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Nos últimos 73 anos, mais de 1,5 milhão de brasileiros participaram de linchamentos no país. Se levarmos em conta só o período entre 1945 e 1998, foram mais de 2 mil vítimas. O levantamento faz parte do livro Linchamentos – A Justiça popular no Brasil escrito por José de Souza Martins, um dos mais importantes cientistas sociais do país, professor titular aposentado de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. No livro, ele mostra os motivos que fazem esse fenômeno tão violento e rápido crescer cada vez mais. Em entrevista à Gazeta do Povo, Martins ressalta que a tendência é que linchamentos aumentem em razão da falta de confiança nas instituições públicas. Confira os principais trechos da conversa com José de Souza Martins:

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Por que não há dados oficiais sobre linchamentos?

Linchamento não é crime. Não consta no código penal. Claro que é crime se houver homicídio, morte, ferimento, mas entra em outro capítulo. No trabalho que analisei no livro são 2.028 linchamentos num período não muito extenso [entre 1945 e 1998]. Além disso, em um segundo artigo que eu organizei, cataloguei mais de 2.500 linchamentos até 2014. Então, há registrado alguma coisa em torno de 4.500 linchamentos.

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Esse fenômeno está ligado à escolaridade, renda?

Não. É uma coisa puramente irracional. Os primeiros que escreveram sobre isso no Brasil há pelo menos 30 anos tinham poucos dados e chegaram a afirmar que a vítima principal era o negro e o pobre, fazendo supor que quem linchava era o rico. Não tem nada disso.

E o perfil do linchador?

Um linchamento ocorre com a massa. Então não há mínima condição de ver nada sobre o perfil. Na rua, alguém rouba uma velhinha. A multidão se enfurece e vai em cima. É rápido. Não dura mais que vinte minutos. É quem tá lá. Pode ser qualquer pessoa parecida com a gente. Consegui separar esse grupo [como no caso da velhinha] e outro que é linchamento comunitário. O perfil então é de famílias vizinhas. Mas não é tão comunitário assim. Ele é no modo como é feito, mas não quer dizer que as pessoas tenham identidade entre si.

Quem são as vítimas?

A imensa maioria é de homens. Mais ou menos 5% são de mulheres. Até porque, por exemplo, o estupro é um dos crimes que motivam linchamento. Ao mesmo tempo, há uma proporção alta de roubo, que também na maioria é praticado por homens. Há, no entanto, mais de 100 mulheres que foram vitimadas. Em geral porque estavam no lugar errado, na hora errada.

A vontade de linchar está ligada ao justiçamento?

Varia de país para país. Em Moçambique a motivação é cultural. No Brasil é muito evidente a falta de confiança nas instituições. As pessoas sabem que, se o sujeito for preso, ele vai acabar sendo solto rapidamente, vão protelar não sei quanto tempo o processo e ele acaba saindo livre. O linchamento é um crime auto defensivo. Acontece com alguém que se envolve naquilo pensando em defender a sociedade. Claro, há uma margem pequena que não. Mas trata-se de uma população que tem medo e não tem confiança na polícia nem na Justiça.

Nesses casos a polícia evita muitas mortes?

Muitas vezes as polícias são acusadas de serem até coniventes em casos de linchamento, mas não é verdade. A pesquisa mostrou que entre 90% e 95% dos salvamentos foram os policiais que fizeram. Existe um movimento de linchamento, mas também há o que chamo de movimento contra linchamento. São pessoas que presenciam o perigo de alguém ser linchado e imediatamente ligam para polícia. E não raro policiais são agredidos por linchadores.

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Há muitas pessoas identificadas e punidas?

A taxa é baixíssima. A punição ficou mais fácil nos últimos tempos porque virou mania filmar o ato de linchar. Foi o que permitiu identificar os linchadores do caso Guarujá [uma mulher foi espancada até a morte no litoral paulista]. Aí a polícia pega e identifica, processa. No caso Guarujá, 20 enfrentam processo por homicídio.

O sentimento de grupo colabora para a prática?

O que faz diferir uma violência praticada individualmente do linchamento é que o linchamento é motivado por um impulso. As pessoas recebem a notícia, ficam indignadas, se enfurecem e vão. Quando percebem já estão envolvidas em um assassinato. É completamente irracional. A pessoa fica transfigurada. Não é o individuo que lincha, é a multidão e ela tem outra personalidade. É um ser coletivo de duração muito transitória. Houve um caso no Rio. Quando a polícia chegou, havia uma velhinha em cima do cadáver tentando arrancar os olhos da vítima com uma colher. A polícia tentou tirá-la e não conseguia. Ela ficou muito mais forte que os policiais.

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Não há um sentimento de cumplicidade entre linchadores?

Não. Ninguém individualmente é responsável pela morte do linchado. Um atirou uma pedra, outro paulada, chute. Ninguém fez nada que decidiu a morte da pessoa. Como se fosse uma loteria. É um monte de atos aleatórios que não constituem a responsabilidade individual e nem a cumplicidade. Muitas vezes elas nem se conhecem.

Vivemos um período de pico de linchamentos?

Os linchamentos estão crescendo. Começaram a crescer logo depois da ditadura. Houve um surto. Depois teve avanços e recuos. Começaram a crescer de novo. Até as manifestações de junho de 2013 estávamos com quatro linchamentos por semana no Brasil. Depois disso pulou para uma tentativa ou linchamento por dia. Os linchamentos ocorrem historicamente por surtos. É uma onda, mas recua. O caso brasileiro é muito anômalo e intriga porque não recua.

A tendência é aumentar em razão do aumento da falta de confiança nas instituições?

Sim. Acho que via acontecer isso. Até porque está se espalhando. Eles estavam concentrados 75% em São Paulo, onde está a região metropolitana que mais lincha no país, depois Salvador e depois Rio de Janeiro. Agora, nos últimos anos vem crescendo no norte e no nordeste do brasil. Os linchamentos tendem a ocorrer nas grandes cidades já estabelecidas em bairros novos, onde pessoas não se conhecem e nas regiões novas.

Como é na Região Sul?

É a região que menos lincha. Cerca de 5% dos casos, mas é onde são mais violentos. Calculei o índice de crueldade. Isso ocorre na forma de matar a vítima. Há mais componentes de agressão como paulada, pedrada, facada. Claro, não é todo linchamento que termina assim. Se a multidão não for controlada ela vai até o fim, sem importar se pessoa inocente ou não.

No Sul, as instituições têm mais confiança e, por isso, há menos linchamentos?

A população tem menos confiança. Elas confiam no trivial, mas não lincham por qualquer bobagem. Quando se propõem vão até o fim.

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O senhor tem ideia de quantas pessoas já participaram de linchamentos no Brasil?

Nos últimos 60 anos, pelo menos um milhão de pessoas. Com dados mais recentes arrisco a dizer que fica entre um milhão e um milhão e meio.

O brasileiro parece ser a favor do linchamento?

O que acontece é que muitos são a favor da pena de morte. Isso é um desdobramento da mesma mentalidade que está por trás do linchamento. Não quer dizer que elas sejam favoráveis ao linchamento.