2020 será lembrado por muitas coisas: Covid-19, protestos violentos, uma eleição marcada pela divisão. Mas o surgimento dos lockdowns terá destaque. Nunca antes o cotidiano de tantos foi tão radicalmente afetado. E, exceto em tempos de guerra, nunca antes houve um cerceamento tão disseminado e extremo da liberdade humana.
Como isso pôde acontecer tão rápido? Por que as pessoas cedem com tanta facilidade a um ataque avassalador à liberdade, até mesmo nos Estados Unidos, a “terra dos homens livres”?
Para resumir, elas baixaram a guarda. Elas deixaram de ser vigilantes.
“O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Thomas Jefferson nunca escreveu exatamente essas palavras, mas ainda assim elas são verdadeiras. Pessoas livres, para permanecerem livres, devem estar sempre atentas contra aspirantes a tiranos.
O argumento do tirano
Mas tiranos há muito aprenderam um método para fazer com que pessoas livres baixassem a guarda. O truque é usar uma emergência como desculpa para acumular poderes, dizendo às pessoas que o sacrifício da liberdade é necessário para a segurança delas.
“Emergências”, escreveu F.A. Hayek em 1973, “sempre foram os pretextos usados para erodir as garantias da liberdade individual”.
Hayek não foi o primeiro a notar isso.
“A necessidade”, alertava William Pitt, o Jovem, em 1783, “serve de argumento para todo ataque à liberdade humana. Ela é o argumento dos tiranos e o credo dos escravos”.
E, em Paraíso Perdido (1667), John Milton escreveu:
E com a necessidade
O argumento do tirano
Justifica seus feitos malignos
Quanto maior a emergência, mais persuasivo o “argumento do tirano”. Assim, a megaemergência da Covid-19 serviu como justificativa convincente para se suspender liberdades: uma situação excepcional que pedia medidas excepcionais.
Para muitos, ficou claro que a liberdade simplesmente não funcionaria em meio a uma pandemia. O distanciamento social compulsório seria necessário. Afinal, os seres humanos são animais sociais, como disse Aristóteles. Por natureza, eles tendem a se reunir. Eles se unem para se ajudar e celebrar, para trabalhar e rezar, para realizar comércios e trocar presentes, para compartilhar a vida e demonstrar amor.
Mas quando todo par de pulmões é considerado um perigo claro e toda multidão é um “acontecimento supertransmissor”, é fácil para políticos argumentarem que a liberdade de reunião simplesmente não vale nada. Todas as idas e vindas e aglomerações devem ser regulamentadas ao extremo. O governo tem de decidir se é seguro abrir uma loja, visitar a família e até sair de casa.
O caráter e abrangência dessa emergência pareciam requerer um poder governamental quase ilimitado para restringir a liberdade física das pessoas. É uma imposição enorme, mas, hei!, estamos numa situação de emergência e “temos que fazer o que deve ser feito”, dizem eles.
Assim, as pessoas baixaram a guarda e passaram a confiar nos carcereiros.
Confiança na ciência
O argumento do tirano para os lockdowns também parece contar com o “apoio da ciência”, o que lhe empresta ainda mais credibilidade.
Cientistas naturalmente exercem o papel de “sábios salvadores” em tempos de emergência. Afinal, a “ciência” vem do termo latino para “conhecimento”. E “aqueles que sabem” são os heróis de que precisamos numa emergência, que é o surgimento do desconhecido.
“A emergência”, escreveu Jordan Peterson, “é a manifestação repentina de um fenômeno qualquer previamente desconhecido. É o ressurgimento do dragão eterno, em sua caverna eterna, desperto de seu sono interrompido”.
Uma pandemia viral pode ser especialmente assustadora e misteriosa para nós, os não-especialistas. O novo (emergente) coronavírus é um assassino invisível que age de formas misteriosas. Somente os epidemiologistas entendem isso, supomos. Assim, para sobrevivermos à ameaça, nós, os ignorantes, deveríamos obedecer ao conhecimento especializado e seguir os conselhos deles.
