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Livro revive os tempos de “sombra e terror” da ditadura militar

Tanque do Exército para próximo à casa do presidente deposto João Goulart, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro | Arquivo - Estadão Conteúdo - AE
Tanque do Exército para próximo à casa do presidente deposto João Goulart, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro (Foto: Arquivo - Estadão Conteúdo - AE)

Em dezembro de 1968, o general Costa e Silva assinou o quinto - e considerado o pior - de 17 Atos Institucionais, colocando o Brasil em silêncio e vigília constantes. O AI-5 dava ao governo militar, entre outros, o poder de dar recesso às casa do Poder Legislativo, suspender direitos políticos, cassar mandatos, proibir manifestações políticas populares e censurar, previamente, meios de comunicação, livros, peças de teatro e músicas.

Meses antes, uma jovem de 27 anos iniciava suas atividades no jornalismo motivada por um afilhado de Assis Chateaubriand e pela própria ditadura, que freara sua pesquisa sobre liberdades no doutorado em filosofia.

Marlene Rodrigues, pedagoga e psicóloga, começou como repórter no jornal Diários Associados cobrindo o movimento estudantil e a situação política dos pesquisadores da Universidade de São Paulo. Dois anos depois, foi para a Folha de S. Paulo, onde permaneceu até 1975 e cobriu, especialmente, a reforma universitária do governo militar. Saiu, cansada de ter as matérias cortadas ou substituídas por receitas de bolo.

Em 1976, a partir de pesquisas com desenhos infantis, lançou o livro Psicologia Educacional – Uma crônica do desenvolvimento humano, adotado em diversos cursos de psicologia de universidades brasileiras e portuguesas. Em 1979, após decretada a Lei da Anistia, planejou e deu início à Imprensa Universitária da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

“Depois o grand finale: deitaram-na no chão de pernas e braços bem abertos, esfolaram seu corpo com escova de arame e soltaram sobre seu corpo um filhote de jacaré. Tinha pouco menos de um metro, era repulsivo, viscoso, estava raivoso, com medo e faminto.”

Com a democracia já instalada, criou, em 1988, a Coordenadoria de Pesquisa e Ensino Artístico da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, e, em 1991, lançou Cartilhas da dominação, analisando a luta ideológica presente nas cartilhas governamentais do regime militar e as editadas pouco depois dele.

Desses anos como repórter, professora universitária, pesquisadora e psicóloga, fez amigos e conheceu pessoas. Soube de suas histórias de tortura, procurou informações de conhecidos desaparecidos e viu o medo tomar redações e salas de aula. “Nos jornais e universidade em que passei, todos sussurravam. O Brasil inteiro sussurrava. Os tempos eram de sombra e terror”, comenta a jornalista

À essas lembranças e memórias vividas, escutadas e acompanhadas durante os 21 anos de regime militar, a autora deu voz, mais de 30 anos após a redemocratização do Brasil, em primeiro livro de contos: A Hidra – contos de exílio, clandestinidade e resistência. Com uma escrita crua e envolvente,o livro de Marlene Rodrigues consegue nos conectar aos sentimentos da época, nos colocar dentro das celas e nos fazer assistir às sessões de tortura.

Como no conto perturbador A Aula Magna: “Depois o grand finale: deitaram-na no chão de pernas e braços bem abertos, esfolaram seu corpo com escova de arame e soltaram sobre seu corpo um filhote de jacaré. Tinha pouco menos de um metro, era repulsivo, viscoso, estava raivoso, com medo e faminto.” (p.66)

Escrito em apenas dois meses e meio, o livro traz, em sua maioria, histórias de pessoas não identificadas pela autora, mas, também, passagens de nomes importantes na luta pela democracia, como o jurista Sobral Pinto e o cardeal Dom Evaristo Arns, por exemplo.

“Em poucos casos revelei as identidades; em algumas mantive o segredo por respeito aos protagonistas e familiares e também porque, muitas, não conheci a identidade. Só soube do fato”, explica a autora.

“Não estava nu como nas salas de tortura, mas aquilo era tortura: uma barra de ferro atravessava-se entre os punhos e os joelhos do desgraçado. [...] Nos quartéis, o suplício era acompanhado de pancadas, choques e queimaduras. Na rua servia de recurso pedagógico contra a subversão.”

