O código penal brasileiro não prevê a pena capital, mas eventualmente nos deparamos com casos em que um crime é punido com a morte, como o que ocorreu na terça-feira (7) em um ponto de ônibus da Zona Leste de São Paulo, quando um homem matou a ex-companheira a facadas e na sequência, quando tentou fugir, foi cercado e linchado por pessoas que presenciaram o crime. Para os que participaram do ato de violência, foi feita a justiça popular: o assassino também estava morto. Para a polícia, um homicídio a ser investigado.
Nossas Convicções
Situações como essa são recorrentes no Brasil há muito tempo. Para Ariadne Natal, socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP (Universidade de São Paulo), existe uma percepção torta de que os linchamentos sejam uma reação natural a algum crime que foi cometido anteriormente, uma forma de defesa pessoal ou coletiva.
Com a popularização dos smartphones e vídeos, a identificação dos envolvidos ficou mais fácil, mas é um crime que, por conter múltiplos autores, é difícil de ser resolvido pela polícia, o que gera uma sensação de impunidade.
Nesta entrevista, Natal, que estudou dados sobre linchamentos que ocorreram no Brasil entre os anos 1980 e 2009, explica de que forma a justiça brasileira enxerga estes atos de violência, por que poucos agressores são condenados e muitos casos são invisibilizados.
Gazeta do Povo — O que caracteriza um linchamento?
Ariadne Natal — A definição é fluida, tem uma literatura internacional que é referência. O linchamento como um fenômeno não algo exclusivamente brasileiro, acontece em outros lugares do mundo, como na África, nos Estados Unidos, na América Latina e geralmente a definição pode variar de acordo com o local onde acontece.
Aqui no Brasil o linchamento se caracteriza em ações que tem como autores três ou mais pessoas que praticam ou tem intenção de praticar a violência, que cometem agressão física, tentativa de homicídio ou homicídio contra uma pessoa que é acusada de cometer um crime. Existe uma intenção de fazer justiça com as próprias mãos.
No geral, parte de uma ação que é espontânea, não há organização prévia ou posterior. Além disso, tem como característica acontecer em locais públicos, visíveis, geralmente durante o dia e as pessoas não tem preocupação em esconder a identidade.
O que leva uma pessoa a cometer esse ato de violência?
É um tipo de ação que parte de uma indignação, de uma percepção de vulnerabilidade pessoal ou comunitária. As pessoas percebem a criminalidade como um problema e veem o linchamento como uma possibilidade de reagir, a maioria delas alega que se envolve nesse tipo de ação com a intenção de restabelecer a ordem.
No momento aquilo não é percebido como um crime em si, e sim como uma reação “natural” ao crime cometido anteriormente e restabelecimento da ordem.
Há um acordo tácito entre os envolvidos, que acreditam que estão ajudando a solucionar o problema da criminalidade, até por isso não há preocupação em esconder identidade.
Por que os participantes acreditam que o linchamento seja uma forma de justiça?
A ideia de fundo é na verdade uma vingança que se traveste de justiça, porque para os participantes é uma ação que restabelece a ordem quase que automaticamente.
Então aqueles que cometem esse tipo de ação tomam o papel do Estado, ou seja, “cumprem”, em tese, as funções de acusação, julgamento e execução da pena, tudo em poucos segundos.
Não há papel do mediador, que é o do Estado.
Não há um respeito aos processos que são esperados, então a chance de cometer uma injustiça é muito grande, existe, em muitos casos, uma punição que é desproporcional ao crime cometido, por exemplo, diante de um roubo uma pessoa pode ser morta. É uma forma de dar resposta, mas é forma totalmente torta.
Existe uma sensação de impunidade entre as pessoas que cometem esse crime?
Este tipo de crime é difícil de ser esclarecido pela polícia e pelas autoridades competentes, porque a nossa Justiça trabalha com a ideia de individualização das responsabilidades. As imagens de um linchamento, em vídeo, são um fenômeno recente, antigamente não tinha esse tipo de registro então era quase impossível ver quem tinha participado e a contribuição de cada um naquela ação.
Hoje as imagens maximizam as chances de a polícia conseguir identificar os responsáveis, mas ainda assim é difícil saber qual foi o grau de responsabilidade de cada uma daquelas pessoas, porque essa culpa, digamos assim, está mitigada: um deu uma paulada, um deu um chute, e a soma de todos as ações que vai levar ao óbito, em um caso fatal.
A questão que fica é: cada uma das pessoas pode ser responsabilizada pelo desfecho ou apenas pela ação que elas de fato tomaram?
A polícia teria que identificar qual foi o golpe que levou à morte, e a pessoa que deu esse golpe vai ser responsável pela morte ou são todas as pessoas que estavam participando, agredindo ou impedindo a defesa daquela pessoa?
É um caso complexo, é difícil para a polícia identificar a participação de cada um dos envolvidos quando há múltiplos autores.
Há falta de interesse do Estado em identificar os culpados?
O que a gente acaba percebendo, principalmente nos casos em que não há desfecho fatal, que a vítima é agredida mas não há homicídio, é que o linchamento acaba sendo invisibilizado. Geralmente quando a polícia chega até o local é porque foi acionada em função do crime cometido antes do linchamento, mas raramente é chamada em função do linchamento.
