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Hidrogênio

“Maioria silenciosa” discorda dos carros elétricos. E eles estão certos

Veículo elétrico sendo abastecido no Uruguai: hidrogênio oferece vantagem em autonomia e abastecimento mais rápido, equivalente ao de um carro a gasolina
Veículo elétrico sendo abastecido no Uruguai: hidrogênio oferece vantagem em autonomia e abastecimento mais rápido, equivalente ao de um carro a gasolina (Foto: EFE/ Alejandro Prieto)

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A sabedoria popular que aconselha a “não colocar todos os ovos na mesma cesta” tem começado a ressoar na indústria automobilística mundial, diante da aposta massiva em carros elétricos como alternativa aos veículos movidos a combustíveis fósseis. Em dezembro, o presidente da Toyota, Akio Toyoda, disse haver uma “maioria silenciosa” no setor que “se pergunta se os veículos elétricos são realmente bons de se ter como opção única”, mas a pressão política os impede de dizer isso em voz alta. Na contramão da onda elétrica, a montadora japonesa anunciou seis modelos de automóveis a hidrogênio, uma “rebeldia” que tem tudo para dar certo e que figura nos planos de outras montadoras, como Hyundai e BMW.

Elemento mais abundante no universo e quarto no Planeta, o hidrogênio é mais vantajoso em alguns aspectos importantes, como autonomia (enquanto um veículo elétrico pode percorrer cerca de 320 quilômetros, um a hidrogênio ultrapassa 480 quilômetros) e tempo de abastecimento (que cai de 45 minutos em um elétrico para 10 em um a hidrogênio). Além disso, carros movidos a hidrogênio não perdem alcance em clima frio, como ocorre com os elétricos. A fabricação também dispensa o lítio para as baterias – um dos dilemas da indústria em relação aos elétricos, já que a demanda tem crescido e o mercado de suprimentos é dominado pela China. Mas também ainda há desafios a serem transpostos, como custo de produção, dificuldade de transporte e altas perdas de conteúdo energético nesse processo.

Utilizar o hidrogênio como fonte de energia não é um conceito novo. Segundo o professor doutor Fernando de Lima Caneppele, da Universidade de São Paulo - Campus Pirassununga, o gás vem sendo pesquisado como combustível desde os anos 1970, em ondas: “nos anos 1970 foi por causa da crise do petróleo. E a última [onda], nos anos 2000 e nos anos 2010, já por conta das mudanças climáticas. Então, hoje, o que se tem falado aqui, como combustível, é um grande passo para a produção de energia limpa e da economia de baixo carbono. Existe a perspectiva muito forte de ser uma forma de transição para a economia de baixo carbono”, já que, quando é transformado em energia, o hidrogênio não emite gases do efeito estufa.

“As outras ondas não vingaram, mas essa veio para ficar porque se consome muita energia e vai se consumir cada vez mais energia – isso aí é inevitável”, acrescenta. O porém, explica o professor, é que “é muito difícil obter o hidrogênio diretamente na natureza. Quase sempre é necessário um tipo de processamento”.

Como se obtém hidrogênio? 

É possível retirá-lo de combustíveis fósseis, como o gás natural, biomassa (que são resíduos de origem animal ou vegetal utilizados na produção de energia), do etanol, do metanol e até da água, por meio da eletrólise da água, uma das grandes apostas das pesquisas pois, dependendo da fonte de energia elétrica utilizada para produzir o hidrogênio, o processo pode resultar em zero emissões de gases do efeito estufa.

“A gente caracteriza o hidrogênio como uma fonte secundária de energia. Então esses processos, físicos e/ou químicos, para separá-lo de onde está ligado e permitir seu uso como fonte de energia, são necessários, e consomem energia", afirma. Atualmente, a obtenção de hidrogênio ocorre principalmente a partir dos combustíveis fósseis, o que "pensando uma transição energética, é muito ruim”. A China, por exemplo, é o maior produtor mundial hidrogênio, mas a quase totalidade é proveniente de combustíveis fósseis.

