“Marighella”, filme de Wagner Moura sobre o homem que chegou a ser considerado o “inimigo número um” da ditadura militar, estreou nesta quinta-feira (14) no Festival de Berlim. Em 2018, Moura já havia dado o tom que a película teria: “meu filme não será imparcial”, disso ao jornal O Globo, e assegurou que a obra abordaria tanto o passado quanto o presente. “A gente (a esquerda) tem que sair das cordas e partir para o ataque”, disse o diretor. O filme não está concorrendo ao Urso de Ouro.
Carlos Marighella, nascido em Salvador em 1911 e morto por agentes do regime militar em São Paulo, em 1969, é um dos personagens mais controversos da história brasileira do século passado. O jornalista Mário Magalhães, autor da biografia Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (lançado em 2012 pela Companhia das Letras), livro que serviu como base para o roteiro do filme, costuma resumir a trajetória de Marighella como alguém que pode ser legitimamente amado ou odiado – mas não ignorado. Mesmo dentro de setores da esquerda a figura do guerrilheiro era vista com reservas. Moura afirmou que teve dificuldade para captar recursos “por causa do tema”
Críticos do posicionamento político do diretor entendem que a obra corre o risco de cair em um tom hagiográfico, dando uma interpretação enviesada sobre aspectos ainda disputados que rodeiam a biografia de Marighella, como sua defesa do terrorismo e o caráter não necessariamente democrático de sua ideologia.
A violência como caminho
Filho de um imigrante italiano e de uma filha de escravos africanos, Marighella militou originalmente no Partido Comunista Brasileiro (PCB), e chegou a ser preso por subversão ainda durante a ditadura do Estado Novo, sob Getúlio Vargas.
Sua participação na vida política brasileira, clandestino ou como homem público, ocupou desde a década de 30 até os anos 60, período que incluiu um mandato como deputado federal pelo PCB na metade dos anos 1940.
Mas foi principalmente sua atuação após o golpe de 1964, quando foi expulso do Partido, fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN) e passou a defender abertamente a luta armada, que o colocou em uma posição de destaque na oposição ao regime militar – o período entre 1964 e sua morte, cinco anos mais tarde, é justamente o principal foco de interesse do longa de Wagner Moura.
São também desse período os livros mais conhecidos de Marighella, nos quais descrevia sua leitura da situação do país ou dava instruções, didaticamente, para quem quisesse pegar em armas contra o governo. A Crise Brasileira, de 1966, é um exemplo do primeiro caso. Nele, o guerrilheiro comenta que “os marxistas” poderiam propor um caminho pacífico para o Brasil se transformar em um país “social-democrático”, mas entendia que o contexto exigia a radicalização. Estavam assentadas as bases teóricas para justificar, mais tarde, a necessidade de ações que ele próprio descreveria como “terroristas”.
Investir em uma conscientização pacífica, como defendia parte da esquerda antes de 1964 (e como os comunistas de outros países, como o Chile, tentariam fazer até o início da década seguinte), era considerado ingênuo e ilusório por Marighella.
“O caminho pacífico da revolução brasileira – no momento atual – teria o efeito de prosseguir alimentando ilusões no povo, e minaria o moral das forças populares e nacionalistas, que precisam de estímulo revolucionário”, escreveu.
O caminho, portanto, deveria ser outro. O texto de A Crise Brasileira prossegue:
“Os fatos indicam que o proletariado (...) não tem outro recurso senão adotar uma estratégia revolucionária, que leve à derrubada da ditadura. (...) Trata-se do caminho não pacífico, violento, até mesmo da guerra civil. Sem o recurso à violência por parte das massas, a ditadura será institucionalizada por um período de maior ou menor duração”.
A defesa do caminho armado ocorreu antes mesmo do endurecimento definitivo do poder militar, que viria com o Ato Institucional Número 5, de dezembro de 1968, e serviria tanto para colocar Marighella no topo da lista de procurados quanto para fornecer a justificativa que o governo buscava para aprofundar as prisões políticas, torturas e execuções que já vinham ocorrendo.
Influência internacional
Conforme a guerrilha foi se radicalizando e a ditadura ingressava em sua época mais violenta, Marighella buscou sistematizar aquilo que havia aprendido na prática com as ações da ALN. Suas cerca de cinquenta páginas datilografadas e depois reproduzidas a mimeógrafo – muitas vezes com variações – por grupos do Brasil e do exterior receberam o título de Minimanual do Guerrilheiro Urbano.