Nesses casos a agressão muitas vezes é naturalizada. Ela pode até aparecer no boletim de ocorrência registrado em função do crime supostamente cometido pelo agredido, no sentido de registrar as escoriações sofridas por populares, mas a agressão em si não é problematizada, investigada enquanto crime.
A violência acaba sendo vista como um desenvolvimento “natural” da acusação anterior.
Entretanto nos casos em que ocorre o homicídio durante o linchamento, que são mais raros, a polícia vai lidar com esse problema, porque o homicídio, geralmente, é mais grave, ou tão grave, quanto o crime cometido anteriormente.
Existem pessoas presas no Brasil hoje por terem participado de linchamento?
Sim, o caso mais marcante e recente foi o do linchamento de uma moça no Guarujá (SP), que supostamente estava envolvida com bruxaria e sequestro de crianças. O ato de violência foi filmado e alguns poucos envolvidos foram identificados e condenados, mas dezenas de pessoas participaram. Muitas vezes a qualidade das imagens dos vídeos é ruim, o que torna o trabalho da polícia ainda mais difícil. É um trabalho e tanto para identificar as pessoas.
Quais os impactos das tecnologias e redes sociais nos casos de linchamento?
Há um duplo impacto. Há pouco tempo não havia o registro desses crimes em vídeo, apenas uma descrição, um relato posterior. Com o advento da tecnologia, identificar os autores do crime ficou mais fácil, mas também deu uma dimensão maior para os casos de linchamento, ou seja, algo que ficaria mais restrito ao contexto local acaba ganhando uma dimensão maior, porque além de as imagens serem registradas elas são compartilhadas. Esses compartilhamentos ocorrem em forma de apoio ou repúdio à ação.
Portanto, além da violência e da humilhação de um linchamento, há a questão da exposição virtual. É como se a pessoa continuasse sendo linchada cada vez que uma pessoa assistisse ao vídeo.
Por outro lado, as imagens podem ser utilizadas para gerar desconforto e estranhamento que venham gerar alguma mudança positiva em relação a estes crimes na sociedade.
Se linchamento fosse considerado um tipo de crime específico, isso poderia diminuir a impunidade?
É difícil saber, porque apesar de ser um caso que chama atenção pela participação de múltiplos autores e pelo excesso de violência que acontece à vista de todos, isso não é o suficiente para se tratar do assunto com a seriedade que ele mereceria.
Se o linchamento fosse problematizado em si, utilizando o código penal da forma que ele existe, como lesão corporal, tentativa de homicídio ou homicídio, já seria um grande avanço, e mais que isso, se esta agressão fosse vista pela sociedade como algo inaceitável e não como uma reação natural esperada ou desejada diante de um crime.
Transformar linchamento em tipo penal não seria o melhor caminho, as soluções podem passar por outras coisas, seja deixar de invisibilizar esse tipo de agressão, seja conscientizar a sociedade a respeito da inadequação deste tipo de resposta, que acaba igualando a população ao criminoso.
É possível identificar em que situações geralmente ocorrem casos de linchamentos? Traçar um perfil das vítimas?
Os dados que tínhamos aqui no NEV, dos anos 1980 a 2009, mostram que a maior parte das vítimas são do sexo masculino e jovens. Com relação a recorrência dos casos não temos informação, mas podemos afirmar que se trata de um fenômeno que acontece há mais de 30 anos e continua acontecendo, é recorrente na sociedade brasileira. Não acontece apenas em cidades grandes, mas em cidades pequenas também, acontece em regiões centrais e em bairros periféricos.
Por que não existem dados atuais sobre linchamentos no Brasil?
Por um lado porque não é tipo penal, existem formas diferentes de classificar um linchamento de acordo com o dano provocado à vítima, seja tentativa de homicídio, homicídio ou lesão corporal. E por outro lado, fazer uma classificação usando a imprensa como fonte, ou os boletins de ocorrência, demanda um trabalho de pesquisa grande. Não é um dado produzido por uma fonte naturalmente, ele precisa ser feito a partir um olhar de alguém que obtém as informações e as sistematiza.
O Núcleo de Estudos da Violência da USP fez um estudo de 1980 a 2009, mas depois, por uma razão de financiamento e redirecionamento de pesquisa, esse levantamento deixou de ser feito.
Existe alguma forma, alguma política que possa ser implementada, que faça com que os casos de linchamento diminuam aqui no país?
Primeiro deixar de invisibilizar os casos e segundo fazer uma maior discussão com a sociedade à respeito da gravidade desse tipo de ação, que não pode ser considerada uma solução aceitável. A gente precisa buscar alternativas para o nosso problema de criminalidade, de segurança pública.
A insegurança e o medo são reais e é legítimo buscar reforços e querer se sentir seguro, só que este não parece o melhor caminho porque ele não promove mais segurança, na verdade promove mais insegurança porque é mais violência circulando na sociedade.
Quando os cidadãos comuns estão dispostos a agir com violência, a gente está indo para um caminho preocupante.
O que os estudos cientÃficos dizem sobre as diferentes taxas de homicÃdios por armas em vários paÃses?
Publicado por Ideias em Terça-feira, 3 de outubro de 2017
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