Sofrer qualquer tipo de agressão - física, material, psicológica ou moral -, nunca foi uma coisa boa; e um robusto aparato de regras foi forjado ao longo de séculos não apenas para coibir este tipo de prática como para reparar os danos sofridos pelos que estiveram do lado mais fraco da corda: as vítimas.
Por muito tempo, a ciência soube, inclusive, que o status de vítima, ainda que conferisse à pessoa o direito a algum tipo de compensação ou mesmo privilégio, também não era nada vantajoso, sendo associado à baixa autoestima, estresse e a sensações de vulnerabilidade, medo e impotência - sem falar na eventual culpabilização pelo mal sofrido.
Então, vieram os tempos modernos. E vítimas de diversos males - sexismo, racismo, entre outros “ismos” conhecidos e reais - se uniram para denunciar agressores e exigir a reparação por seus atos demandando recursos materiais (dinheiro, emprego, educação) e simbólicos (respeito, tolerância, compaixão).
Seria uma equação justa, se não fosse o cenário perfeito para aproveitadores - coisa que qualquer bom frequentador das redes sociais já reparou. Uma pesquisa da University of British Columbia, no Canadá, divulgada no ano passado, demonstrou que pessoas com traços de personalidade maquiavélicos, narcisistas e psicopatas são mais propensas não apenas a externalizar sua condição de vítima, mas a revestí-la com uma aura de bondade: uma “vitimização virtuosa”.
No documento, os autores do estudo - membros de um grupo de pesquisa chamado Laboratório da Imoralidade - esclarecem que a expressão de uma condição de vítima não necessariamente está atrelada à “Tríade do Mal”, como são conhecidos os traços apontados. Contudo a pesquisa comprovou que pessoas com tendência à autopromoção, ávidas para tirar vantagens dos outros e com pouca preocupação acerca dos efeitos de suas ações na vida alheia são as que têm mais chance de gastar horas e horas exaltando as próprias misérias com uma aura de pureza no Twitter.
Exagerados e desonestos
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores criaram uma “escalas de sinalização” que mede a frequência com que os participantes da pesquisa contavam aos outros sobre as próprias adversidades e infortúnios.
Os pesquisadores desenvolveram uma escala de sinalização de vítimas, variando de um ponto (nem um pouco) a cinco pontos (sempre), que questiona com que frequência os participantes concordam com afirmações como “afirmo que não me sinto aceito na sociedade por causa da minha identidade” e “expresso como pessoas como eu são sub-representadas na mídia e na liderança”.
Eles descobriram que pontuações mais altas de sinalização de vítima estavam altamente correlacionadas com pontuações da “Tríade do Mal”, um resultado que se manteve constante após controle de sexo, etnia, renda e outros fatores que podem tornar as pessoas vulneráveis a maus-tratos. Os padrões se repetiram também em diferentes lados ideológicos.
Os participantes também responderam a um questionário para medir a frequência com que sinalizavam não apenas que eram vítimas, mas que eram boas pessoas. Respondiam, por exemplo, até que ponto concordavam ou discordavam de afirmações sobre ser gentil, justo e compassivo, e se costumam comprar produtos que comunicam o fato de que têm essas características. O resultado: a sinalização de virtude também está significativamente correlacionada com as pontuações em maquiavelismo, narcisismo e psicopatia.
Além das respostas, foi proposto um jogo de cara ou coroa em que os participantes podiam ganhar dinheiro quando venciam - e no qual podiam trapacear facilmente. Em seguida, houve uma dinâmica na qual eram orientados a imaginar que estavam competindo por um emprego com um estagiário, sobre o qual foi informado que o participante em questão “sentia que o adversário não tinha nenhum respeito por suas sugestões”, ainda que fosse amigável no trato.
Os sinalizadores de “vitimização virtuosa” mais frequentes eram mais propensos não apenas a trapacear no primeiro jogo, mas a exagerar nos relatos de maus tratos do tal estagiário para obter vantagens sobre ele, afirmando, por exemplo, que a personagem os “colocava no chão na frente de colegas de trabalho”, ainda que nada na descrição indicasse essa condição.
Como, então, separar os falsos sinalizadores dos verdadeiros? “Essa é a pergunta de um milhão de dólares”, responde a pesquisadora Ekin Ok, líder do estudo, em entrevista à Gazeta do Povo. “Nossa pesquisa diz que sua pontuação na escala da Tríade do Mal é um bom indicador. No entanto, no dia a dia, é muito perigoso presumir que uma pessoa que alega ter sido vitimada está enviando um sinal falso. Em muitos casos, isso não é verdade. Muitas pessoas que dizem ter sido vítimas são de fato vítimas reais. A este respeito, nossa pesquisa simplesmente mostra que 1) emitir o sinal de “vítima virtuosa” é eficaz para aumentar a disposição de outras pessoas em ajudar o sinalizador, e 2) pessoas mal-intencionadas tendem a usar esse fato a seu favor”, explica.
