Senadores Humberto Costa (PT) e Randolfe Rodrigues (Rede) lançaram livro sobre os bastidores da CPI da Covid.| Foto: Divulgação/Geraldo Magela/Roque de Sá/Agência Senado
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Acusações sobre “genocídio” e exercício ilegal da medicina, crítica ao uso de “vermífugo” e tratamentos profiláticos “comprovadamente ineficazes”, exaltação do uso de máscaras e do lockdown. “A Política Contra o Vírus: Bastidores da CPI da Covid” (Companhia das Letras, 152 páginas), livro dos senadores Randolfe Rodrigues (Rede) e Humberto Costa (PT), lançado no mês passado, é magro em número de páginas, mas volumoso em meias verdades, distorções científicas e retórica política contra o governo Bolsonaro. A publicação busca retratar como heroica uma Comissão Parlamentar de Inquérito que gerou um relatório eivado de gafes científicas, não entregando nada além da já esperada propaganda.

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Randolfe e Humberto abrem o livro acusando o presidente de “exercício ilegal da medicina ao prescrever tratamento precoce e remédios ineficazes no combate ao vírus”. Como as mesmas drogas foram prescritas por muitos médicos, isso equivale a acusá-los de exercício ilegal da medicina.

Também acusam o governo de ter “por meta fomentar a proliferação da Covid na certeza de que a contaminação em massa levaria à imunização dos brasileiros”. Mas o que se esquecem de dizer, ou não sabem, é que a aposta na imunidade natural dos menos vulneráveis para atingir uma imunidade de rebanho que protegesse os mais vulneráveis foi, e ainda é, uma proposta séria de médicos e cientistas, como se pode constatar lendo a Declaração de Great Barrington.

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Enquanto o livro, citando estudo, alega que essa estratégia foi um desastre e acusa de genocídio quem tentou aplicá-la, outra análise mostra que os países que foram francos a respeito de atingir imunidade de rebanho, com infecções prévias e vacina, atingiram os maiores índices de imunização do mundo, ao contrário daqueles que ainda insistem em “Covid zero”. A retórica histriônica do livro vai tão longe que acusa o governo de ter a intenção de “exterminar os povos indígenas”.

Tratamento precoce

Os senadores desqualificam a ivermectina como “vermífugo”. Apenas retórica política, já que nada na natureza ou na farmacologia impede que uma droga que trata de vermes também tenha eficácia contra um vírus. Sabe-se, ao menos, que é uma droga segura. Devido a uma confusão de interpretação estatística e uma resistência política, é possível que nunca saibamos com certeza se a ivermectina é eficaz contra a Covid. Mas há as evidências positivas, como estudos que passaram até no teste exigido pelos que fazem a confusão estatística.

Perplexo diante dessas evidências favoráveis e outras, o famoso blogueiro psiquiatra americano Scott Alexander, com amplos interesses científicos, propôs que a ivermectina deve ter ajudado indiretamente, ao desafogar o sistema imunológico combatendo as verminoses e o liberando para lutar contra a Covid. Fica ao leitor a interpretação do que é mais provável: as pessoas dos países em desenvolvimento estão cheias de vermes, ou a ivermectina realmente pode ter algum efeito contra o vírus, como sugerido em estudos investigando suas interações moleculares?

Randolfe e Humberto alegam que, em janeiro de 2021, a cloroquina e ivermectina eram medicamentos “conhecidos havia muito como ineficazes contra a doença”, falam também em “comprovadamente ineficazes”. Essa certeza é falsa, tanto na época quanto agora. Na realidade, reanálises de dados continuam apontando que a hidroxicloroquina, uma forma menos tóxica de cloroquina, pode ter ajudado se tomada antes da infecção. Não foi a panaceia prometida por muitos, mas não se pode afirmar que é “ineficaz” também. Quanto ao “comprovadamente”, não é termo de quem entende de ciência.

