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Resumo da reportagem
- Lula relacionou a crise venezuelana às sanções dos EUA, mas especialista aponta que a crise econômica já existia antes dessas sanções.
- A economia da Venezuela, dependente do petróleo, já estava em estado crítico, com inflação alta e aumento da pobreza antes das sanções.
- As sanções dos EUA à Venezuela atingiram 431 indivíduos e entidades desde 2009, intensificando-se após 2017 e impactando significativamente a receita de exportação de petróleo do país.
Apesar das declarações de Lula nesta semana, relacionando a crise venezuelana ao bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos ao regime ditatorial de seu colega Nicolás Maduro, o caos econômico do país vizinho não pode ser atribuído às sanções americanas. É o que afirma o professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Paulo Afonso Velasco Junior, coautor do livro “A Venezuela e o Chavismo em Perspectiva” (Appris Editora, 2022), em entrevista à Gazeta do Povo, a respeito das manifestações do presidente. A afirmação encontra respaldo em índices econômicos venezuelanos, que já apresentavam sinais significativamente negativos antes mesmo das sanções mais pesadas.
Em coletiva com Nicolás Maduro na segunda-feira (29), Lula alegou que é “efetivamente inexplicável um país ter 900 sanções porque o outro país não gosta dele” e alegou que a caracterização do regime como antidemocracia e autoritarismo seria uma mera “narrativa”. As falas foram criticadas pelos presidentes do Uruguai e do Chile. No dia seguinte, encerrando a cúpula da América do Sul, em Brasília, Lula tentou consertar a declaração. Em vez do número de sanções, ele disse que “a Venezuela sofre um bloqueio de mais de 900 itens”, opinando que “é uma coisa desumana, uma coisa que jamais deveria existir”.
“É uma declaração infeliz, não tenha dúvida”, analisa Velasco Junior. Para ele, não há nada novo, pois Lula “é dado a celebrações efusivas de autocratas”, indo além dos ditadores latino-americanos, de Muammar Gaddafi (Líbia) a Mahmoud Ahmadinejad (Irã), desde o seu primeiro governo. “A gente não pode atribuir às sanções americanas” o caos econômico da Venezuela, acrescenta. Elas tiveram um impacto, especialmente as impostas desde 2017 no governo Trump, reconhece o especialista. “Mas o caos vinha de antes, o país já estava numa situação absolutamente dramática do ponto de vista socioeconômico”, explica.
O caos econômico antecede as sanções
A inflação na Venezuela atingiu 255% em 2016, um ano antes das primeiras sanções significativas dos Estados Unidos contra o regime de Maduro, segundo o Banco Mundial. O índice estava em crescimento exponencial desde 2012, e já a partir de 2009 chegava perto de 30% ao ano. Também antes das sanções mais pesadas, a proporção de venezuelanos vivendo abaixo da linha da pobreza cresceu nove pontos percentuais só entre 2015 e 2016, de acordo com a Pesquisa sobre Condições de Vida na Venezuela (Encovi), feita por universidades e organizações sem fins lucrativos.
Um motivo do caos foi a aposta monotemática no petróleo, desde Hugo Chávez (antecessor de Maduro, que morreu em 2013), cujo preço oscila bastante no mercado internacional. Economias mais diversificadas, que são mais livres, não têm as mesmas vulnerabilidades que economias com muito controle central, como é o caso de tentativas de estabelecer o socialismo, a exemplo do regime bolivariano.
Mas até o setor escolhido como locomotiva foi negligenciado: a estatal petrolífera PdVSA (Petróleos de Venezuela S.A.) já estava sucateada, com falta de investimento, o que contribuiu para a queda na produção de petróleo, agravante às oscilações de preço. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em seu relatório anual de 2016, informou que a Venezuela e a Líbia foram os únicos entre 13 países membros com duas quedas consecutivas no PIB. A OPEP também comentou que a própria Venezuela relatou uma queda de 10,4% em sua produção diária de barris de petróleo por dia desde o ano anterior.
“Irresponsabilidade fiscal, inflação de vários dígitos, queda dramática do PIB (produto interno bruto), a situação é muito perversa”, pontua Velasco, “mas não pode ser atribuída em termos de causalidade às sanções americanas — as sanções ampliaram a crise, mas não causaram a crise”, reforça.
