Algumas horas após os ataques aéreos dos EUA em território sírio, a porta-voz de imprensa do Ministério de Relações Exteriores da China respondeu a uma pergunta sobre se Pequim ainda considerava o regime sitiado do presidente sírio Bashar al-Assad como o único governo legítimo da Síria. “Acreditamos que o futuro da Síria deveria ser deixado nas mãos do próprio povo sírio”, respondeu a porta-voz, sem a menor sombra de ironia.
Respeitamos a decisão do povo sírio quanto aos seus próprios líderes e o caminho do seu desenvolvimento”.
A ironia, é claro, é que nem os sírios, nem os chineses escolhem os seus próprios líderes, nem o caminho do seu desenvolvimento (a mídia estatal síria ainda alega que o país é um Estado democrático). Ambos são governos autoritários — um próspero, o outro falido — disfarçados de democracias.
A China é hoje a segunda maior economia do mundo, e seus governantes reinam com um autoritarismo tão implacável que políticos do mundo todo os invejam. E, no entanto, Pequim segue insistindo – apesar de sua falta de eleições justas e diretas, da falta de uma mídia sem censura e da falta de um poder judiciário independente – que o país é democrático.
12 valores socialistas
Um artigo recente publicado pela Xinhua, a agência de mídia estatal chinesa, declarava que “na China, democracia significa que ‘o povo é o mestre do país’”. Numa viagem a Pequim feita em outubro, eu observei vários pôsteres com a imagem de um senhor de idade que pedia aos chineses para “valorizarem o poder da democracia, lançando seus votos, sagrada e solenemente”.
Um dos slogans favoritos de Xi Jiping, secretário do Partido Comunista chinês, se refere aos “12 principais valores socialistas” – dentre os quais a democracia fica em segundo lugar apenas para a prosperidade nacional. Na conferência da qual participei no ano passado, vários oficiais do Partido Comunista chinês foram rápidos em enfatizar que, assim como os Estados Unidos, é razoável e adequado descrever a China como uma democracia.
Considerando a posição política em que Pequim se encontra agora, essa é uma alegação assombrosamente obtusa. Na realidade, o sistema político chinês, que garante a obediência ao governo às custas da liberdade pessoal, só poderia ser descrito como autoritário. É verdade que Xi não é um tirano como Mao Zedong, que detinha um poder virtualmente absoluto. Além do mais, Xi chegou ao topo do Partido Comunista através de um processo de seleção. O eleitorado de Xi, no entanto, não é o público em geral, mas sim um grupo muito menor do topo das elites: as centenas de membros ativos e aposentados do Politburo (o corpo político de elite), os secretários provinciais do Partido, generais, assessores sênior e os CEOs das grandes corporações estatais e privadas.
Hipocrisia e falsidade
Então, por que é que a China continua se chamando de democracia? Alegações dessas permitem a Pequim legitimar suas próprias ações – e, no caso da sua perspectiva sobre os ataques norte-americanos, legitimar também as ações do governo sírio – como sendo representantes da vontade popular.
Essa hipocrisia e falsidade vêm servindo bem a Pequim.
“Imagine se o país se chamasse Autocracia Popular da China ou Autocracia Gloriosa da China”, disse Perry Link, professor da University of California em Riverside, que há décadas vem estudando as questões de direitos humanos na China. Alternativamente, diz ele, nomes como a República Popular da China, ou também, por exemplo, a República Democrática Popular da Coreia – o nome oficial da Coreia do Norte –, transferem o ônus da prova, de comprovar que o país é realmente democrático, para o outro lado da relação.
Sim, Pequim com a palavra “democracia” quer dizer alguma coisa bem diferente do sentido que os norte-americanos atribuem a ela – e isso tem muito a ver com as origens ideológicas do Partido Comunista chinês. Vladimir Lênin era defensor de um “centralismo democrático”, sistema no qual quem ditavam as políticas eram oficiais supostamente eleitos de forma democrática. De modo semelhante, Mao clamava pela “ditadura democrática do povo” – uma ditadura feita pelo povo, para o povo, supostamente superior ao sistema “falido” da “democracia burguesa ocidental”, nas quais as elites saqueavam a classe trabalhadora.
Populismo
Em seu ensaio de 2015, “O Sonho Populista da Democracia Chinesa”, Elizabeth J. Perry, cientista política da Harvard University, contextualiza a democracia chinesa como sendo um sistema mais próximo do populismo. Ela cita Xi Zhongxun, ex-chefe de propaganda (e o falecido pai do líder atual da China), que no passado havia exortado seus colegas de partido a “colocarem a mão na massa em prol das massas”.
Em novembro de 2014, quando um governo Trump ainda era uma coisa inimaginável, o embaixador chinês de longa data nos EUA, Cui Tiankai, comparou o sistema político estadunidense com o da China. “Nos Estados Unidos, você pode ter alguém que até uns anos atrás era desconhecido, e de repente essa pessoa pode concorrer a um cargo dos mais altos, porque tem acesso ao uso de todos os tipos de mídia”, disse-me Cui em entrevista. “Se você olha os líderes chineses, eles passam longos anos fazendo trabalho de base”.
De fato, Xi e a maioria da elite chinesa foram políticos durante sua vida inteira. Ao longo de quase quatro décadas na política, Xi serviu de suplente no Congresso nacional chinês, de comissário político no exército, de vice-prefeito executivo de uma das maiores cidades do país, de secretário de província do Partido, e assim por diante.
Mas, como os sírios aprenderam com suas décadas de governo autoritário, e, como a população dos EUA está aprendendo agora com um presidente que só tem apenas uma relação muito tênue com os fatos, mentir para a população não oferece nenhuma base sólida para um bom governo. Nos sete anos durante os quais eu morei na China, nenhum chinês que não fosse filiado ao Partido Comunista era capaz de me olhar nos olhos e dizer que eles estavam vivendo numa democracia.
Cui, em sua justificativa da autocracia chinesa, me disse que, para governar “um país tão grande, você precisa da experiência” de ter servido por décadas por toda parte na nação. Isso é discutível, mas é uma declaração muito mais verdadeira do que fingir que a China é democrática.
*Isaac Fish é jornalista e pesquisador sênior do Centro de Relações EUA-China da Asia Society. No momento, está tirando um ano sabático do seu trabalho na Foreign Policy Magazine.
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