E quem está acima dos epidemiologistas? Supostamente os que trabalham nos escalões mais altos do governo, como Anthony Fauci, Neil Ferguson e os especialistas do Centro de Controle de Doenças e da Organização Mundial da Saúde.
Se esses doutores todos dizem que a humanidade tem “liberdade demais para enfrentar a Covid-19” e prescrevem “mais lockdowns”, quem somos nós para questionar?
E, assim, as pessoas baixam a guarda e confiam nos sábios.
O problema do conhecimento
Mas nem todos. Algumas vozes se pronunciaram contrariamente aos lockdowns. E uns poucos foram contra essas medidas desde o início. Apesar da emergência e dos argumentos cheios de autoridade quanto à necessidade dos lockdowns, essas pessoas não baixaram a guarda contra a tirania. Elas permaneceram vigilantes.
Uma dessas vozes, tenho o orgulho de dizer, foi a da organização para a qual trabalho, a Foundation for Economic Education. Destaco, aqui, o heroísmo dos artigos do nosso prolífico editor, Jon Miltimore.
Por que rejeitamos os lockdowns? Será que negamos a emergência? Será que desrespeitamos o conhecimento? Pelo contrário.
Sócrates era considerado um sábio não pela extensão de seu conhecimento, e sim por saber o quanto ele desconhecia no grande esquema das coisas.
A economia pode gerar uma sabedoria semelhante.
“A função mais curiosa da economia”, escreveu Hayek, “é demonstração aos homens o quão pouco eles realmente sabem sobre o que se imaginam capazes de planejar”.
Hayek explicou os limites do conhecimento humano no artigo “O Uso do Conhecimento na Sociedade”. Essa obra fundamental influenciou profundamente economistas e até inspirou Jimmy Wales a criar a Wikipedia. Leonard Read, fundador da FEE, popularizou algumas das ideias do artigo em seu clássico “Eu, o Lápis”. Assim, as ideias de Hayek sobre o conhecimento estão presentes no DNA da FEE.
Inspirado na obra de seu mentor, Ludwig von Mises, Hayek se pôs a explicar a falha fundamental do socialismo e do planejamento centralizado em geral. O planejamento centralizado, argumentava ele, sempre fracassa no texto do “problema do conhecimento”.
O conhecimento relevante para o planejamento de uma economia e socialista, explicou Hayek, está “disperso” entre os indivíduos. Esse “conhecimento distribuído” é vasto demais para ser compreendido por um engenheiro ou governo.
Isso serve também para os administradores que “dão ouvidos à ciência”, por mais inteligentes que seus conselheiros científicos sejam. Até mesmo as grandes mentes da ciência têm um acesso extremamente limitado ao que os economistas chamam de “conhecimento local”. Como explicou Hayek (grifos do autor):
“Hoje é quase uma heresia sugerir que o conhecimento científico não é a soma de todos os conhecimentos. Mas um pouco de reflexão mostra que há, sem dúvida, um corpo de conhecimento importante, mas desorganizado, que não pode ser chamado de científico no sentido do conhecimento das regras gerais: o conhecimento de circunstâncias específicas de tempo e lugar”.
Esse conhecimento só pode ser explorado em sua totalidade pelos indivíduos. Hayek continua:
"É nesse sentido que praticamente todos os indivíduos têm alguma vantagem sobre os demais, porque eles detêm informações únicas que podem ser usadas de forma benéfica, mas que só podem ser usadas se as decisões delas dependentes couberem a eles ou forem tomadas com a ajuda deles”.
Qualquer pessoa que tenha trabalhado entende o conceito de “conhecimento local”. Como afirmou Hayek:
"Precisamos lembrar somente quanto temos de aprender numa ocupação depois de termos concluído nosso treinamento teórico, quanto tempo da nossa vida profissional passamos aprendendo funções específicas e como é valioso, em todas as coisas da vida, conhecer pessoas, condições e circunstâncias especiais”.
