Todo conceito difundido no mundo acadêmico tem tradução. Afinal, a academia é uma comunidade global em que indivíduos da espécie humana tentam mostrar uns aos outros as descobertas que fizeram. Se “lugar de fala” fosse um conceito acadêmico, haveria traduções suas de uso corrente no inglês e nas línguas latinas.
O leitor pode fazer um teste com a tradução mais intuitiva, “lugar de habla”, e lançá-lo no buscador. Feito isto, encontrará menos de meia dúzia de resultados com a conotação acadêmica que conhecemos – e todos de autores brasileiros. Só por isto, é muito improvável que lugar de fala seja um conceito acadêmico.
Djamila admite que não é acadêmico
Mas, para tirar a prova dos nove, resta ler o livro de divulgação do conceito, feito por uma acadêmica mestre em filosofia. O livro é O que é lugar de fala? (Letramento, 2017) e a mestre é Djamila Ribeiro – aquela que foi paga pelo contribuinte paulistano durante a gestão Haddad para ficar falando que racismo é relação de poder e, portanto, o militante racialista negro, mesmo encastelado na máquina burocrática, pode pintar e bordar sem ser chamado de racista nunca.
O livro é de dimensões pequenas, com as letras grandonas. Deve dar umas 50 páginas de Word. Leitura leve? A autora até promete um livro acessível, mas com estas palavras:
“Entendendo a linguagem como mecanismo de manutenção de poder, um dos objetivos da coleção [que o livro abre] é o compromisso com uma linguagem didática, atentas a um léxico que dê conta de pensar nossas produções e articulações políticas de um modo que seja acessível, como nos ensina muitas feministas negras.”
Um compromisso (já firmado) é um objetivo? Esse “atentas” está no plural por quê? O plural sobrou aí e faltou no “ensina”, pois “muitas feministas negras” ensinam. A linguagem é tão prolixa que a própria autora se perde. Poderia ter dito assim: “Falar difícil só ajuda os poderosos, então vou escrever de um jeito que todo mundo entenda.” São só umas 50 páginas de Word, mas vou pedir adicional de insalubridade.
A parte do livreto que resolve a nossa questão, a seção “O que é lugar de fala?”, também é muito fácil de ser resumida: o termo lugar de fala só tem um precedente acadêmico, e não é identitário. Ele foi cunhado numa tese de Comunicação sobre o Diário Gaúcho. Assim, o máximo que se pode dizer para defender seu pedigree acadêmico é apontar semelhanças entre “lugar de fala” e “feminist stand point” (ponto de vista feminista), que é um termo feminista acadêmico, para dizer que são a mesma coisa, quando claramente não são (afinal, lugar de fala não vale só pra feminista, e as negras não se estimam apenas feministas).
Se o uso do termo “lugar de fala” só se dá em barracos de militantes nas redes sociais, isso significa que os pobrezinhos usam um conceito inerentemente acadêmico, só que fora da academia, porque são excluídos e oprimidos por essa sociedade machista e supremacista branca.
Para não dizer que a única citação do termo lugar de fala é a da tese de comunicação, há uma referência a certx Jota Mombaça, que consta assim: “MOMBAÇA, Jota. Notas estratégicas quanto ao uso politico do conceito de lugar de fala. Disponível em: <https://goo.gl/DpQxZx>. Acesso em: 15 set. 2017.”
Para quem tem passagem pelo mundo acadêmico, o itálico faz parecer que é um livro com referência incompleta. A URL encurtada ajuda a dar essa impressão: será que vamos digitar o endereço e encontrar um PDF? Não. É só textão de blogue. E Jota Mombaça é alguém de autoridade intelectual respeitável? Resposta: é o autor de “Pode um cu mestiço falar?”, publicado na rede social de textões chamada Medium.
Mas presta?
Acadêmico, o termo não é. Ao menos não fora do Brasil. (Não que ser acadêmico seja lá grande coisa. Afinal, como provou Sokal, a academia é cheia de embusteiros). Mas será que é um conceito útil? O que é, afinal, lugar de fala segundo Djamila Ribeiro?
Não posso transcrever a definição, porque ela não apresenta nenhuma. Não há nenhuma formulação que diga “lugar de fala é isso e isso”. Há argumentos na defensiva, sobre lugar de fala não ser “mimimi”, nem ser errado o personalismo que ele porventura implique. Concluo, então, que lugar de fala é um trunfo e que no livro Djamila Ribeiro oferece suas regras de uso.
Passemos a elas. Para ficar mais claro, acrescento o conceito de “pedigree identitário”. Existem três tipos desse pedigree: raça, sexo e relativo à sigla LGBTT (sic). Todo mundo que não for um homem branco cis hétero tem algum pedigree. Em seguida, se (e somente se) um indivíduo estiver interessado em carreira política, acadêmica, literária ou artística, ele poderá se dirigir a uma espécie de cartório filosófico para expedir um certificado de seu pedigree de negro, gay, mulher, etc.
