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Mandetta no “Roda Viva” e a tara dos brasileiros por um governo centralizador

O ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta no Roda Viva (Foto: Reprodução)

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Foi-se o tempo em que os jornalistas costumavam se portar como a voz do público questionando as autoridades. Hoje, muitos até questionam, mas sempre à luz da agenda de sua bolha. Quando Haddad foi entrevistado no Roda Viva, os entrevistadores faziam um recall do seu candidato, que deveria ter se saído melhor nas urnas. Se você – como a maioria do eleitorado brasileiro – nunca foi um eleitor de Haddad, então o programa não é para você. É o programa da bolha bem pensante.

Com Luiz Henrique Mandetta, os entrevistadores tentavam emplacar a seguinte visão: Bolsonaro é Satanás, a culpa das mortes por covid é toda dele, Mandetta tem um pé no Inferno por ter sido seu ministro e não ter proibido todo mundo de tomar cloroquina, mas tem um pé no Céu por ter saído do governo brigado com Bolsonaro e por ter defendido a Ciência. Um dos pecados de Mandetta é ter aderido a um governo conservador, pois o conservadorismo é contrário à Ciência e, portanto, à saúde.

Confusões dos entrevistadores 

Uma confusão subjacente à entrevista é a de colocar Mandetta como um defensor intransigente do lockdown nacional à moda argentina, o que não é verdade. Tudo se passa como se Bolsonaro fosse um antilockdown e Mandetta um pró lockdown, sem nuances.

Quem assistiu às coletivas lembrará que a defesa do lockdown era condicionada à disponibilidade de leitos, e que o ministério, ao contrário do telejornalismo, frisava que somos um país continental que não deveria ser tratado de maneira igual. Não fazia sentido, por exemplo, fechar uma cidade do interior do Piauí porque a capital de São Paulo estava com um surto.

Outra confusão subjacente é quanto ao modo de proceder numa pandemia inédita. Tudo se passa como se a Nossa Senhora da Ciência tivesse na manga uma solução para a covid já em fevereiro, e toda morte pudesse ser imputada à má administração. De fato, a humanidade está muito mal acostumada com o progresso científico, e os bem pensantes não sabem que a ciência começa com a incerteza. Num vírus novo, surgido de uma ditadura que oculta dados e dá chá de sumiço em médicos, as dúvidas são abundantes, e as certezas são escassas.

Mandetta mais democrático que os entrevistadores 

Mandetta não os deixou emplacar a sua narrativa. Os jornalistas queriam que Bolsonaro sofresse um impeachment por crime de responsabilidade, que o STF tomasse providências, e lembraram que a esquerda o denuncia como genocida. Mandetta discordou, e, didático, comparou a situação da covid à de uma guerra. Se o Brasil manda seus soldados para uma furada, o presidente será julgado por isso pelas urnas, pela opinião pública e pela apreciação de sua conduta, passada a guerra. Na pandemia, não existia procedimento certo já descoberto. Menciona como exemplo a crença de que lugar quente não tem coronavírus – crença que, segundo ele, levou os amazonenses a não fechar as fábricas da Zona Franca.

Essa falta de conhecimento dizia respeito sobretudo à medicação. A opção de Mandetta, que o levou à maior briga com Bolsonaro, foi a coisa da cloroquina. Para ele, só coisas que tivessem a eficácia provada deveriam ser usadas no protocolo de atendimento. A definição de um protocolo de atendimento não é a mesma coisa que um atendimento compulsório para todo e qualquer brasileiro. Não há uma planificação central, à maneira tecnocrática, que proíba médicos de testarem novas soluções. Por isso, apesar de não ser protocolo, médicos estavam livres para receitar cloroquina se bem entendessem. Caso o médico matasse o paciente, seria responsabilizado por isso. Eu até agora não sei se eles entenderam que a criação de um protocolo não é a mesma coisa que uma planificação central autoritária do tratamento, e acho que não.

A briga de Mandetta, portanto, foi causada por essa não-inclusão da cloroquina no protocolo, bem como pelos pronunciamentos do presidente, que chamava a covid de gripezinha e apresentava a cloroquina como uma espécie de garrafada infalível.

Natália Pasternak, dona de um site de divulgação científica, apontou com razão que a homeopatia é pseudociência, e reprovou o fato de ela ter sido usada em Campo Grande durante a gestão de Mandetta como secretário municipal. Este se defendeu dizendo que a área é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, e ele apenas obedece. Ela, como que mostrando a invalidade do órgão, apontou que ele aceita a cloroquina também.