E, mais importante ainda, os cientistas têm menos acesso aos objetivos e preferências dos indivíduos. Ou, como diz Hayek, “fins cuja importância relativa apenas esses indivíduos conhecem”.
A pretensão da onisciência
O que isso tem a ver com a pandemia e os lockdowns?
Para além do socialismo, os lockdowns são o símbolo maior do planejamento centralizado. E, como todos os planos do tipo, eles ignoram o problema do conhecimento, mesmo quando são coplanejados por cientistas.
Deve-se notar que, apesar da insistência da imprensa de que existe um “consenso científico”, epidemiologistas dissidentes e outros especialistas vão contra os “cientistas da corte” presentes nos governos, opondo-se aos lockdowns com base em argumentos de saúde pública. Além disso, pesquisas sérias mostram que os lockdowns têm um efeito limitado na contenção da Covid-19.
Mesmo deixando essa questão de lado, deveria ser óbvio que a transmissão da doença não é a única coisa relevante para se decidir por uma política pública, sobretudo uma política que tem um impacto tão profundo como o lockdown. Há vários fatores importantes a serem considerados, fatores que nem mesmo a mais enciclopédica das mentes é capaz de conhecer.
A questões de “conhecimento local”, como a devastação da economia em determinado lugar, por meio do fechamento de restaurantes, e questões de saúde mental, como quantas pessoas deprimidas numa comunidade podem ser levadas a cometer suicídio por causa do desemprego e do isolamento.
E há ainda questões de “preferência individual”, como se um idoso num asilo prefere correr o risco de contrair Covid-19 ao risco de morrer sozinho e angustiado, isolado de sua família.
Até mesmo o mais inteligente e mais bem-intencionado defensor dos lockdowns é incapaz de conhecer ou avaliar todas essas questões. Por isso, os lockdowns deram vazão a uma epidemia de consequências não-intencionais que arruinaram incontáveis vidas.
A futura administração Biden-Harris ostenta que vai “ouvir a ciência” e “determinar ou revogar lockdowns de acordo com as circunstâncias locais”. Mas isso é apenas uma ilusão epistêmica. Nenhum governante sabe o bastante para afinar a proximidade física numa sociedade. Quanto mais ele tentar, mais vidas serão destruídas em sua aventura às cegas.
Rejeitar os lockdowns não é rejeitar a ciência. É reconhecer que a ciência não é onisciente e que o planejamento centralizado nada mais é do que a pretensão arrogante de ter o conhecimento divino.
A alternativa da liberdade
Qual, então, a alternativa? Deveríamos simplesmente desistir e deixar que o vírus aja entre nós? Uma reação dessas vai contra duas premissas falsas: a de que o governo é a única fonte de ação da humanidade e a de que o planejamento centralizado é a única forma de planejamento. Como esclarece Mises:
“A alternativa não é deixar de planejar. A questão é: quem está planejando? Cada membro da sociedade deve planejar para si mesmo ou o governo paternalista deveria planejar para todos? A questão não é o automatismo versus a ação consciente, é a ação espontânea de cada indivíduo versus a ação exclusiva do governo. É liberdade versus onipotência governamental”.
Mas (de acordo com outra objeção comum), um planejamento individual não seria descoordenado e caótico? Um desafio do tamanho da Covid-19 não requer que nos unamos? Isso decorre de outra premissa falsa comum: a de que o governo é a única fonte de coordenação da humanidade.
Na verdade, todos os dias a humanidade cria ações de cooperação em massa para resolver problemas incrivelmente complexos sem que haja um planejamento central. Esse fenômeno é conhecido como “ordem espontânea”.
Como explicou Leonard Read em “Eu, o Lápis”, até mesmo algo aparentemente simples como um lápis é o produto final de uma operação enorme que envolve milhões de produtores, desde o lenhador que corta a árvore até o operário que controla a máquina que moldou o eixo do caminhão que entregou o machado para a loja de ferragens onde o lenhador comprou o utensílio.
