Após uma dura batalha, Marine Le Pen, a herdeira da extrema-direita francesa, repetiu o feito de seu pai ao chegar ao segundo turno da eleição presidencial, mas, como ele, não concretizou o sonho.
Jean-Marie Le Pen foi derrotado em 2002 pelo conservador Jacques Chirac ao obter apenas 18% dos votos. Sua filha obteve entre 33,9% e 34,5% dos votos, segundo estimativas de institutos independentes, um resultado inédito, mas insuficiente para derrotar o centrista Emmanuel Macron, eleito com 65,5% a 66,1% dos votos.
Apesar da derrota nas urnas, Le Pen aplaudiu neste domingo o resultado "histórico e maciço" de seu partido, a Frente Nacional (FN).
"Estarei à frente do combate" das eleições legislativas de junho, advertiu, enquanto desejou "sucesso" para o futuro presidente diante dos "enormes desafios da França".
A candidata da Frente Nacional (FN), de 48 anos, soube capitalizar a insatisfação dos franceses com o desemprego e a imigração, e aproveitar a onda nacionalista na Europa para se transformar em uma das favoritas das eleições presidenciais.
Com um programa centrado no "patriotismo" e na "preferência nacional", Le Pen esperava agora desmentir as pesquisas que previam sua derrota no segundo turno. Prometia, entre outras coisas, a suspensão dos acordos de livre circulação no interior da UE, a expulsão dos estrangeiros vigiados por radicalização e a supressão do 'ius soli' (nacionalidade por direito de solo de nascimento).
"No fundo, se eu tivesse que me definir, acho que eu diria apenas que sou intensa, orgulhosa, fiel, evidentemente francesa. Tomo os insultos à França como se fossem contra mim diretamente", explica em seu vídeo de campanha.
"Estamos em nossa casa!", repete nos discursos que pronuncia durante seus encontros de campanha, ao qual vai gente de todas as idades e classes sociais. Um lema que seus adversários consideram como "um grito de xenofobia", mas que ela considera um "grito de amor" à França.
Negócio de família
Marine tinha apenas quatro anos de idade quando seu pai, Jean-Marie, fundou a Frente Nacional, em 1972. Nas quatro décadas seguintes, o velho Le Pen comandaria o partido com mão de ferro – e Marine, apenas sua terceira filha, passaria a maior parte desse período ofuscada não apenas pelo pai, mas por sua irmã mais velha, Marie-Caroline.
Jean-Marie concorreu à presidência da França em cinco ocasiões. Na mais famosa delas, chegou a um inesperado segundo turno, em 2002. O episódio marcou profundamente a política francesa e, embora a Frente Nacional tenha sido incapaz de aumentar seus votos entre um turno e outro (Jacques Chirac seria eleito com 82% do eleitorado), os resultados indicaram que as propostas do partido tinham eco, mas precisavam ser mais bem trabalhadas.
Aquele segundo turno, de certa forma, ajudou a salvar o partido de uma fragmentação que muitos julgavam fatal para a sigla: quatro anos antes, o principal líder jovem da FN, Bruno Mégret, rompeu com Jean-Marie e fundou o Movimento Nacional Republicano (MNR). Mégret levou consigo ninguém menos que Marie-Caroline Le Pen, até então a grande esperança para dar continuidade aos projetos da família na política. O resultados de 2002 ajudaram a manter a viabilidade da FN, e jogaram o MNR em uma irrelevância na qual se encontra até hoje.
Foi no vácuo de Marie-Caroline que Marine Le Pen começou a se entranhar cada vez mais no partido de seu pai. Formada em direito pela prestigiosa Universidade Panthéon-Assas, em Paris, Marine começou a carreira trabalhando como advogada criminalista. Ela integrava as alas jovens da FN, mas não havia concorrido a cargos públicos até 1998, já aos 30 anos de idade, na mesma época em que Marie-Caroline começou a se afastar. Naquele ano, Marine passou a atuar no departamento jurídico da Frente Nacional, e foi eleita pela primeira vez a um cargo público: tornou-se conselheira regional de Nord-Pas-de-Calais.
