O posicionamento de Lula no anúncio da ampliação do Brics – grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – reforça um esforço diplomático do presidente em agradar aos chineses, enquanto não se importa em desferir críticas a potências europeias. Elogiado por regimes ditatoriais, como Cuba e Nicarágua, o ingresso no bloco de seis países não alinhados ao Ocidente e que não representam ameaça ao poder de Xi Jinping posiciona o Brasil de forma mais concreta em meio a um “clube de ditaduras” comandado pela China.
“O nosso [bloco, o Brics] não pensa só economicamente, o nosso também pensa politicamente. E é por isso que eu acho que o Brics está consolidado como uma referência. Qualquer ser humano, jornalista, cientista político que quiser discutir a geopolítica econômica, a geopolítica científica e tecnológica, a geopolítica de qualquer coisa vai ter que conversar com o Brics também, não é só com Estados Unidos e G7 [grupo de sete dos países mais industrializados do mundo]”, afirmou Lula, durante entrevista coletiva em Joanesburgo, na quinta-feira (24), no encerramento da 15ª Cúpula de chefes de Estado do Brics. ““Nossa diversidade fortalece a luta por uma nova ordem, que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século XXI”, disse o petista.
Confira algumas situações em que Lula deu declarações críticas sobre a Europa, mas ignorou as mesmas mazelas por parte da China, como tem feito com as ditaduras latino-americanas:
Liberdade de imprensa
Em 2021, Lula assinou uma carta pedindo a liberdade do jornalista Julian Assange, fundador do WikiLeaks, e classificando como “grave erro judicial” a determinação da corte britânica de permitir sua extradição para os Estados Unidos. Em maio deste ano, em viagem a Londres para a coroação do Rei Charles III, ele voltou a criticar o judiciário da Inglaterra: "É um negócio maluco. A gente briga e fala em liberdade de expressão. O cara está preso porque denunciou as falcatruas. E a imprensa não se mexe na defesa desse jornalista. Eu sinceramente não consigo entender", afirmou Lula.
Um relatório da Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) divulgado neste ano, mostra que, desde 2020, a repressão mais intensa do regime de Xi Jinping levou pelo menos 200 jornalistas chineses a buscar exílio em países como Reino Unido, Canadá, Taiwan, Estados Unidos e Austrália, fugindo de ameaças, prisões e condenações arbitrárias. Em maio, a China tinha 101 jornalistas presos, só perdendo para a Coreia do Norte como o país com a pior liberdade de imprensa do planeta. O governo Lula, no entanto, nunca emitiu comentários sobre essas violações.
Dívida com poluição
“Não foi o povo africano que poluiu o mundo. Não foi o povo latino-americano que poluiu o mundo. Na verdade, quem poluiu o planeta nos últimos 200 anos foram aqueles que fizeram a Revolução Industrial e, por isso, têm que pagar a dívida histórica com o planeta Terra”, afirmou Lula em junho, durante um evento em Paris.
Atualmente, a China é a maior poluidora do planeta e, embora dados recentes mostrem que mais da metade da emissão de gás carbônico do mundo ocorreu de 1990 para cá, Lula ainda reforça sua tentativa de aliviar para a China: "Não foi a China quem fez a Revolução Industrial, a Revolução Industrial vem de 200 anos atrás. Quero saber se essas pessoas estão pagando a dívida que têm com o planeta".
Acordos bilaterais
Em discurso na cúpula do Mercosul, no mês passado, Lula afirmou ser “inaceitável” a proposta da União Europeia para firmar um acordo comercial com o bloco. “É inadmissível abrir mão do poder de compra do estado — um dos poucos instrumentos de política industrial que nos resta. Não temos interesse em acordos que nos condenem ao eterno papel de exportadores de matérias-primas, minérios e petróleo”.
A China é, hoje, destino de mais de um quarto das exportações brasileiras, e as commodities dominam a lista de produtos. As sete mercadorias mais exportadas para lá são soja, carne bovina, celulose, açúcar, carne de frango, algodão e carne suína. Apesar do interesse chinês em matérias-primas, em janeiro Lula reforçou o interesse de um acordo entre a China e o bloco: “Apesar de o Brasil ter a China como seu maior parceiro comercial, nós queremos negociar com os chineses enquanto Mercosul”, disse.
Culpa pela guerra
“A paz está muito difícil. O presidente [da Rússia Vladimir] Putin não toma iniciativa de paz, o [presidente da Ucrânia, Volodymir] Zelensky não toma iniciativa de paz. A Europa e os Estados Unidos terminam dando a contribuição para a continuidade desta guerra”, afirmou Lula, durante uma viagem aos Emirados Árabes Unidos, em abril.
A União Europeia rebateu as acusações, afirmando que a Rússia é a responsável pela “agressão ilegítima” e que EUA e o bloco apenas têm ajudado a Ucrânia a exercer seu direito legítimo à defesa. Já a China, antes mesmo da invasão russa ao território ucraniano, declarou apoio à Rússia nessa disputa, e estaria enviando secretamente armas e equipamentos militares para Putin. Com as sanções ocidentais à Rússia, a China também passou a ser o parceiro comercial mais relevante do país desde o ano passado.
Pobreza
Em junho, participando de um encontro sobre clima com líderes do G20, Lula criticou a ausência de discussões europeias sobre a pobreza e a situação calamitosa de países como o Haiti. “Junto da questão climática, nós temos que colocar a questão da desigualdade mundial. Não é possível que em uma reunião entre presidentes de países importantes a palavra ‘desigualdade’ não apareça. Nós temos um mundo cada vez mais desigual e, cada vez mais, a riqueza está concentrada nas mãos de menos gente”, disse.
Na China, embora Xi Jinping venha propagandeando uma erradicação da pobreza, muitas pessoas vivem em condições financeiras e laborais insalubres, mas o assunto é tabu, e vídeos que mostrem pobres são deletados pela ditadura. Um estudo recente também alerta sobre a existência de 400 milhões de chineses sem acesso à educação adequada, correndo “o risco de se tornarem deficientes cognitivos”.