Ouça este conteúdo
Celeiro esplêndido de fatos e de personagens únicas de nossa história essencial, o velho Recife e seu Capibaribe perdem um de seus mais ilustres filhos, depois doado ao Brasil e à política nacional, com o falecimento de Marco Antonio Maciel – assim, com três nomes, como gostava de apresentar-se.
Desde cedo dedicado à política e também ao ensino jurídico – o que poucos sabem – como professor de Direito Internacional, logo iria revelar-se dos mais versados e versáteis artífices da reconstrução democrática e republicana do país, nos últimos 40 anos do século que se foi, tempos de destrutivo confronto de ideologias pretéritas, no qual ainda caíam muros e não se construíam pontes. Logo ascendido ao macrocenário da política nacional, Maciel foi tudo a que se poderia aspirar na vida pública: ministro múltiplo, exemplar na Educação e Cultura; congressista de muitos mandatos; presidente da Câmara e, depois, do Senado e do Congresso Nacional; a culminar como vice-presidente da República e presidente em exercício por seguidas vezes, sempre ativo e proativo.
Onipresente nos vertiginosos momentos que afligiram o Brasil daqueles tempos, era a personificação do homem como animal político, um helênico construtor de consensos, regente de orquestras impossíveis, descobridor de soluções, a prover governabilidade com tolerância e respeito, como lecionava, colunas mestras da vida em res publica.
Cultor do Brasil e dos brasis, Marco Maciel sempre foi atento amigo do Paraná e dos paranaenses, das mais diversas famílias políticas, sem pejos partidários ou de velhos rancores de eleições passadas. Conhecedor de nossa história, tinha como um de seus livros de mesa o volume dos "Perfis Parlamentares" dedicado a Bento Munhoz da Rocha, com discursos parlamentares coligidos, que sempre citava com a alegria única da admiração juvenil por autores diletos. Não há grande professor que não tenha tido grandes professores.
Em todo o seu percurso político, de exemplares momentos de doação e de espírito público, talvez refulja sua marcante atuação na Assembleia Nacional Constituinte, em que a par de Bernardo Cabral, de Nelson Jobim e de Ulysses Guimarães, viabilizou e ajudou a dar forma ao que de melhor foi possível auferir daquele difícil momento. E, nesse sentido, foi inigualável como ordenador do caos, consideradas as circunstâncias do processo constituinte, bem como os resultados em devir de já longevos 33 anos.
Não menos importante é destacar sua atuação, ainda em meio à Constituinte, na presidência da Frente Parlamentar Presidencialista, aparente oxímoro, mas que se referia ao movimento suprapartidário a defender o governo republicano e presidencialista, no intempestivo e inoportuno plebiscito que por razões menores então se levou à cabo. Em exótico foro, reuniam-se, em horas vazias da Biblioteca do Congresso, lideranças partidárias das mais difusas, hiperadversários ideológicos e mesmo intraideológicos, de todos os matizes, na ecclesia de diálogo sine qua non à vida civilizada que só Maciel sabia emular. Homem de fé e de devoção, conciliador, conservador e liberal, na tradição única do Frei Caneca, sempre soube aproximar extremos, na convicção de que inimigos políticos no fundo se parecem e sempre têm muitos assuntos em comum.
Mentor de reformas extraordinárias, trabalhador incansável, Maciel foi o autor, dentre tantas outras iniciativas legislativas históricas, da Lei Brasileira de Arbitragem, uma revolução jurídica em nosso meio, que projetou o Brasil ao mundo, a modernizar e inserir o país na agenda internacional desenvolvida. A lei que leva seu nome, além de tantas outras homenagens, é preito a sua intimorata visão de futuro, ainda que a enfrentar ventos e marés. Homem essencial em seu tempo histórico, sua posse na Casa de Machado de Assis, nos anos de 1980, foi momento símbolo de sua trajetória, em noite inesquecível na Academia Brasileira de Letras, com a presença de tantas e de tão diferentes personalidades, congregadas na mesma admiração e respeito pelo novo imortal.
Exemplo a ser lembrado e a fazer tanta falta nas vicissitudes atuais, Marco Antonio Maciel nos deixa após longa enfermidade, de forma discreta, simples e espartana, como sempre foi sua vida impoluta, ao lado da esposa Ana Maria Maciel, a um só tempo sua eterna Beatrice e Dulcinéa. Aos filhos, João Maurício, Maria Cristiana e Gisele, também remanesce o magnífico legado imaterial, tão bem aludida por Honoré de Balzac em Père Goriot, "A entrada para a sociedade": “o que há de mais belo em alguém contemplar a própria vida e vê-la pura como um lírio”.
Jorge Fontoura é professor e advogado*