O outono do patriarca
O rompimento com a filha mais velha de Jean-Marie e a ascensão inesperada de Marine não foram as únicas surpresas que aguardavam os Le Pen em sua longa trajetória na vida pública francesa. No final dos anos 80, a família ocupou o noticiário pela escandalosa separação entre Jean-Marie e a mãe das três meninas, Pierrette Lallanne, com quem fora casado por 26 anos. Pouco tempo após o divórcio, numa tentativa de humilhar publicamente o ex-marido (cuja plataforma tinha um forte tom religioso e moralista), Pierrette posaria nua para um ensaio sensual na versão francesa da revista Playboy.
A filha do meio do casal, Yann Le Pen, também se viu envolvida em um longo escrutínio público da sua vida doméstica após engravidar de sua filha, Marion, ainda solteira. O pai biológico da criança, o jornalista e diplomata Roger Auque, só reconheceria a paternidade em suas memórias póstumas, publicadas em 2014. Atualmente, Yann é a única representante do clã fundador da Frente Nacional que não persegue um lugar na política. Mas a filha, Marion Maréchal-Le Pen, começou cedo: em 2012, tornou-se a mais jovem deputada da história da França, eleita aos 22 anos de idade.
Marine Le Pen também teve sua dose de desencontros amorosos. Diferentemente dos familiares, que tiveram sua imagem pública abalada pelos escândalos que a imprensa não cansou de cobrir, Marine procurou usar sua vida pessoal como forma de reforçar o discurso de que era uma mulher moderna, capaz de trazer o partido de seu pai para o século XXI. Após dois divórcios, não voltou a se casar perante a lei, mas vive com o advogado Louis Aliot, vice-presidente da FN. Além disso, tem três filhos do primeiro casamento.
Provavelmente, o ponto que gera mais polêmica na vida privada dos Le Pen é o rompimento generalizado da prole com Jean-Marie — e o que isso quer dizer sobre suas posições políticas. A filha mais velha, Marie-Caroline, já havia deixado o pai — e o partido — para trás ainda nos anos 90. Após assumir a direção da FN, Marine também não tardou a se afastar da imagem negativa construída pelo patriarca: em 2015, sob a liderança de Marine, Jean-Marie foi expulso do partido que ajudou a fundar, após declarar que o Holocausto havia sido um “detalhe” na Segunda Guerra Mundial. A imprensa francesa diz que nenhuma das duas ainda conversa com o pai — o convívio só se mantém com Yann, que não teve maiores ambições políticas.
Um novo tempo para a Frente Nacional
Quando Jean-Marie anunciou que se afastaria da liderança da FN, em 2011, Marine foi rápida em aproveitar a oportunidade: lançou sua candidatura interna para comandar a sigla, e foi eleita por ampla maioria. Já no ano seguinte, concorreu pela primeira vez à presidência da França, ficando em terceiro lugar, com quase 18% dos votos. Apesar de expressivo, o resultado não se diferenciava dos números que o pai havia obtido no passado – para chegar ao poder, era preciso mudar, e mudar profundamente.
A Frente Nacional surgiu em 1972 como uma forma de agrupar as demandas mais à direita no espectro político francês, que ainda não se sentiam representadas no sistema democrático. Criada por uma geração que havia crescido com a Segunda Guerra Mundial e os alvores da Guerra Fria, a nova organização reunia muitos ex-colaboradores da ocupação nazista, veteranos da repressão colonial na Argélia, anticomunistas, antissemitas, monarquistas e nacionalistas que culpavam os estrangeiros pelos problemas do país. Marine Le Pen entendeu que era preciso deixar para trás muitas dessas bandeiras, que não encontravam mais eco no século XXI – e estagnavam seu eleitorado, deixando-o eternamente na proporção de seu pai.
