Houve um tempo em que, em vez de fazer vídeos nas redes sociais, os políticos brasileiros escreviam livros.
Até mesmo os coronéis se prestavam a escrever obras completas sobre seus rivais.
Em 2001, Antônio Carlos Magalhães (1927-2007) ficou tão irritado com Jader Barbalho que escreveu um livro inteiro contra o adversário. Ele queria impedir que Barbalho fosse eleito presidente do Senado Federal.
A obra recebeu o título de “Jader Barbalho - o Brasil não merece”, e reúne denúncias contra o senador paraense.
O livro recebeu uma tiragem de 5 mil cópias. Cada senador ganhou uma.
O conteúdo da obra e os fatos que se sucederam mostram que, se a corrupção não diminuiu, o preparo intelectual dos nossos parlamentares caiu de lá para cá.
Rixa
Em 2001, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) e Jader Barbalho (PMDB-PA) travaram uma disputa do Senado.
A disputa entre os dois começou em 1999, quando eles brigavam pelo direito de indicar o relator do Plano Plurianual (PPA) no Senado. A função era importante porque o PPA definiria as prioridades do governo federal entre 2000 e 2003. Presume-se que ambos os senadores queriam assegurar a boa aplicação dos recursos dos contribuintes.
Dali para a frente, os dois viveram em conflito permanente. Quando Barbalho decidiu concorrer à Presidência do Senado, ACM decidiu que entrevistas e discursos não eram o bastante. Ele tinha de escrever um livro para impedir que isso acontecesse.
As acusações do livro
O libelo contra Jader Barbalho provavelmente não é a obra-prima de ACM, que assinou outras obras e foi membro da Academia Brasileira de Letras. A prosa é rasa. A linguagem é pobre e por vezes remete a um relatório burocrático.
Um dos capítulos começa assim: “Levantamento recente, efetuado pelo Ministério da Previdência, identificou inúmeras irregularidades em processo de contratação de obras durante a gestão de Jader Barbalho”.
Outro, assim: “Ferindo a Lei 3.807/60 e toda a jurisprudência reinante à época de sua gestão no Ministério da Previdência, Jader, em atendimento a parecer que lhe fora encaminhando pelo Sr. Wellington dos Mendes Lopes, pessoa de sua confiança ocupando o cargo de Consultor Jurídico do Ministério, autorizou, por um período determinado, a redução do prazo prescricional das dívidas para com a Previdência de 30 para 5 anos”. Ufa.
O livro escrito por ACM traz acusações que começam em 1980.
A obra mostra que, naquele ano, Jader comprou uma casa e, 14 dias depois, a hipotecou por um valor dez vezes maior.
“Jader Barbalho - o Brasil não merece” reúne todo o tipo de acusação. ACM conta que, em 1992, no governo de Barbalho, a Polícia Militar do Pará desapropriou irregularmente um garimpo, e matou um garimpeiro na operação. O livro traz a foto do cadáver.
A denúncia mais grave talvez seja a de que Barbalho estava envolvido em desvios de grandes proporções na Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). O senador baiano afirmou que o Barbalho usava empresas de fachada para desviar recursos milionários repassados pelo órgão para obras na região.
Citação a Rui Barbosa
Boa parte das denúncias do livro se baseia em reportagens bem fundamentadas.
Outras, entretanto, são superficiais. Um dos capítulos acusa Jader de fazer “indicações políticas” para o governo federal, o que se tornou praxe há muito tempo.
Na conclusão (de uma página), ACM cita Rui Barbosa distribui vírgulas a esmo enquanto clama: “Estou, portanto, cumprindo meu dever. Que todos, cumpram também o seu, pois o País precisa demonstrar que quer, e tem o dever, de banir, de uma vez por todas, a desenfreada corrupção”.
Estas são as últimas palavras da obra: “Considero este livro uma demonstração de amor à instituição e ao Brasil”.
O trabalho da gráfica Santa Helena, de propriedade de ACM, merece aplauso. As reproduções de reportagens de VEJA são coloridas e em alta resolução. O livro inclui fac-símiles de reportagens de jornais, cada uma delas cuidadosamente impressa em páginas especiais que podem ser desdobradas pelo leitor, como um pôster de revista.
Das 263 páginas, 151 são de anexos. Os documentos incluem, além de reportagens, depoimentos prestados durante CPIs no Congresso.
Dias turbulentos no Senado
Aquele foi um período movimentado no Senado.
Em junho de 2000, Luiz Estevão (PMDB-DF) se tornou o primeiro senador cassado na história. Ele foi considerado culpado pelo superfaturamento na obra do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo.
O caso estaria diretamente relacionado à maior derrota política de ACM na sua carreira. Em maio de 2001, ele renunciou ao mandato depois de admitir ter visto uma lista com os votos (secretos) de cada senador no processo de cassação de Estevão.
Em maio de 2001, prevendo que perderia o mandato, ACM subiu à tribuna para renunciar. Em um discurso no qual citou Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Voltaire e Otávio Mangabeira, ele começou com uma referência bíblica:
“ No momento em que a maior justiça se encontrou com a maior injustiça e no dia em que o erro supremo se defrontou com a suprema verdade, nesse dia, o juiz, o representante do Poder Estatal, que era Pôncio Pilatos, em face à perturbadora fúria e em face das multidões arrebatadas, esquecendo-se dos deveres morais que incumbiam à sua pessoa e dos misteres políticos que incumbiam ao seu cargo, respondeu com estas palavras melancólicas: 'Mas o que é a verdade?'
Eu, no entanto, lhes pergunto: o que é a mentira? E lhes respondo: mentira é a farsa que se montou para tentar interromper uma das mais longas e conceituadas vidas públicas de serviços prestados ao seu estado e ao seu país.”
Jader, presidente do Senado, assistiu a tudo do alto da Mesa Diretora. Apesar da campanha de ACM, ele havia sido eleito para a Presidência do Senado com 41 dos 81 votos. Mas chegaria a sua vez.
Em setembro de 2001, encurralado pelas denúncias dos desvios na Sudam, Barbalho acabou renunciando à presidência do Senado. Em seu discurso, ele citou Eclesiastes, Hanna Arendt, Voltaire, Galileu, Maquiavel, Baltasar Gracián, Rui Barbosa, Norberto Bobbio, Miguel de Cervantes e Erasmo.
Duas semanas depois, também renunciou ao cargo de senador.
Que fim levaram os protagonistas da disputa
ACM morreu em 2007. Ele decidira não disputar as eleições do ano anterior.
Jader Barbalho passou uma temporada na Câmara dos Deputados e foi eleito senador novamente em 2010. Ele chegou a ser preso provisoriamente em 2002 por causa dos desvios na Sudam. Quase uma década depois, ele também foi condenado a ressarcir R$ 2,23 milhões aos cofres públicos. Mas Barbalho nunca voltou para trás das grades.
O filho de Jader, Helder Barbalho (MDB), é o atual governador do Pará. O neto de Antônio Carlos Magalhães, ACM Neto, foi prefeito de Salvador por duas vezes e hoje é o principal nome do partido União Brasil (antigo PFL) na Bahia.
A reportagem da Gazeta do Povo procurou a assessoria de Jader Barbalho, mas não obteve resposta.