Não há nenhuma ocorrência no livro para a fluvoxamina, um antidepressivo proposto como tratamento precoce que passou nos estudos mais rigorosos (chamados “ensaios controlados e randomizados”). Como não funcionou atacar todo tipo de tentativa de fazer realocação de drogas já existentes e baratas como esta, restou aos críticos do tratamento precoce ficar em silêncio a respeito da fluvoxamina. Agora, a revista científica Nature publica que a vitamina D também ajudou contra a Covid. A politização desses tratamentos sempre foi desnecessária. E nunca houve lógica em colocar como opostos o tratamento precoce e as vacinas, que atuam em âmbitos diferentes de profilaxia e cuidado.

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Vacinas: economizar dinheiro do SUS é feri-lo de morte

Randolfe e Humberto são enfáticos em criticar a tentativa de empresários de comprar as vacinas no começo da pandemia, como se fosse incontroversa a interferência do Estado na propriedade privada à maneira soviética, sob a desculpa de concentrar os esforços no SUS. Com teimosia tipicamente progressista, alegam que permitir a compra privada seria “alargar o fosso social brasileiro”, em vez de desafogar o SUS e economizar com a falta de necessidade de pagar com imposto o que pode ser pago diretamente pelo cidadão e pela empresa. Tudo pelo Estado, nada contra o Estado.

É um mundo paralelo em que economia do dinheiro do pagador de impostos é ruim para o pagador de impostos. A compra das vacinas pelos grupos empresariais privados seria uma criação de “ilhas de privilégios no Brasil”, “ferindo de morte o Sistema Único de Saúde”. Como exatamente economizar impostos no SUS seria feri-lo de morte não é explicado. A estatolatria não precisa de explicações.

É uma empresária, no entanto, que ganha crédito por iniciar a cadeia de decisões que levou à CPI: “Senador Randolfe? Aqui é Luiza Trajano. Precisamos encontrar uma maneira de destravar o processo de vacinação da população”. A mania da esquerda nacional de atrapalhar a vida do empresariado enquanto dá acesso privilegiado a empresários seletos amigos do rei é apresentada, aqui, como se fosse exuberante e admirável por causa do sucesso da chefe da Magalu em fazer lobby junto ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Os autores descrevem uma reunião na residência dele em 22 de fevereiro de 2021, junto com as farmacêuticas, e outra reunião em que se sentaram com Flávio Bolsonaro, senador e filho do presidente.

Bizarramente, Randolfe e Humberto criticam empresas que “aproveitavam o momento para tentar instituir novos marcos legais que favorecessem lucros a determinados segmentos pela comercialização de imunizantes”, mas nada têm a dizer sobre o interesse de lucro dos próprios fabricantes das vacinas.

O Ministério da Saúde de Bolsonaro classificou a cláusula contratual que eximia as fabricantes das vacinas de responsabilidade por efeitos colaterais e mortes como “draconiana”. A resposta de Randolfe e Humberto? Que ela foi aceita em diversos países. Isso nos leva ao velho argumento materno para filhos adolescentes: se diversos países pularem de uma ponte, você também pula? Os méritos devem ser avaliados, em vez de apenas seguir exemplos externos, embora essa tenha sido a tônica da pandemia não só aqui, como na maior parte do mundo. Um argumento dos senadores que se sai um pouco melhor diz respeito a uma cláusula similar ter sido ignorada no malfadado e suspeito plano de comprar doses da vacina indiana Covaxin. A ministra do STF Rosa Weber arquivou o inquérito contra Bolsonaro com base nas denúncias a respeito dessa vacina.

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Máscaras e lockdowns

No primeiro capítulo, os senadores contam que, no começo de 2021, houve uma reunião com prefeitos no Senado e, dos cinco senadores presentes, três foram internados com Covid, um vindo a falecer. Mas Eduardo Girão “foi salvo pela máscara”. Como já temos uma série de estudos falhando em evidenciar a eficácia das máscaras de tecido e cirúrgicas para barrar as infecções, isso quer dizer que Randolfe e Humberto preferem seu “estudo” anedótico com tamanho amostral de cinco pessoas.

