Ela tem dez anos na vida pública venezuelana. Foi nomeada pelo Parlamento como procuradora-geral da República em 2007 e mantida no cargo em 2014. Tácita e explicitamente, os venezuelanos sempre souberam que Luisa Ortega Diaz é uma peça do governo Hugo Chávez. É mesmo possível, que no imaginário psicológico daqueles que não têm muito claras as divisões do poder nem os mecanismos constitucionais de seleção e nomeação de funcionários, tenha sido o então presidente quem a escolheu e a colocou no escritório que ainda ocupa hoje. Mas na Venezuela os procuradores-gerais não são nomeados pelo presidente, pelo menos não no papel.
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A fórmula do chavismo tem procurado estender seu know-how a outros governos com inclinação semelhante no continente: aproveitar momentos de popularidade, torpezas da oposição política, a letra às vezes ampla da lei, e os recursos do Estado para colocar em lugares chave e decisivos servos fiéis e obedientes. Esses funcionários, em seguida, nomeiam aos chefes dos poderes, e todos juntos montam um quebra-cabeça blindado que assegura a permanência do líder polítoco no poder, e a defesa e ocultação mútua das suas atuações. Tudo sob o abrigo de um "sistema democrático de contrapeso de poderes”, estabelecido na Constituição.
Luisa Ortega foi designada por um Parlamento com maioria chavista, obtida com a retirada da oposição das eleições de 2005 (em um boicote pela parcialidade do Conselho Nacional Eleitoral). A lealdade da procuradora-geral ficou clara na atuação de casos emblemáticos como o da juíza María Lourdes Afiuni, para quem Chávez pediu prisão por 30 anos em um discurso público na televisão em 2009. Afiuni tinha decidido conceder liberdade condicional a um prisioneiro de Chávez. Luisa Ortega cumpriu sua parte na instrução e consolidou a tendência iniciada pelo antecessor Isaías Rodríguez, do uso do procedimento criminal contra a dissidência política.
Hoje, Luisa Ortega jura defender a democracia e a Constituição "mesmo com sua vida". Nas condições atuais, esse juramento é uma ameaça à ditadura do Nicolás Maduro. Ela reconhece que a posição dela é um "cargo político", mas nega qualquer participação partidarista no governo. “A Constituição proíbe isso expressamente para mim”, diz. Isso não a impediu, no entanto, de mostrar publicamente a admiração pessoal por Hugo Chávez, a quem considera "o homem mais humanista que já viveu no planeta", e a cujas palavras se refere como se fossem um evangelho. A Constituição também não impediu que a procuradora-geral fosse uma porta-voz franca, enérgica e disciplinada do governo.
O que faz exatamente Luisa Ortega Díaz?
Durante dez anos, o trabalho de Luisa Ortega Díaz tem sido administrar e conduzir a perseguição do crime na Venezuela. Os números que colocam o país primeiros lugares do ranking envolvendo crime e violência no mundo (com 70-92 mortes violentas por cada 100.000 habitantes, dependendo da fonte), não falam muito bem de seu trabalho. Mas a verdade é que a política criminal não é apenas uma responsabilidade do Ministério Público. As cifras de violência são um legado conjunto de vários componentes governamentais da era chavista-madurista.
A divisão de responsabilidades é algo que a Luisa Ortega deixa claro em suas declarações públicas na atualidade. Hoje, ela separa o que compete a ela e ao seu órgão do que compete ao Judiciário, ao Executivo, às Forças Armadas, e às polícias. Ela também torna públicas informações de homicídios anuais, após oito anos de silêncio do governo e contagens informais de mortes feitas por jornalistas e ONGs em necrotérios. Hoje, Luisa Ortega reconhece ainda que a maioria dos crimes na Venzuela é cometida com armas de fogo, e que, por causa deste cenário, é imperativo desarmar a população.
A vida após Chávez
A lealdade de Ortega ao chavismo continuou intacta após a morte do "comandante" do regime, em março de 2013. Durante o funeral de Chávez, ela afirmou ao pais a “necessidade de continuar o projeto bolivariano", e de que o povo ficaria “tranquilo e seguindo os postulados do líder”. Luisa também dirigiu uma espécie de aviso à comunidade internacional: "este país vai continuar lutando para consolidar a base que iniciou o presidente da República".
