, o sucesso da página se deva não a uma “conspiração da extrema-direita”, mas a preocupações legítimas de pessoas comuns com relação ao conteúdo que circula nas redes e o que seus criadores andam ensinando nas escolas. Tudo isso porque, como sintetiza Bill Zeiser, “o que os 'Lorenzes' do mundo mais temem é que os usuários de mídia social que não compartilham sua agenda continuem destacando o radicalismo da esquerda”.
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