Quem abriu certas redes sociais no dia 24 de agosto de 2020 terá se assustado com a volta do nome de Getúlio Vargas. Matou-se em 24 de agosto de 1954, portanto este ano não foi nenhum aniversário redondo, para ser lembrado de maneira especial. Ciro Gomes comemorou a data e homenageou o ditador.
Ao que parece, em algum canto deste Brasil, algum marqueteiro achou que era uma boa ideia que a esquerda deixasse Lula de lado, revivesse o Pai dos Pobres original, e deixasse um espaço para talvez apoiar Ciro Gomes. O que é uma mudança e tanto, já que Vargas foi o golpista e ditador mais autoritário da história do Brasil, francamente simpático ao nazifascismo, e implacável perseguidor de dissidentes. Entre estes, contavam-se tanto os comunistas quanto os integralistas.
São grandes as anomalias: um anticomunista simpático ao Eixo vira, abertamente, ícone de união da esquerda, e um coronel nordestino herdeiro de uma dinastia que remonta aos tempos coloniais é aceito como uma alternativa dentro do campo da esquerda progressista. Ao eventual leitor sulista boquiaberto, digo que a esquerda do Nordeste sempre deplorou o coronelismo, tachando-o de direitista apoiador da ditadura. Note-se que, antes de Lula, o Nordeste votava na Arena e no PFL, hoje DEM. Só acha natural o conto do coronel progressista de esquerda quem nunca tentou conhecer o Nordeste.
O que vem acontecendo com a mentalidade política brasileira nos últimos anos é um fenômeno social muito complexo. Para lançar alguma luz sobre isso, há uma leitura improvável: as Memórias de Dona Maria (Omar G, 2000), edição familiar em comemoração ao aniversário dos oitenta e nove anos de Dona Maria Cândida, uma vovozinha baiana muito católica, muito fervorosa, nascida em 1911, que se lembrava com muito orgulho de seus tempos como militante integralista.
Uma mulher emancipada em 1935
Embora o integralismo fosse mais frequente entre descendentes de italianos e no interior do estado (sobretudo na região de Jequié, que concentrou a imigração italianos na Bahia), a Dona Maria Cândida era de Salvador, de uma família mestiça de portugueses, índios e negros, sem qualquer origem imigrante. Era muito católica, morava no bairro Fazenda Garcia, e frequentava a casa de uma senhora alforriada no mesmo bairro, nascida na África, também muito católica e mãe de funcionário público. De imigrante, havia na área o merceeiro espanhol, um tipo encontradiço na Salvador do começo do século XX. Esse bairro nunca foi de ricos. O pai de Maria Cândida era um contador diplomado em comércio, e um homem muito culto. A mãe, como soíam as mulheres de então, era apenas dona de casa.
O pai era integralista. Teria ele encontrado o integralismo por causa de seus colegas italianos? Maria Cândida conta que um dia o pai chegara do trabalho com um panfleto de Plínio Salgado dado por outro contador, mas de sobrenome português. Seja como for, deixo registrado que Amilcar Baiardi, da pequena comunidade italiana de Salvador, me explicou que o pai dele, italiano, se estabeleceu aqui por ser contador, e que as firmas estrangeiras na capital costumavam contratar ragioneri (contadores) italianos, à falta de mão de obra local. Isso condiz com o fato de o futuro sogro de Maria Candida, um italiano, ser um contador residente em Salvador. Esse é um cenário de pujança mundial, anterior à crise de 29, e anterior à política xenofóbica de Vargas.