Com Maduro no poder, a perseguição criminal dos dissidentes se intensificou e os prisioneiros políticos aumentaram em centenas. O mais emblemático deles, Leopoldo López, foi acusado, preso, julgado e condenado a pouco mais de 14 anos de prisão sob a liderança de Luisa Ortega. Naquela época, ela era uma porta-voz da mensagem de que a Venezuela não tinha “presos políticos”, e que os políticos que estavam na cadeia estavam aí por "crimes comuns". Lopez foi acusado de quatro crimes, e foi responsabilizado publicamente pelos saldos dos protestos de 2014.
Após o julgamento, em 2015, um dos procuradores responsáveis de acusá-lo, Franklin Nieves, fugiu do país e declarou nos EUA que tinha sido pressionado “pelo Executivo e seus superiores hierárquicos” para fabricar e apresentar provas falsas. Na época, Luisa Ortega respondeu que o Nieves se tinha deixado levar por "fatores políticos estrangeiros" e quebrado seu juramento ao governo. “Ele poderia ter se afastado do caso, ele poderia ter desistido do Ministério Público se houvesse irregularidades”, disse ela, ao mostrar para as câmeras o conteúdo de tweets e declarações de Lopez, analisados por "especialistas em semiótica". Era a evidência do suposto crime.
“Isto foi dito pelo sentenciado, Leopoldo López: 'Nosso adversário é Nicolás Maduro e as cabeças dos poderes públicos. Tudo o que passa por articular a rua. Estamos convidando para rua e não é um convite sem risco’”, leu ela, de um papel, como se mostrasse ma faca ensanguentada ou um teste de DNA que incriminasse López nos crimes de instigação pública, danos à propriedade, incêndio e associação criminosa.
Depois de conceder a prisão domiciliar à Lopez em 8 de julho passado, Maduro culpou Luisa Ortega pela prisão do líder da oposição, e Ortega, por sua vez, culpou os tribunais criminais que condenaram o opositor. Ela disse que a acusação do Ministério Público foi feita com provas recolhidas pelo Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional, dirigido pelo vice-presidente da República. No entanto, a procuradora-geral assumiu a responsabilidade por suas ações no caso. “Houve um debate oral e público. O Ministério Público sempre trabalhou com objetividade e transparência em suas pesquisas”, disse ela quando questionada sobre o caso recentemente.
A Luisa Ortega de 2017
“Esta ‘Constituinte Presidencial’ não tem legitimidade”, assinalou Luisa Ortega depois das eleições celebradas pelo governo em 30 de julho. Desde a convocação feita por Maduro, a profissional se opôs à Constituinte. “A Constituinte só busca a perpetuação no poder deste grupo que está aí. Este não é o projeto de país que propunha Hugo Chávez”, defendeu.
Duas sentenças do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) a fizeram denunciar publicamente, em março deste ano, uma "ruptura da ordem constitucional" perpetrada pelo governo. Esses julgamentos foram também o início de mais de 110 dias de protesto público na Venezuela, acompanhados de uma repressão brutal. As sentenças suprimiram as funções do Parlamento (para absorver o TSJ), e autorizaram ao Maduro a legislar de forma ilegal e sobre questões proibidas para ele. A denúncia pública da Ortega causou desconfiança na opinião pública. Ela foi desafiada a comprovar a sua convicção com ações concretas, a atuar no âmbito das suas competências. E ela tem feito isso, despertando a ira da ditadura que não esperava sua rebeldia.
Desde o final de março, Luisa Ortega pediu judicialmente a anulação da Constituinte, desafiou a nomeação irregular de 13 magistrados do Tribunal Supremo de Justiça em 2015 - antes do Parlamento ser formado, em sua maioria, pela oposição; solicitou uma audiência preliminar sobre o mérito para julgar magistrados do Tribunal Constitucional, acusando-os de violar a forma republicana da Nação por suas interpretações abusivas da Constituição; exerceu um recurso constitucional contra a decisão que aprova a Constituinte sem consulta popular; recusou 17 magistrados; e desconheceu a autoridade do TSJ publicamente. Este órgão, segundo ela, confere decisões "que não têm nível legal", sendo ilegítimo e inconstitucional.