“Não é surpreendente que muitas pessoas se sintam motivadas a ajudar vítimas, uma tendência que pode estar embutida na mente humana por razões evolutivas. Mas a desvantagem dessa tendência é que também pode levar as pessoas a serem facilmente persuadidas de que todos os sinais da vítima são precisos, especialmente quando ela é percebida como uma ‘boa pessoa’. Quando isso acontece, pessoas bem-intencionadas podem alocar seus recursos materiais e sociais para aqueles que não são vítimas nem virtuosos, o que necessariamente desvia recursos daqueles que estão legitimamente necessitados”, completa o estudo.
Virtude para quê?
Para além da compensação material ou simbólica, os pesquisadores reconhecem que externar a condição de vítima pode ter grande impacto positivo na vida das pessoas que, efetivamente, sofreram algum tipo de dano: desde a identificação de outras vítimas e desenvolvimento de senso de pertencimento ao ganho da habilidade de falar a respeito, alertar a comunidade a respeito do problema e evitar novas vítimas.
Mas de onde vem, então, o esforço para parecer bonzinho? Desde a popularização do termo, em meados de 2016, a sinalização de virtude é vista como um vício inerente à Era Digital. Entretanto, a equipe do Laboratório de Imoralidade reforça que vítimas reais também podem sinalizar virtude, uma vez que isso aumenta significativamente as chances de elas receberem ajuda.
“É improvável que uma pessoa que ficou paralisada em um acidente de carro depois de ter assaltado um banco receba muito apoio público. Portanto, formulamos a hipótese de que o meio mais eficaz para buscar uma estratégia de extração não recíproca de recursos, sinalizando a condição de vítima, é apresentar o sinal adicional de ser virtuoso”, explicam os pesquisadores, que acabaram por comprovar a hipótese.
Quando se trata de sinalização de virtude, portanto, nem tudo é exibicionismo barato, ainda que sejamos, sim, evolutivamente exibidos - e isso tem seu valor. É o que explica o psicólogo evolutivo Geoffrey Miller no livro “Virtue Signaling”.
“A seleção sexual e a seleção social para sinalizar a virtude é provavelmente a única maneira pela qual os humanos poderiam ter desenvolvido qualquer interesse em pessoas além de sua família, seu clã e sua rede de comércio - ou em quaisquer animais fora de sua espécie”, explica o especialista. “Sem a evolução de sinalização de virtude nas últimas centenas de milhares de anos, os humanos provavelmente não seriam capazes de se coordenar em qualquer grupo maior do que algumas dezenas de pessoas, muito menos civilizações de milhões. (...) Nunca teríamos visto o fim de escravidão, da tortura animal ou de outras crueldades".
“A linguagem evoluiu porque nossos ancestrais favoreciam parceiros sexuais que podiam exibir o que sabiam, lembravam e imaginavam”, diz Miller, que cita as descobertas do biólogo Richard Dawkins acerca da “sinalização”: a maioria dos sinais que os animais enviam uns aos outros não são mensagens sobre o mundo, mas sobre o sinalizador. “Eles nem sempre falavam a verdade sobre o mundo, mas suas habilidades linguísticas sempre diziam a verdade sobre si mesmos - as qualidades de suas mentes e personalidades que realmente importam para manter relacionamentos e criar filhos juntos”, escreve o psicólogo.
Para Miller, a sinalização da virtude é mais do que só “fingir ser bonzinho”: ela inclui o melhor e o pior dos instintos humanos. O lado pior é suficientemente conhecido. O melhor, para ele, se dá porque a sinalização “é a melhor base para a moralidade humana em relação a estranhos que poderíamos razoavelmente esperar de um processo tão cego e cruel como a evolução genética". No fim das contas, o que distingue os sinais bons dos ruins “não é apenas a confiabilidade do sinal”, mas “os efeitos reais do mundo real em seres sencientes, sociedades e civilizações”.
Cabe recordar que, há 2400 anos, Aristóteles, em seus longos escritos sobre a natureza da virtude, postulou que o caráter é fruto de uma construção. Se, mais do que nunca, é importante lembrar que ser vítima é uma circunstância, separar o joio do trigo na disputa da bondade pública requer que se tenha em mente que ser virtuoso é um hábito. E que - quase - toda virtude é silenciosa.
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