Apesar de elementar e sem grande detalhamento das ações, inclusive ignorando aspectos da luta armada que considerava prejudicial revelar às autoridades, o pequeno livro se tornou uma obra influente entre os movimentos extremistas de esquerda da América Latina e mesmo da Europa (notavelmente, o grupo Baader-Meinhof, que atuava na Alemanha Ocidental).
Publicado na segunda metade de 1969, pouco antes de ser morto, o livro em pouco adquiriu uma aura lendária em função da sua circulação clandestina e da execução de seu autor. Dois anos mais tarde, já era considerado pela CIA um guia mais utilizado para fazer a chamada “revolução violenta” no continente do que os próprios escritos de Che Guevara, até então o grande inspirador dos guerrilheiros no hemisfério.
Muito mais conhecido do que qualquer outro texto que produziu, “o Minimanual representa a culminância da concepção de Marighella depreciada como ‘militarista’ até por correligionários. Nela, a luta de classes se ausenta, e o ‘tiro’ comparece com o status de ‘razão de ser do guerrilheiro”, escreve Mário Magalhães na biografia do fundador da ALN. Meses antes, em uma entrevista que acabaria se tornando a sua última, publicada na revista francesa Front, Marighella havia se definido como um “marxista-leninista” não ortodoxo, e previa que “o Brasil se tornará um novo Vietnã, dezenas de vezes maior”.
Ode ao “terrorismo”
Para chegar a tal ponto, Marighella sistematizou de forma objetiva o que seus seguidores deveriam fazer.
“Estamos em meio a uma guerra revolucionária completa (...) [que] somente pode ser livrada por meios violentos”, garantia.
Em seguida, falava sobre a importância de saber lidar com explosivos, a necessidade de produzir documentação falsa, e o quanto era fundamental que os militantes armados também fossem bons motoristas, para organizarem fugas rápidas – “o motorista da guerrilha urbana é tão importante como o experto em metralhadoras da guerrilha”.
Mas a capacidade de manejar armas era, evidentemente, o foco mais repisado no manual. Era preciso, por exemplo, tomar cuidado com armas automáticas, consideradas um “dreno de munições” nas mãos de homens “pobremente treinados”. Para corrigir essa falha, tornava-se fundamental treinar a mira para aumentar o “potencial de tiro”. “A razão para a existência do guerrilheiro urbano, a condição básica para a qual atua e sobrevive, é o de atirar”, descrevia de forma seca.
De acordo com o momento, entendia Marighella, as táticas podiam ser massivas, como as greves, até a explosão de violência pontual – execuções (de “um espião norte-americano, um agente da ditadura, um torturador da polícia, ou uma personalidade fascista do governo”, etc.), sequestros (para trocar por guerrilheiros presos) e, finalmente, o terrorismo. Este último era “uma ação que a guerrilha urbana deve executar com muita calma, decisão e sangue-frio” e, acima de tudo, “uma arma que o revolucionário não pode abandonar”. Geralmente, destacava, o ato terrorista deveria envolver uma explosão.
Os ensinamentos do Minimanual seriam seguidos muito depois da morte de Marighella, frequentemente deixando vítimas civis pelo caminho – fossem ou não apoiadores da ditadura.
Um dos casos mais famosos foi a execução de Henning Albert Boilesen, executivo dinamarquês que presidia a Ultragaz, em 1971, por membros da ALN. Boilesen, um dos industriais que financiavam o governo na repressão à guerrilha e acusado de participar em sessões de torturas, foi um dos mortos nos chamados “justiçamentos” que a extrema-esquerda promoveu na época. Sua morte ocorreu na Alameda Casa Branca, no Jardim Paulista, mesmo local em que, dois anos antes, o próprio Marighella havia sido vitimado em uma emboscada.
Há vários anos, e com mais intensidade desde a instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV), organizações militares reclamam do não-reconhecimento por parte do governo brasileiro das vítimas dos grupos armados como a ALN. O argumento da CNV era que sua missão, como ocorreu em outros países, se limitava a investigar os crimes do Estado, não de seus opositores.
Em 2009, os Clubes Naval, Militar e de Aeronáutica divulgaram uma lista de 126 pessoas mortas, segundo as organizações, nas mãos de grupos como a ALN. “Suas histórias, absurdamente, foram desprezadas pela Comissão Nacional da Verdade”, dizia o documento, publicado pouco depois da assinatura do termo de criação da CNV.
Divulgado no final de 2014, o relatório final da Comissão dedica treze páginas a Marighella – “durante anos, a ditadura militar se empenhou em associar Marighella à figura de um líder terrorista e sanguinário”, diz o documento. Na nota biográfica, o Minimanual não é mencionado.