Essa cooperação em massa é sobretudo espontânea. A maioria desses fornecedores são estranhos entre si, não trabalham na mesma empresa e vivem em países diferentes. Não existe um “Czar Mundial do Lápis” orquestrando tudo. A maioria das pessoas envolvidas não sabe nem mesmo que seu trabalho está contribuindo para a produção de lápis.
Ainda assim, graças às conexões da economia de mercado, todos cooperam com suavidade para a produção de um único lápis.
Não só isso, mas, ao contribuíram para a produção do lápis, essas pessoas passaram no texto do “problema do conhecimento” de Hayek. O processo de produção de um lápis é tão complexo que exige a distribuição de muito conhecimento (“onde, na floresta, podemos encontrar as melhores seringueiras para a confecção das borrachinhas?”) e preferência individuais (“Qual a utilidade mais urgente dessa madeira: lápis ou papel higiênico?”).
Mas as pessoas envolvidas ignoram isso porque cada participante se especializa numa porção administrável do conhecimento local e tem responsabilidade por satisfazer suas próprias preferências.
E, como Mises e Hayek explicam, o ato dessas pessoas de comprar e vender bens e serviços dá origem a um mercado no qual seu conhecimento e preferências são agregados e transmitidos uns para os outros na forma de preços.
A ordem espontânea é como as pessoas livres distribuem o conhecimento a fim de realizar coisas grandes. E é a única forma de fazer coisas tão complexas e eficientes quanto produzir lápis em massa.
Ainda mais complexo é o desafio de reagir a uma emergência mundial de saúde pública sem piorar a situação.
Eis o que torna as emergências “casos excepcionais”: elas não precisam de menos liberdade, e sim de mais. Quanto mais complexo o problema, de mais conhecimento precisamos para resolvê-lo. Conhecimento científico, sim, claro. Mas também o enorme conhecimento distribuído de que apenas uma sociedade livre dispõe.
Como escreveu Hayek:
“Para o ingênuo que concebe uma ordem somente como o produto da organização deliberada pode parecer um absurdo que, em condições complexas e na adaptação ao desconhecido, pode-se alcançar a ordem de forma mais eficiente por meio da descentralização das tomadas de decisão e por meio de uma divisão de autoridade que aumente a possibilidade de se criar uma ordem abrangente. Essa descentralização na verdade leva a mais informações que devem ser levadas em conta na tomada de decisões”.
Conhecimento econômico e fé no homem livre
Nós que defendemos a liberdade aos lockdowns não fingimos ter todas as respostas. Não fingimos saber de que modo uma sociedade livre seria mais eficiente para lidar com a Covid-19. Se soubéssemos, seríamos tão epistemologicamente arrogantes quanto os planejadores centrais que criticamos.
Mas uma coisa que sabemos melhor até mesmo que o mais científico dos defensores dos lockdowns é quão pouco sabemos sobre um problema tão complexo.
Assim, também sabemos que a resposta das sociedades livres a emergências complexas como a Covid-19, seja ela qual for, será encontrada por meio de informações melhores do que qualquer solução a que cheguem os cientistas que agem como planejadores.
É o que Leonard Read, em seu “Eu, o Lápis”, chama de “fé nos povos livres”, que ele considera “um ingrediente absolutamente fundamental da liberdade”. Para ter fé na liberdade é preciso ter fé nos povos livres. Por isso é que alguns permanecem vigilantes em defesa da liberdade, enquanto outros se deixam escravizar.
Mas não se trata de uma fé cega ou dogmática. Trata-se da confiança esclarecida pelo conhecimento da natureza humana e da ciência econômica.
É esse conhecimento econômico e a resultante confiança esclarecida nos povos livres o que nos torna imunes ao “argumento do tirano”, mesmo que ele conte com o apoio dos cientistas. Sabemos que toda emergência, por pior que ela seja, pede mais, e não menos, liberdade.
O preço da liberdade é a eterna vigilância. E a vigilância contra a tirania exige fé nos povos livres com conhecimento econômico.
Dan Sanchez é diretor de conteúdo da Foundation for Economic Education (FEE) e editor-chefe do site FEE.org.