As medidas de confinamento (lockdown) são apresentadas sem crítica, como se fossem um remédio doce, sem nenhum amargor. Bolsonaro é criticado por ter se pronunciado contra o fechamento do comércio de Manaus, como se tal medida fosse resolver a situação em vez de piorar os problemas sanitários dos manauaras com agravantes econômicos. Mais que isso, os autores afirmam, sem evidências, que a tragédia de Manaus foi causada diretamente pela decisão do governador Wilson Lima, alinhado com Bolsonaro, de voltar atrás no lockdown: “A colheita da má decisão foi trágica”. Políticos podem usar a complexidade do mundo e nossa ignorância sobre ele para afirmar relações causais onde for mais conveniente. Cientistas não têm esse privilégio.

Conclusões

Esta crítica ao livro não pretende negar que Bolsonaro tenha cometido erros no manejo da pandemia, especialmente com declarações descuidadas. Certas decisões, como as que envolveram o suprimento de oxigênio em Manaus, merecem uma análise sóbria, em que é provável que Randolfe e Humberto tenham alguma razão. Só não ao ponto de elogiarem o regime de Maduro na Venezuela, como fizeram na publicação, por utilizar a tragédia para benefício de sua própria imagem.

Porém, Bolsonaro merece crédito por não ter fechado o país todo, quando tinha poder para tal. Seu governo tem o mérito, também, de ter tentado proteger indivíduos de serem demitidos caso recusassem as vacinas — decisão desfeita pelo STF. No mínimo, as tentativas de coagir pessoas a tomar vacinas contra Covid revelaram-se tolas por dois aspectos: ignorar a proteção conferida pela infecção prévia (ao contrário do que fez a Dinamarca, que aceitava a infecção prévia em seus “passaportes” de imunização), e ter ficado evidente que nenhuma das vacinas era eficaz em barrar a transmissão e a infecção, embora tivessem boa eficácia em evitar mortes.

Como disse classicamente o filósofo liberal John Stuart Mill, não se força o indivíduo a coisa alguma em nome de seu próprio bem. O indivíduo é quem decide o que é o seu próprio bem e tem soberania sobre o seu corpo, como decidiu mais tarde o julgamento de Nuremberg após os abusos nazistas.

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Uma das principais reclamações do livro foi pela demora no fechamento de contrato com as farmacêuticas para a compra das vacinas para o SUS. Olhando o cenário internacional fora da polêmica política interna, no entanto, o atraso não fica tão dramático. Randolfe e Humberto contam que o requerimento para abrir a CPI da Covid-19 foi apresentado em 18 de janeiro de 2021. Na época, o Brasil atingia a marca das 200 mil vítimas da doença. Nesta mesma data, como mostra o site de curadoria de dados Our World in Data, o Brasil já era o quarto país do mundo em doses administradas, atrás somente de Estados Unidos, México e Índia, com pouco mais de mil doses. Um mês depois, subiu para o terceiro lugar, com 6,5 milhões de doses. A posição continuou estável: no começo deste mês, o país era o quarto do mundo, com 473 milhões de doses.

As vacinas, especialmente a da Pfizer, não foram panaceias. Seu grande mérito de cortar o número de mortos merece ser contrabalançado com seus riscos, mesmo que baixos, o mais notório dos quais é a inflamação cardíaca em jovens do sexo masculino. Em uma amostra tailandesa, 3% tinham sinais sintomáticos ou assintomáticos do problema. Os que apoiaram a coerção e o autoritarismo sanitário deveriam sentir o peso da responsabilidade de ter arriscado o coração dos jovens em sua gana de uma só política vacinal para todos. Desde o começo estava claro que grupos humanos diferiam em sua vulnerabilidade ao novo vírus. As políticas de vacinação deveriam ter levado isso em conta de uma forma mais séria.

Além disso, há um risco que ainda não foi afastado. Tivemos a sorte de o vírus da Covid ter evoluído para a variante menos letal ômicron. Mas um estudo com outra vacina que não impede transmissão e infecção, com um vírus que infecta frangos, indicou que esse tipo de vacina pode guiar o vírus na direção de variantes mais letais.

Não houve respostas fáceis na pandemia. Mas o grupo que apoiou lockdown e políticas indiscriminadas de vacinação, enquanto nada tinha a dizer sobre comorbidades como a obesidade (agravada pelos lockdowns), o grupo que apoiou o autoritarismo sanitário e o alarmismo não pode facilmente tentar retratar a si mesmo como mocinho da história sem atropelar os fatos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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