Vantagem do Brasil

Quanto menos renovável a fonte de onde se retira o hidrogênio, a energia utilizada no processo ou o processo em si, mais sujo é o hidrogênio produzido. Com isso, ele pode ser classificado em cores. O preto, por exemplo, é considerado o hidrogênio mais poluente por ser produzido por gaseificação do carvão mineral.

Segundo João Henrique Paulino de Azevedo, pesquisador da FGV e consultor do Banco Mundial, de 95% a 98% do hidrogênio, dependendo do país, é produzido a partir de gás natural. Por outro lado, o chamado hidrogênio verde (H2V) produzido através da eletrólise da água, utilizando energia de fontes renováveis (principalmente eólica e solar), é o mais sustentável. “Assim, você tem basicamente um hidrogênio, digamos, com zero de emissões”, explica.

E é exatamente neste ponto que o Brasil tem uma vantagem competitiva perante outros países. Por ter 82,9% de sua matriz para a produção de energia elétrica proveniente de fontes renováveis (a média mundial é de 28,6%, segundo dados de 2020 da Empresa de Pesquisa Energética), o país pode ser uma potência na produção do chamado hidrogênio verde. “O verde é o nosso alvo para a transição energética. Não tem discussão. É consenso”, afirma Caneppele.

Obstáculos ao uso do hidrogênio 

O hidrogênio tem se mostrado uma alternativa para qualquer setor, inclusive os difíceis de descarbonizar. “De cara, esse hidrogênio produzido a partir da eletrólise já poderia substituir todos esses setores que já utilizam hidrogênio, hoje, a partir da reforma do gás natural. Além disso, o hidrogênio é um vetor energético muito versátil e pode poderia substituir caldeiras na indústria, toda a parte de calor”, diz Azevedo. Embora tenha alto poder calorífico, explica Caneppele "a baixa densidade desse gás dificulta o armazenamento e o transporte”. Para transportá-lo em forma de gás, além de pensar na segurança (já que é altamente explosivo), seria preciso comprimi-lo em tanques muito grandes de algum material resistente, uma vez que o hidrogênio é bastante corrosivo.

“Pode ser mais vantajoso você transformá-lo em amônia ou metanol, para transportá-lo como líquido, e aí, chegando no outro lado, na Europa, por exemplo, você pode fazer o que eles chamam de desidrogenação. Ou seja, fazer o processo contrário para extrair o hidrogênio. Então você tem um gasto energético para transportar para transformar e depois para ‘destransformar’, digamos assim”, calcula Azevedo. Isso ainda coloca o hidrogênio em desvantagem, sobretudo em longas distâncias. "Por isso a Europa tem anunciado grandes redes de transporte de hidrogênio por dutos que, de fato, é a forma mais interessante, mais econômica e com menos perdas que você tem para transportar o hidrogênio, através de dutos, como é feito, por exemplo, nas redes de gás natural no Brasil”, completa.

A corrida pelo hidrogênio no mundo 

Maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, a China mira um hidrogênio cada vez mais sustentável e quer se tornar o maior produtor e exportador de equipamentos para eletrólise no globo. Outra aposta chinesa é a célula-combustível em veículos.

“O Japão já possui uma estratégia de desenvolvimento da cadeia de suprimentos, incentivo para o uso nos setores de energia, industrial e transportes, que são, na verdade, os maiores consumidores”, explica o professor Caneppele. “Tem também residencial, mas eles estão ‘batendo’ onde consome mais. Eles têm uma estratégia de desenvolvimento e já estão incentivando [o uso]”, complementa.

Na avaliação de Azevedo, a Europa tem o arcabouço regulatório mais evoluído na questão de diretivas de energia renovável e "tem tratado com mais seriedade a questão do hidrogênio, principalmente muito impulsionada pela questão da guerra”.  As metas da União Europeia (UE) incluem a descarbonização da produção de hidrogênio para a indústria química até 2024. Para 2030, a UE tem foco na integração da matriz energética. "Vamos dizer que já vai começar a aparecer naquele gráfico de pizza o hidrogênio, com aplicação na indústria siderúrgica e transportes. E esses transportes incluem o rodoviário de passageiros e de carga, ferroviário, marítimo e aquele que talvez eu acredito que demore mais, por conta de desenvolvimento e segurança, que é a parte de aeroportuário”, projeta Caneppele.