Maria Cândida, tal como o pai e o futuro sogro, e diferente da esmagadora maioria das mulheres de sua época, estudou comércio e se tornou contadora. Isto fez dela uma mulher emancipada, que não precisa de casamento para ser feliz: “Se eu não houvesse me casado com um herói com quem tive três joias que são meus filhos, diria que vivi nessa época [de trabalhadora] o melhor da minha juventude: emancipada, 23 anos, ganhava do meu trabalho, tinha bons amigos, frequentava cinemas, espetáculos teatrais e, sobretudo, cumpria os preceitos religiosos com liberdade.” Sem dúvida, era uma mentalidade rara em 1932. Excetuada a religião, tem muito mais em comum com uma feminista dos dias de hoje, do que com a de uma mulher comum, que, em caso de necessidade, pede homem a Santo Antônio, ao pastor, ou à cartomante. Frise-se que àquela época, como cantou Tom Zé, “só na volta da Igreja/ Podia comer cereja”. Ela passou sete anos trabalhando numa firma alemã. Saiu para casar, como era o costume então. Casada, uma mulher se tornava dona de casa.
Seu noivado se confundiu com a militância. Um dia, em fins de 1934, Maria Cândida e os irmãos foram levados pelo pai a uma conferência de Plínio Salgado na sede da União dos Estudantes da Bahia, que hoje é uma seção da UNE. (Em 34 a UNE não existia; seria criada pelo Estado Novo!) Lá encontrou um trio de escoteiros integralistas que ela já conhecia, dos quais um era o futuro marido. Noivaram por muitos anos.
Para noivar, Ítalo Gaudenzi, filho de italianos, foi ao pai de Maria Cândida pedir a sua mão. Após aceitar, o pai falou à filha: “Vocês têm a mesma fé religiosa, a mesma profissão, o mesmo ideal político. Só pode dar certo.” Essa conversa ocorrera na firma.
Ao chegar em casa, Maria Cândida encontra uma festinha temática de noivado: “tinha uma mesa arrumada com um acampamento em miniatura: bonecos vestidos de calças brancas e camisas verdes com o Sigma (símbolo Integralista) no braço, muito sanduíche de presunto, queijos, empadas e pastéis. Para beber, as nossas gasosas de limão e pera. Ainda na sala armou-se um palco, onde foi representada uma peça teatral. Tudo organizado por Leonor, minha irmã, também integralista.”
Essa fusão entre vida amorosa e política, hoje, é facilmente reconhecível em setores universitários de esquerda. Para encontrar famílias inteiras que casam entre si comungando da política, porém, precisaríamos recuar aos anos 70, e teríamos comunistas.
Militância estudantil reprimida
A União dos Estudantes da Bahia (UEB) era dirigida por estudantes integralistas, tinha boa articulação com a Igreja, e promoviam ações sociais voluntárias. Os integralistas se empenhavam em alfabetizar a população e um padre ligado ao movimento fazia pregações. Não muitas décadas depois, essa estrutura seria mantida, alterando-se apenas as ideologias: a UEB se sujeitaria à UNE, tornada comunista, a Igreja abrigaria a teologia da libertação, e os comunistas fariam ações educativas, aí incluso o lendário método freiriano de alfabetização. Ainda durante o noivado, Maria Cândida veria uma ditadura proibir e cassar o seu partido.
Segundo conta, os integralistas queriam chegar ao poder por vias democráticas, e em 2000 ela ainda guardava seu primeiro título de eleitor, tirado em 1936. Mas não poderia votar para presidente tão cedo, pois no ano seguinte Vargas daria mais um golpe, o do Estado Novo: Vargas então fecha o Congresso, extingue todos os partidos, acaba com a autonomia dos estados, instaura a censura prévia na imprensa, persegue e tortura opositores políticos, contando inclusive com colaboração dos nazistas para prender judeus comunistas estrangeiros.
Jovens estudantes, imbuídos de uma ideologia que julgam nobre, resolvem pegar em armas para tirar do poder tão temível ditador: são os integralistas. Tentam em vão matar Vargas, e isso serve apenas para recrudescer mais a perseguição. (Os comunistas existiam, é verdade, mas o seu nicho na década de 30 era mais militar, não estudantil. Àquela altura, os comunistas estavam combalidos pela repressão da Intentona.)