Gazeta do Povo - Qual foi a motivação para resgatar essas memórias e lançar A Hidra 30 anos depois da redemocratização? Como foi o processo de escrita?

Marlene Rodrigues - O livro todo eu escrevi em dois meses e meio. Foi um impulso só. As memórias foram surgindo e eu precisa escrevê-las. Era muito sentimento que eu nem sabia que estava guardado dentro de mim. Na parte da pesquisa e confirmação de dados meu filho me ajudou. E a ideia de não colocar os nomes de vários personagens foi um cuidado para que não houvesse qualquer tipo de retaliação com os descendentes.

Como você chegou na ideia d’A Hidra?

É uma figura, uma metáfora, usada em muitas partes do mundo para indicar um movimento contra a maldade. Foi um dos doze trabalhos de Hércules, que foi chamado por Zeus pra acabar com a maldade do mundo. Mas não acabou, porque a Hidra tinha corpo de dragão e sete cabeças, e, a cada vez que Hércules cortava uma, outras apareciam, em expansão geométrica. Isso significa que a maldade jamais será erradicada do coração do homem, que não se conforta com a falta de sentido na vida. Assim foi a ditadura.

O livro tem muitas passagens autobiográficas. Como foi pra você relembrar histórias tão próximas?

Foi dolorido. Escrevi coisas muito dolorosas e até chorando, muitas vezes. Especialmente, as em que eu estava envolvida. Mas a partir da escrita, ou durante, também vinha um certo alívio de estar desafogando uma coisa que eu nem sabia que estava dentro de mim, ainda. Ficou guardado. O silêncio foi uma coisa estrutural, tanto para a ditadura, quanto para a resistência. O silêncio era uma linguagem.

Como você classifica a importância deste livro?

Esse é um livro nasceu do amor por pessoas que, em tempos dilacerantes, deram destino às suas vidas nas lutas pelas liberdades. Seus desejos imantavam-se ao iluminismo e às utopias. Queriam justiça e igualdade para o Brasil. Devemos a eles, e, de algum modo, deixo suas histórias para os que se servirem desta leitura e tatuarem em si mesmos o desejo da continuidade da luta.

O livro fala de uma época real, de pessoas e situações reais. Ele traz muito da crônica, não? Por que você decidiu chamar os textos de contos?

Sim, ele tem muito de crônica, mas chamo de conto também porque empresto minha subjetividade às histórias. A algumas histórias não emprestei nada a não ser minha reverência, porque elas falam por si. Também pelo fato de que muitas parecem inacreditáveis. E na verdade, depois desse livro, reparei que venho escrevendo crônica desde os 16 anos.

Levando em conta que você estava próxima dos fatos relatados em A Hidra, o que você diria para alguém que defende, hoje, um intervenção militar?

Eu diria para que lessem o livro. A hidra continua se multiplicando pelo Brasil, até porque a ditadura não foi só militar. Ela foi civil-militar.

Você pretende seguir nessa linha autoral-literária? Já tem outros projetos?

Enquanto eu escrevia a Hidra, trabalhei em outros dois livros. Um é de filosofia, mas não é sobre filosofia: é sobre o comportamento dos filósofos. São 12 partes: no começo eu dou uma noção de qual era a filosofia, para entender o pensadores. E no final tem uma parte para cada uma dessas partes que é eu, psicóloga, vendo esses sujeitos agora. Por que eles se comportavam daquela forma? O que eles pretendiam com aquele comportamento?

“O AI-5 arrancava do povo brasileiro todas as liberdades. [...] e a ditadura, daí pra frente, se permitia legislar e, para tanto, não economizaria atrocidades. Era a hidra, jamais saciada de sangue e tirania.”

O outro chama “Os massacres de Curitiba e os ovos da serpente” e fala, além dos massacres aos professores partidos do Álvaro Dias e do Beto Richa, de coisas acontecidas em Curitiba. Por exemplo: vi, certa vez, duas mulheres em um restaurante com pratos enormes e, depois de comerem muito, começaram a guardar o que ainda havia nos pratos, nos bolsos. A partir daí eu levanto questões como ‘é miséria ou é uma cleptomania gastronômica’? Vamos denunciar pro dono do restaurante? Será que não é uma questão política nacional? Será aquele de classe média que roubar uma coxinha será preso ou denunciado?

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