Esse cartório pode ser a opinião pública de alguém com um pedigree inquestionável, como a própria Djamila, ou um tribunal racial constituído para alguma seleção de vagas e cargos públicos. A concessão desse certificado não se baseia no critério objetivo da cor ou do sexo de alguém, pois nem todos têm “consciência discursiva”. De fato, Djamila concorda que nem todo negro tem lugar de fala de negro – Fernando Holiday e Heraldo Pereira que o digam.
Para ter lugar de fala, é preciso ter a tal “consciência discursiva”, que consiste em aceitar as teses da militância identitária. Uma vez quites com o cartório identitário, o dono do pedigree fica livre para falar todas as baboseiras sobre o seu pedigree sem ser importunado e para fazer disso o seu ganha-pão. Um negro pode falar bobagem sobre O Negro, mas não sobre A Mulher. E, se alguém lhe contraditar as bobagens racialistas, será descartado como racista sem sequer ter os argumentos analisados. Apenas por isso, o lugar de fala já é bastante nocivo ao projeto humano de construir conhecimento e sabota as discussões das democracias.
Pretuguês
Lélia Gonzalez é um nome muito citado por racialistas. Com Djamila, descobri que ela acredita que negros brasileiros falam “pretuguês”, porque preto não fala o "l".
Cito Djamila, que cita Lélia:
“Gonzalez refletiu sobre o modo pelo qual as pessoas que falavam ‘errado’, dentro do que entendemos por norma culta, eram tratadas com desdém e condescendência e nomeou como ‘pretuguês’ a valorização da linguagem falada pelos povos negros africanos escravizados no Brasil. ‘É engraçado como eles [sociedade branca elitista] gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é do que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal quem é o ignorante?’”
Apenas dois parágrafos adiante, Djamila menciona ialorixás e babalorixás, palavras com "l" do idioma iorubá que significam, respectivamente, "pai de santo" e "mãe de santo". Pajubá cai no Enem e o vocábulo ilê, com "l", é tomado do iorubá e significa "casa". Vá lá que, em meio ao vasto continente africano, exista um idioma sem "l": que ela ao menos o nomeasse, para sabermos se veio para o Brasil e se espalhou por aqui de modo a competir com língua que têm L, tais como o português e o iorubá. Depois, teria como concorrente no campo das sem "l" o tupi: por que os brasileiros pobres falariam pretuguês, e não tupiguês?
Lélia pretende menosprezar o ensino do português culto, fazendo crer que ele nada mais é que uma conspiração de gramáticos opressores. Marcos Bagno, autor de Preconceito linguístico, defende essa tese da maneira mais convincente possível citando o mesmo exemplo da troca de "l" por "r", chamada pelos linguistas de rotacismo.
O rotacismo é uma marca do português medieval. Camões clama às musas: “Dai-me hũa fúria grande e sonorosa/ E não de agreste avena ou frauta ruda”. Frauta é flauta. Camões falava pretuguês? Sugiro que Djamila invente um escravo preto que escrevia poesias a mando de Camões e em seguida vá brigar com Marcos Bagno.
Com Djamila, descobri também que a lenda da Santa Escrava Anastácia foi laicizada e globalizada. Uma identitária portuguesa, Grada Kilomba, escreve em inglês que a Escrava Anastácia foi torturada com uma máscara que a impedia de falar. Justo este mês, conheci esse folclore carioca durante palestra do professor Luiz Mott sobre santos negros: o povo viu a imagem de uma escrava com uma máscara fechando-lhe a boca, desenhada por um viajante no séc. XIX para ilustrar castigos de escravos no Brasil, e inventou nome e biografia para a mulher retratada.
Ela seria uma princesa africana virgem que foi escravizada, recusou-se a ser amante do senhor e foi punida com o uso daquela máscara. (A lenda parece ser coisa do Rio de Janeiro, porque a imagem cultuada estava na Igreja carioca do Rosário dos Pretos. Quem quiser ter uma dimensão da lenda pode ler o ensaio de Peter Fry em O Fio da Memória (7 Letras, 2018). Na Bahia, nunca vi esse culto).
A máscara, porém, era comum entre escravas que lidavam com comida e era uma punição para tagarelice ou maledicência. Faltando-nos o pedigree de mulher negra com consciência discursiva, como nós, enquanto sociedade, podemos dizer que a Escrava Anastácia é mito popular e não verdade histórica?
Chantagem emocional
Dar o poder de determinar verdades factuais é entregar os dedos. Depois dos dedos, vêm os braços, que são os favores do Estado.
A linha de argumentação geral do livro é que ser mulher é ruim e que ser negro é horrível. E ser mulher e negra ao mesmo tempo é uma hecatombe em qualquer circunstância. Independe mesmo de contexto. São enquadradas na condição estanque de mulher negra uma ex-escrava do séc. XIX (Sojourner Truth) e uma acadêmica de sucesso do séc. XXI (Grada Kilomba), sem nenhuma observação acerca do abismo social que separa duas.