Maria Cândida e Ítalo não chegam a correr aventuras perigosas; limitam-se a ajudar fugitivos. Isso não impediu Ítalo de ser preso duas vezes: uma, pelo crime de organizar uma reunião com os colegas integralistas; outra, quando uma festa de aniversário com vários integralistas – e um suspeito de comunismo! – foi confundida com uma reunião política. Mas ela perdeu amigos para a ditadura Vargas. Numa seção intitulada “Impunidade desde 1938”, queixa-se: “Quando leio nos jornais de hoje sobre as torturas de 1964, lembro dos nossos companheiros integralistas que também sofreram nas prisões, inclusive ‘suicídios’, quando foram empurrados de certa janela da Casa de Detenção. Lembro-me dos que perderam dentes por espancamento, ferimentos por lâmina de sabres e torturas com palitos de fósforo acesos entre os dedos. Era a polícia do Sr. Felinto Müller, homem que em 9 de novembro, véspera do Golpe [do Estado Novo], esteve com Plínio Salgado, louvando a marcha dos 50 mil Camisas Verdes. Tudo isso aconteceu e tudo isso ficou impune. Hoje se dá até pensão às famílias dos mortos e desaparecidos na chamada Revolução de 1964. Acho justo, não sou contra, mas lamento pelos companheiros e suas famílias, perseguidos, presos, torturados e exilados por conta da suposta Revolução Integralista de 1938. A impunidade, ainda hoje, causa-me muito sofrimento.”
A empatia com os comunistas não é da boca pra fora. Conta que já casada, mãe de três, em sua nova casa na Piedade e vivendo uma outra ditadura, “nas passeata de protesto, muitas vezes alguns estudantes corriam para a casa 34 da Rua Direita da Piedade. Chegavam feridos, muitas vezes. Outros vinham do Rio, dirigentes estudantis, que se escondiam no 34, porque, para mim, direito de asilo é sagrado. Lembrava-me do sofrimento dos meus companheiros integralistas, apesar da diferença do ideal.” Ela asilava em casa, portanto, comunistas vindos de outras partes do Brasil. Como a conheciam? Ora, era mãe de comunistas. Uma delas era Fátima Gaudenzi, que militou por muitos anos no PCdoB.
Esquerdistas com berço integralista
A linha entre pais e filhos é visível sem grande ruptura. Menciona que sua filha Fátima integrara organizações estudantis católicas, tal como ela própria. Ora, a Juventude Universitária Católica (JUC), à qual Fátima pertenceu, tinha estreitas ligações com a Ação Popular (AP), grupo da esquerda católica responsável pelo primeiro atentado terrorista ocorrido na última ditadura, que serviu de pretexto para o AI-5. A AP terminou por fundir-se com o PCdoB. Então, por essa via quase institucional, explica-se que haja um meio cultural católico, de classe média, engajado em política, com ensino superior, que transite do integralismo para o comunismo.
O fenômeno é mais comum do que se pensa. O prefaciador do livrinho, o ex-comunista Antonio Risério, de família católica de classe média, relata que àquela época “as pessoas mais inquietas e cultas acabaram se dirigindo para o Partido Comunista e a Ação Integralista. Eram agremiações adversárias, embora, vistas de hoje, pareçam quase siamesas. Muitos, inclusive, passaram de uma para outra, a exemplo, aliás, do meu pai, que foi ligado ao PCB em Belo Horizonte, transferindo suas relações para a AIB na Bahia.” Risério é mais um para a lista, portanto.
Maria Cândida descreve toda uma cena integralista. Menciona Octávio Mangabeira, governador da Bahia de grande reputação. Ora, Octávio Mangabeira é avô de Nancy e Roberto Mangabeira Unger. Este foi professor de Obama e ministro de Lula; a irmã, menos famosa, foi guerrilheira comunista, presa e torturada pela última ditadura. O supracitado Amilcar Baiardi foi outro guerrilheiro comunista preso e torturado, filho de italiano, que começou a militância política como um nacionalista, tornou-se um militar comunista e hoje é de direita (embora contrário ao autoritarismo e à violência).