Nos últimos anos, Marine modificou a FN nas mais diversas frentes, buscando modernizar o partido: foi o chamado processo de “dédiabolisation” – a des-demonização junto à opinião pública de uma legenda marginalizada por décadas. Antigos membros com histórico de participação em movimentos fascistas e antissemitas foram expulsos, inclusive o próprio Jean-Marie. A FN passou a recrutar candidatos não apenas por suas opiniões, mas também por sua formação e histórico profissional, o que concedeu mais credibilidade aos seus quadros. Sob Marine, o partido também deu mais atenção às eleições municipais e regionais, tornando-se familiar dos eleitores, deixando de ser uma sigla relativamente obscura que só rendia manchetes no período da escolha presidencial.
A plataforma que a levou ao Palácio do Eliseu também deixou de lado muitas posições dos tempos de seu pai. Jean-Marie era um liberal na economia, e Marine tem ideias estatistas e protecionistas. A FN reviu suas antigas posições em temas como o aborto, a união homoafetiva e a pena de morte. Por outro lado, certos discursos foram intensificados: Jean-Marie conseguiu chegar ao segundo turno em 2002 com uma fala que apostava no medo dos franceses após o 11 de setembro em Nova York. A França de Marine era um terreno ainda mais próspero para capitalizar o temor causado pelo terrorismo de extremistas islâmicos – após Paris e Nice, o país sabe o que é sofrer ataques em seu próprio território.
“Marine paz e amor”
As novas posturas deram resultados rápidos — e cada vez melhores — a Marine Le Pen e seus correligionários. Nas eleições municipais de março de 2014, a Frente Nacional conquistou doze prefeituras no país, um recorde para o partido. Dois meses depois, em maio daquele ano, a sigla conquistou a maior votação da França nas eleições para o Parlamento Europeu, ocupando 24 dos 74 assentos destinados ao país.
A própria Marine, membro do Europarlamento desde 2004, renovou seu mandato após dez anos de casa. Mas o pleito foi histórico para o partido por outras razões: foi a primeira vez que a FN acabou uma votação de abrangência nacional em primeiro lugar. E, numa mensagem clara dos franceses sobre a forma crítica com que veem a União Europeia atualmente, foi o irônico triunfo de um partido contrário ao bloco, para discutir as pautas desde dentro da UE.
Para 2017, Le Pen decidiu estender a mudança de imagem do partido para si mesma. Foi a criação de uma “Marine paz e amor”, amaciando a figura dura que havia construída no passado. Ao longo da campanha, Le Pen tirou fotos amigáveis abraçando cavalos, acariciando gatos, e até largou o cigarro, adotando um substituto eletrônico. Se a persona amoleceu, o discurso não: Marine continuou defendendo uma França para os franceses, o endurecimento dos controles fronteiriços e das regras de imigração e naturalização, e a saída da União Europeia.
As políticas de Marine claramente fizeram sucesso entre os franceses. A FN passou a ser o partido que aglutinava os jovens do interior do país, de jovens e da população mais pobre, que se sente ameaçada economicamente pela globalização e pelos imigrantes. Desde as primeiras pesquisas de opinião para essas eleições, ainda em 2013, ela nunca deixou de ocupar uma das duas primeiras posições na preferência dos franceses. Após passar pelo primeiro turno com uma votação recorde para o seu partido, Le Pen podia se considerar moralmente vitoriosa por ter forçado seus oponentes a discutirem suas pautas, sob pena de perder votos.
Mas vencer o segundo turno parece ainda ser uma tarefa inalcançável: Marine teve em Emmanuel Macron um oponente que também se valeu de um discurso jovem, porém mais inclusivo, que recebeu apoio dos principais candidatos eliminados no primeiro turno — e com 63% das intenções de votos na véspera da votação. Diferentemente dos EUA de Donald Trump e do Reino Unido do Brexit, Marine não conseguiu contrariar as pesquisas e foi derrotada.
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