Após as sanções, a inflação do bolívar atingiu a marca de 100.000% em 2018. O que se pode questionar, segundo o doutor em ciência política, é a eficácia das sanções para conter Maduro. Isso porque o ditador se mantém no poder com apoio dos militares e aparelhamento do Estado, tomado de clientelismo e corrupção, que antecedem o próprio movimento bolivariano que criou a ditadura.
As sanções “dificilmente impactam ou minam o governo que é alvo, acabam prejudicando muito mais a sociedade já sofrida de um país governado por autocratas, em que há uma crise humanitária e violações de direitos humanos de toda sorte”, reflete Velasco.
O que são as sanções e como funcionam
Sanções são medidas tomadas por um (unilaterais) ou mais países (multilaterais) para pressionar outro país, organização ou até indivíduo a mudar de comportamento. Apesar da eficácia questionada, elas são uma das principais ferramentas para mediar conflitos em relações internacionais sem recurso ao poderio militar. A maioria das sanções contra a Venezuela vieram após a repressão de protestos contra a ditadura, em 2014 e 2017.
Um tipo comum é a sanção econômica. Os Estados Unidos proibiram o Estado venezuelano de acessar serviços americanos em finanças, fechou contas bancárias de autoridades do país e impediu empresas americanas de fazer negócios no setor petrolífero da Venezuela. O regime respondeu a muitas dessas medidas alinhando-se com outra ditadura que tenta substituir o protagonismo americano no mundo, a China, mais fechada e provocativa desde a ascensão de Xi Jinping.
Velasco cita como exemplo de sanção econômica o bloqueio de ativos da Citgo Petroleum, subsidiária da PdVSA que atuava nos Estados Unidos com 10 mil postos de gasolina. A Venezuela está envolvida diretamente em apelações na Justiça americana sobre as consequências das sanções. A agência Reuters informou, no começo de maio, que credores da Citgo estão em vias de tomar as ações da refinaria como pagamento. Um leilão judicial foi marcado, sem impedimento do Departamento do Tesouro dos EUA, que vinha protegendo a empresa de ser desmembrada desta maneira desde 2020.
Segundo o CNAS (Centro por uma Nova Segurança Americana), organização sem fins lucrativos bipartidária sediada em Washington D.C., desde 2009 os EUA impuseram sanções a 431 indivíduos e entidades venezuelanas. Entre 2009 e 2015 (marcando a transição de Chávez para Maduro), foram menos de cinco sanções por ano, na maior parte relacionadas à falta de colaboração para conter o tráfico de drogas ilícitas e ao apoio financeiro oferecido pela Venezuela ao grupo terrorista Hezbollah.
A pressão se intensificou a partir de 2014, quando o Congresso americano aprovou a Lei de Defesa dos Direitos Humanos e Sociedade Civil na Venezuela. O então presidente Barack Obama, em 2015, assinou uma ordem executiva que enfatizava violações aos direitos humanos no país latino após Maduro reprimir protestos, além de práticas antidemocráticas e corrupção. A ordem organizava um programa de sanções específico para o país. Sete autoridades venezuelanas foram alvo por sua participação na repressão aos protestos. No governo Obama foram 20 sanções ao todo.
Já no primeiro ano, o governo Donald Trump (2017-2020) mais que dobrou o número de sanções, em sua campanha de “máxima pressão”. Foi dificultado o acesso de Caracas ao dólar, para isolamento financeiro da ditadura. Com a restrição à PdVSA, o regime tentou driblar as sanções estabelecendo em 2018 a criptomoeda “petro”. Trump respondeu com uma ordem executiva banindo todas as transações com o petro. Isso marcou uma aproximação maior de Maduro com o eixo autocrático da Rússia, China e Irã. Outra ordem executiva de 2019 atingiu a marca de 148 sanções (80% delas naquele ano) envolvendo os setores do ouro, petróleo, finanças e defesa. Até o Banco Central da Venezuela foi afetado.
As sanções à PdVSA reduziram a receita com a exportação de petróleo no país de US$ 4,83 bilhões (R$ 24,7 bilhões) em 2018 para US$ 477 milhões (R$ 2,44 bilhões) em 2020. Na análise completa do CNAS, publicada em 2021, indivíduos representam 38% das sanções, entidades 33%, navios 16% e aviões 13%.
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