Mandetta, ao meu ver, foi democrático ao considerar que o Conselho tem autonomia, e que ele não manda nos médicos que querem usar homeopatia. Pondera que homeopatia não traz malefício nenhum, e que os médicos podem ser punidos caso ministrem de modo danoso a cloroquina aos seus pacientes. De minha parte, não creio que um secretário de saúde, e nem um ministro, devam ter poderes para cassar práticas médicas. A discussão do financiamento de práticas pseudocientíficas é muito pertinente; mas a centralização do poder sobre as práticas na mão do Executivo, não.

Fiquei com a impressão de que, para uma das vozes da divulgação científica no país, um Conselho de Sábios plantado pelo Poder Executivo deve mandar em cada pormenor da saúde brasileira, desde prefeituras até médicos particulares. E essa crença não é a de quem está acostumado a eleições livres, que podem eleger um “obscurantista”.

Mas foi pior ainda, na fala de Pasternak, o abuso de dados para imputar qualquer coisa de ruim ao conservadorismo. Ao que parece, todo mundo que não é antibolsonarista é um terraplanista que odeia vacinas. No Acre, segundo Pasternak, 75% das meninas ficaram sem tomar a vacina de HPV, e isso prova que a agenda conservadora prejudica a vacinação. Que raciocínio é esse? Que se escolhesse um estado, vá lá. Que tal o Rio de Janeiro, cuja capital elegeu um bispo da Universal? Que tal São Paulo, cuja imensa população é representativa do estado de coisas no Brasil? Que tal o Mato Grosso do Sul, estado do ministro? Não: escolheu o Acre. Isso não faz o menor sentido, e esse raciocínio de Pasternak nos leva a desconfiar de sua prudência em qualquer questão que envolva política. Ela catou o ex-feudo de Tião Viana por causa dos 75% e colou no conservadorismo do governo federal. Mandetta, mais sério do que ela, apontou como causa da baixa vacinação uns casos de convulsão que deixaram os acrianos com medo da vacina.

Os entrevistadores imputavam, também, a queda da vacinação a uma simples mudança de governo. Bolsonaro se elege, e pronto: 75% do Acre, e sabe-se lá quantos por cento do Brasil, viram terraplanistas antivacina. A crença no poder central é uma coisa de cair o queixo. Mandetta, prudente, dá aquela explicação nada original, nem contraintuitiva, de que as doenças não assustam mais como antes, ou para usar a expressão batida, as vacinas são “vítimas do próprio sucesso.” Quando tinha surto de poliomielite, ninguém era antivacina.

Coisas interessantes 

Sem dúvida, a crise global de 2020 é um evento histórico que sofrerá muito escrutínio no futuro. Como é uma crise global, Bolsonaro é um ator miúdo, como tantos líderes engolidos pelas contingências externas. Bolsonaro tinha a peculiaridade de ter um ministro mais respeitado do que ele mesmo na pandemia. (Quem se lembrar do pronunciamento sobre o próprio “físico de atleta” não precisa ser um fã de Mandetta para respeitar mais as suas coletivas, ao menos as do começo.) O ministério da saúde liberou recursos, e então podemos dizer que o auge da pandemia foi gerido, no Brasil, pelo Ministro Mandetta em conjunto com prefeitos e governadores. Bolsonaro foi um coadjuvante nessa história. Mas os entrevistadores, obcecados que são pelo seu Satanás, transformam o presidente em assunto principal.

A meu ver, a coisa mais interessante da entrevista ficou por conta de Mandetta, logo na primeira pergunta – que foi cortada por Vera Magalhães para falar coisas desinteressantes. Ele conta que uma das principais dificuldades, que inclusive atrapalhou o atendimento às pessoas, era a falta de material médico. Diz que uma máscara chinesa entra no Brasil custando R$ 0,06, ao passo que uma máscara fabricada em São Paulo custa R$ 0,20. Por essa razão, o mundo inteiro, Brasil incluso, ficou em carestia com a quarentena da China, mais a corrida por global e concomitante por equipamentos de saúde.

Na prática, vimos que a China fez um dumping global, pois as indústrias fecharam por causa dos preços chineses. A discussão desse dumping e os meios que o Brasil encontrou para enfrentá-lo na pandemia são assuntos interessantíssimos. Envolveu, segundo Mandetta, reabrir fábricas de empresas brasileiras, como a Positivo.

Outro assunto interessante é a apreciação da saúde no Brasil daqui pra frente. No lugar de Mandetta e Teich (o breve), entrou um general que acha que no Nordeste tem inverno ligado à Europa. Esse homem é o que vai pegar um SUS cheio de cirurgias represadas por causa da covid.

Por fim, vale registrar que nenhum entrevistador relembrou as falas de Mandetta sobre contar com colaboração de traficante para bater a pandemia. Tocaram no assunto de ele entrar em favelas para – segundo os jornalistas tarados por Brasília – concorrer à presidência. Mas ninguém menciona esse fato escandaloso que é a aceitação pública, por uma autoridade federal, do fato de que em favela quem manda é traficante.

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