O guerrilheiro baiano mais famoso de todos, Carlos Marighella, era mais um filho de italiano. Este tampouco foi estável: após romper com o Partido Comunista, estava mais para um seguidor de Georges Sorel do que para um marxista. Sorel é um intelectual difícil de classificar, pois esse apologista explícito da violência é inspiração de comunistas, fascistas e anarquistas. O pai de Marighella era anarquista.
Por eu ser da Bahia, acabo sabendo melhor dos militantes baianos. Mas há um exemplo eloquente de São Paulo: o historiador e jornalista Hugo Studart descobriu que os neo-integralistas, em sua página na internet, mencionam “o grande jornalista Nicolau Chauí” como um dos descendentes de sírios que “militaram nas fileiras do Movimento Integralista.” Trata-se do pai de Marilena Chauí.
Digamos que existe um nicho social brasileiro que desliza fácil da esquerda para a direita, sem contudo mudar muito seu estilo político.
Palpites
Existem marcadores mais ou menos constantes para determinar se um nicho da sociedade será um militante político autoritário. Exemplos de validade mais restrita são o exército como um marcador de propensão ao comunismo, coisa que valeu da República Velha até 1964, quando os militares golpistas promoveram um expurgo; a origem italiana, na Bahia, como um marcador de propensão ao integralismo e ao comunismo.
Exemplo de marcador com validade bem mais ampla é o ensino superior de elite: por todo o país, desde que existe ensino superior, há propensão à militância autoritária. Digo “de elite” porque desde a última ditadura existem as universidades privadas focadas em diplomar apenas para o mercado de trabalho, ao contrário das públicas e das católicas. O aluno de uma universidade de prestígio está nesse nicho, mas não o de uma faculdade privada de mensalidade barata.
Outra constante ampla que podemos apontar é o perfil de classe média urbana. (Os italianos de Jequié eram comerciantes.) Dificilmente um pobretão e um camponês se tornam militantes ideológicos; quando se tornam, é porque ingressaram numa universidade de prestígio, ou em algum outro nicho (tais como a igreja na teologia da libertação, ou o exército no começo do século).
Tenho este palpite para entender a realidade brasileira: uma parte considerável da nossa classe média é autoritária, julga-se uma força moralizadora e sente-se no direito de mandar no país. A ideologia é um pretexto que pode ser trocado sem grandes traumas.
Disso não se segue que a classe média seja, em bloco, pertencente a esse nicho. Primeiro, nem todos entre nós se gabam de serem cultos; alguns querem apenas bom padrão de vida, e um nível satisfatório de cultura. Depois, nem todos os que almejam a um grau elevado de cultura se enquadram nesse perfil antiliberal e autoritário.
Aqui, deixo outro palpite: nas últimas décadas, o grosso da gente culta (ou que se pretende culta) esteve dividida facciosamente entre a universidade e o jornal. A universidade era dominada pelos antiliberais desde a sua existência, e os jornais impressos muitas vezes tinham linha editorial de fato democrática. Nos últimos anos, vivemos um desequilíbrio nesse cenário. Certos jornais tiveram uma guinada que os aproxima mais da retórica da universidade do que do seu próprio passado.
Agora, quem está no poder é gente inculta desprovida de prestígio intelectual. (Comparemos Lula a Bolsonaro: ambos são incultos, mas o primeiro tem a aura de operário, que garante um séquito de uspianos deslumbrados. Bolsonaro tem a tiracolo só Olavo de Carvalho, que, apesar de ser autoritário, não tem prestígio na universidade.) Não é de admirar, portanto, que esse nicho culto, prestigioso e autoritário se amalgame todo em uma única ideologia política, esse coronelismo progressista francamente antiliberal que vemos despontar por aí, em nome da democracia.
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