Truth e Kilomba são mulheres negras. Logo, sofrem opressão – se uma foi escrava e outra dá palestras pelo mundo, não vem ao caso. Lemos que Truth era uma abolicionista, mas, no que depender de Djamila, não saberemos o que significa isso, nem se teve efeitos no Brasil. Por mais que galgue respeito, uma mulher negra é uma oprimida, e ponto final. Chega a ser ofensivo: “as mulheres negras ao mesmo tempo em que fazem parte de algumas instituições não são consideradas como iguais, [vide] o exemplo das trabalhadoras domésticas que trabalham em casa de família. Há a tentativa das pessoas brancas em dizer o quanto elas são importantes e ‘quase da família’, ao mesmo tempo em que elas ainda seguem ocupando um lugar de marginalidade.”
Todos os pesquisadores têm vínculo empregatício com uma instituição. Num lar, só a empregada tem vínculo empregatício com o chefe da família. Mas Djamila nos ensina que, seja doméstica ou doutora, uma negra está sempre em condição socialmente inferior aos seus pares.
Por todo o livro, a autoridade de negras (com consciência discursiva) é apresentada acriticamente e está tácito que não existe nenhuma discordância entre elas. (Truth era uma fervorosa adventista, mas isso se omite). Se uma mulher negra falou, do alto de seu duplo pedigree de oprimida, então é verdade. E quem discorda é imoral.
Assim, política pública vira ocasião para chantagem emocional. Toda política pública deve ser pensada tendo referência mulheres negras, porque elas são as mais oprimidas de todas:
“Quando, muitas vezes, é apresentada a importância de se pensar políticas públicas para mulheres, comumente ouvimos que as políticas devem ser para todos. Mas quem são esses ‘todos’ ou quantos cabem nesses ‘todos’? Se mulheres, sobretudo negras, estão num lugar de maior vulnerabilidade social justamente porque essa sociedade produz essas desigualdades, se não se olhar atentamente para elas, se impossibilita o avanço de modo mais profundo.”
Nada contra olhar atentamente. Afinal, é possível alguém olhar atentamente para um grupo (os amigos, por exemplo) sem propor políticas públicas específicas para eles. A falta de clareza e objetividade, misturada ao dramalhão feito em cima da condição racial, faz passar o subtexto de que só mulheres negras devem ter políticas públicas para si, por uma questão moral à qual a eficácia não diz respeito.
Se o Bolsa Família tivesse sido proposto na era do identitarismo, não passava! Um homem branco cis hétero, fruto da invasão holandesa, passa fome no semiárido. Enquanto isso, Djamila Ribeiro pode mandar beijos de Paris e dar piruetas argumentativas semiletradas para dizer que nascer mulher e negra é a pior coisa que pode acontecer a alguém no Brasil.
Quem for discutir políticas públicas com uma Djamila, tenha em mente que ela raciocina assim: “ainda é muito comum a gente ouvir a seguinte afirmação: ‘mulheres ganham 30% a menos do que homens no Brasil’, quando a discussão é desigualdade salarial. Essa afirmação está incorreta? Logicamente, não, mas do ponto de vista ético, sim. Explico: mulheres brancas ganham 30% a menos do que homens brancos. Homens negros ganham menos do que mulheres brancas e mulheres negras ganham menos do que todos.”
Fatos não são fatos que podem ser destrinchados. Fatos têm que ser corretos do ponto de vista ético. Enquanto Djamila citava a calamidade da violência sofrida por mulheres negras, não deixei de me perguntar onde estavam os homens negros, de mortalidade altíssima por causa de guerras do tráfico. Na certa, dizer que homens negros tenham um problema maior do que as mulheres negras é eticamente incorreto.
O xis da questão: bacharelismo
A coisa mais confusa acerca do lugar de fala é ele implicar a existência. “O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social. Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência.”
Para o senso comum, quem fala? Quem não é mudo. Aqui, porém, falar implica se meter com historiografia, coisa que muito pouca gente de cordas vocais saudáveis faz. “Falar”, em djamilês, significa exercer atividades acadêmicas ou afins. Só tem existência digna quem exerce esse tipo de atividade. Isso nem tem a ver com classe social, pois o dono de uma cadeia de supermercados não tem “fala” nem “existência digna” se está apenas preocupado em aumentar os lucros.
O coelho que se esconde no fundo da cartola tem nome: bacharelismo. Em países de tradição capitalista, a panaceia identitária se chama “paridade de gênero” (pretende colocar mulheres em 50% dos cargos de chefia) e é seguida pela “diversidade” (que consiste em colocar minorias étnicas e LGBT nos quadros). O Brasil não tem essa tradição. Entre nós, o status reside no anel de doutor, no emprego público, no gênio literário, na condição de bem nascido, na de brilhante político. O lugar de fala é o meio de obter tudo isso, na marra e no grito.
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