Hoje, Luisa Ortega reconhece que na Venezuela há presos políticos, uma vez que existem crimes que são políticos. Ela também anunciou recentemente que o Ministério Público está investigando funcionários do governo sobre o caso Odebretch. São 36.124 as investigações abertas, número que está aumentando. A Procuradora estima que o esquema de corrupção, que envolve funcionários do atual governo, seja equivalente a mais de 30 mil milhões de dólares.
A procuradora-geral também confronta teorias do governo sobre mortes durante a repressão dos protestos e rejeita o uso de tribunais militares contra civis. “O Estado de direito tem sido desmantelado. Estamos em um estado de terror”, diz ela.
O governo do Maduro acusou Luisa Ortega de insanidade e solicitou que ela fosse submetida a uma avaliação psiquiátrica. Também foi iniciada uma audiência preliminar sobre o mérito para acusá-la criminalmente e estabelecida a proibição da saída de Luisa do país. As contas bancárias e os bens dela também foram congelados. Diosdado Cabello, deputado chavista e presidente do parlamento em 2014, quando Ortega foi ratificada em seu cargo, se arrependeu publicamente por ter a apoiado na época, e a chamou de traidora. O TSJ emitiu decisões que tiram poderes do Ministério Público e entregam ao Ombudsman, ainda fiel ao chavismo-madurismo.
O TSJ também tentou impor a Luisa Ortega uma procuradora-adjunta (o segundo oficial mais importante do Ministério Público); uma funcionária que a Ortega descreveu como “corajosa” no passado quando o governo dos Estados Unidos a sancionou em 2015 com a suspensão de seu visto americano, e o congelamento de seus ativos no exterior. Katherine Harrington se destacou por acusar criminalmente vários políticos da oposição, como Antonio Ledezma (ainda na prisão) e María Corina Machado, entre outros. Ela também participou na acusação do Leopoldo López. Ortega qualificou a nomeação dela como inconstitucional, e confirmou como procurador-adjunto perante a Assembleia Nacional seu oficial de confiança, Rafael González Arias.
Luisa Ortega sabe o risco que corre hoje. “Tudo é possível, até que eles ordenem um mandado de prisão para mim. O máximo que podem fazer é me matar. Bem, que façam”, disse ela em uma entrevista em 11 de julho.
Algumas pessoas se perguntam porque ela não agiu antes, por exemplo, desafiando magistrados nomeados em 2015, que não teriam requisitos para essa posição. Luisa Ortega conhece bem as condições necessárias para a função: a Constituição exige que o procurador-geral reúna os mesmos critérios de elegibilidade que os magistrados do Tribunal Supremo. Ortega é uma advogada hábil e muito estudada com um doutorado em Direito, duas especializações e um mestrado. Ela tem muito mais de 15 anos de prática de Direito e exerceu o ensino universitário. Também não tem antecedentes criminais - o mesmo não pode ser dito do magistrado presidente do TSJ.
A postura recente contra os abusos da ditadura torna a procuradora poderosa nos dois lados políticos, mesmo com as contas congeladas e incapaz de deixar o país. Ela abriu o caminho para o chamado "chavismo democrático", composto por outros funcionários, líderes e influenciadores do chavismo, como a antiga Ombudsman Gabriela Ramírez, o analista político Nícmer Evans, e seu marido, o deputado chavista Germán Ferrer. Eles também se manifestaram contra o governo de Maduro e a Constituinte. Outros poderiam ser encorajados a seguir o exemplo. No entanto, uma das ameaças do governo é substituir todos os poderes do estado com a Assembleia Constituinte imposta, incluindo a Procuradoria-Geral e o Parlamento. Luisa Ortega adverte que ela “incomoda porque não oculta os fatos para proteger o poder”.
Para a oposição, a nova aliada é, finalmente, uma autoridade com atitude institucional. Na luta contra a ditadura, Luisa Ortega é bem-vinda.
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