A terceira fase, explica o professor, que vai até 2050, são os setores onde fontes alternativas não são viáveis, o que inclui a importação de hidrogênio. "Se não conseguirem gerar energia para produzir hidrogênio, eles importam e nesse caso o hidrogênio tem que ser limpo.” Isso abre oportunidade para países que possam produzi-lo utilizando fontes de energia renováveis, como o Brasil e o Chile, que tem se mostrado um player global na questão do hidrogênio.

Caneppele conta que o Chile “já tem uma estratégia nacional para se tornar um dos maiores produtores de hidrogênio do mundo para exportar. Eles apostam que, com a energia renovável, inclusive a eólica off-shore [produzida no mar], conseguem produzir muito hidrogênio e exportar mundo afora”.

O potencial do hidrogênio verde no Brasil 

É consenso que o Brasil tem um grande potencial energético em hidrogênio verde, mas o país está atrasado, comparando com outras nações. Na avaliação de Caneppele, “falta uma ação direcionada pelo poder público indicando que a gente quer desenvolver e, de fato, vai desenvolver essa tecnologia para exportar para o mundo”.  João Azevedo afirma que “estamos trabalhando para que o Brasil assuma um papel mais protagonista”, mas acredita que “precisa de mais celeridade nesse processo todo”. Para ele, “não tem uma alocação clara de investimento, quantificado para políticas de incentivo ao hidrogênio", necessárias para desenvolver esse mercado.

Em 14 de março, foi criada no Senado uma comissão especial com a finalidade de debater políticas públicas sobre hidrogênio verde. Até o momento, as iniciativas são isoladas, e o Ceará tem se destacado pelo investimento e também pela disponibilidade de energia eólica. “O Brasil tem muita disponibilidade de fontes renováveis, então pode ser um exportador, mas vai entrar naquele desafio, que é o transporte e o armazenamento”, explica Caneppele. “Se a gente pensar na questão econômica, seria excelente para o país”, defende.

Azevedo acrescenta que há várias empresas, nacionais e multinacionais, interessadas em “investir aqui, já que há vários Memorandum of Understanding [memorando de entendimento], principalmente mais voltados para os portos, que estão colocados como hubs de hidrogênio, que é o Porto de Pecém, no Ceará, o Porto do Açu, no Rio de Janeiro e, na própria Bahia, a questão do Polo de Camaçari, com a Unigel”.

Segundo o pesquisador, há também empresas brasileiras participando de uma licitação subsidiada pelo governo alemão, no valor de 900 milhões de euros (R$ 4,95 bilhões) para construir projetos de exportação de derivados de hidrogênio. Metanol, e-SAF [combustível de aviação sustentável baseado em eletricidade] e amônia fazem parte do primeiro da licitação. São 300 milhões de euros (R$ 1,65 bi) de subsídio para construir projetos de exportação envolvendo cada um desses derivados de hidrogênio para a Europa.

Um estudo recentemente lançado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) concluiu que “é altamente recomendável do ponto de vista da política industrial cobrir o maior número possível de partes da cadeia de valor do hidrogênio. Isto inclui a gama completa de máquinas, equipamentos e sistemas que podem produzir eletrólise, sistemas de armazenamento e transporte etc., em nível nacional".

O levantamento foi feito em parceria com o projeto H2Brasil, integrante da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, e que teve o objetivo de avaliar e estruturar a demanda por capacitações na cadeia do hidrogênio no Brasil. "A fabricação nacional da tecnologia-chave do hidrogênio não é apenas uma questão de oportunidades econômicas, mas também de soberania tecnológica”, acrescenta o relatório.

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