Hoje em dia você pode interagir com um mapa da superfície de Marte com a mesma facilidade com que espia os fundos do casarão na sua rua com o Google Maps (a versão marciana leva o nome de “Google Mars” e é bem divertida). Também pode se perder procurando sombras de ETs no enorme arquivo de fotos que os robozinhos da Nasa vêm tirando há anos de suas paisagens de cor ocre, montanhas rochosas e crateras.
Mas se você cresceu nos anos 1930 ou 1940, pode muito bem ter subido em uma árvore para ver estrelas mais de perto, como fazia o astrônomo José Manoel Luís da Silva. No Colégio Estadual do Paraná, onde montou um observatório em 1994, o cientista se apaixonou pelas estrelas em uma época em que ainda era preciso completar com imaginação e boa vontade o que telescópios muito menos potentes que os de hoje falhavam em revelar com nitidez.
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Esforço imaginativo que, durante um bom tempo, se voltou especificamente para o Planeta Vermelho.
“Antes da era espacial, o que a gente sabia era o pouco que havia para ler”, lembra Silva, que passou a infância em Blumenau (SC) e se mudou definitivamente para Curitiba no fim dos anos 1960 – época em que foi convidado para ser um dos observadores brasileiros no projeto Apollo.
“Eu olhava para o céu e ficava imaginando o Flash Gordon lutando contra o Imperador Ming; o Buck Rogers, outro herói que não é tão falado. E pensava: se essas coisas são contadas no cinema, talvez seja porque este pessoal que faz os filmes, que é bem informado, até já descobriu que tem vida lá fora”, brinca o astrônomo.
Marte mania
Flash Gordon é um dos ícones pop de uma espécie de era de ouro da ficção sobre Marte que surgiu no fim do século 19 e durou até meados do século 20 – e que o professor emérito da Universidade de Massachusetts e autor de “Imagining Mars: A Literary History” (2011, sem tradução no Brasil), Robert Crossley, chama de “Marte mania”.
O americano identificou criações inspiradas pela dimensão mítica investida pelos terráqueos no planeta desde antes da era do telescópio, quando o avermelhado do óxido de ferro de sua superfície e seu comportamento errante na abóbada celeste inspirou medo, fascínio e competência divina para assuntos como paixão e guerra.
Visões mais informadas surgiram com os primeiros telescópios, mas eles não mostravam muito mais que a Lua nos parece a olho nu. E mesmo os mais sofisticados, a partir do século 19, não eram capazes de revelar nuances do planeta, deixando detalhes como vegetações, mares, lagos e nuvens por conta da boa vontade do observador.
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Foi com um destes que Percival Lowell (1855-1916) deu início à febre marciana, conforme explica Crossley. Astrônomo amador, Lowell apontou seu observatório particular para o planeta durante 15 anos e ficou obcecado com o que enxergava como uma rede de linhas que cruzavam a superfície marciana – algo já identificado pelo astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli (1835-1910), que as chamou anos antes de “canali”. Em inglês, o termo se traduziria como “channels”, que é como se chamam esses acidentes geográficos. Mas acabou sendo traduzido como “canals”, que é o nome que estes canais têm em inglês quando são construídos artificialmente.
Lowell deixou a fantasia correr solta ao formular e ilustrar com mapas sua própria hipótese: as linhas eram um sistema de irrigação global desenvolvido por uma civilização marciana, que resistia em um planeta moribundo. O americano foi desautorizado por outros cientistas da época, mas, aparentemente, ninguém quis estragar uma história tão boa com fatos, e sua teoria misturada com ficção pegou.
A campanha do astrônomo amador incluiu três livros sobre o assunto entre 1895 e 1908, pouco depois de o francês Camille Flammarion, outro semeador da onda marciana, publicar um trabalho de 500 páginas sobre o planeta, em 1892. Lowell deu palestras, foi a jornais, disse que a vida em Marte era um fato inquestionável.
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As teorias inspiraram o escritor britânico H. G. Wells (1866-1946) a escrever sua obra prima, “A Guerra dos Mundos” (1898). Primeiro de uma tradição de ficções sobre Marte, o romance foi também responsável por lançar no imaginário popular a ideia assustadora de uma civilização marciana avançada e hostil (horror que se tornou real para alguns norte-americanos que ouviram a transmissão da versão radiofônica de Orson Welles na véspera do dia das bruxas de 1938, em um dos mais famosos episódios da história da comunicação de massa).
“A partir de fins do século 19, Marte se torna um espaço privilegiado para a projeção de ansiedades humanas sobre a vida fora da Terra e a vida humana fora da Terra – um papel que fora da Lua, durante a Antiguidade e o Renascimento”, explica o escritor de ficção científica e crítico Roberto de Sousa Causo.
Em “A Guerra dos Mundos”, analisa, Wells projetou nos marcianos o tipo de violência colonial que o Império Britânico e outras potências europeias exerciam na África, por exemplo. Já nos Estados Unidos o mecanismo aparece em obras como “A Princesa de Marte” (1912), de Edgar Rice Burroughs (1875-1950), “com as planícies marcianas transmutadas nas planícies do meio-oeste americano”, e no famoso “As Crônicas Marcianas” (1950), de Ray Bradbury, “com a atmosfera de civilizações moribundas revista com valores humanistas ameaçados pela modernidade do pós-guerra”. A obra, lembra Causo, inspirou obras no Brasil como “As Noites Marcianas” (1960), de Fausto Cunha.
Conforme mapeou Crossley, coube de tudo em Marte: utopia, fábula, alerta, sátira, diários de viagens, aventuras, alegorias políticas, feminismo, fantasia masculina, pacifismo, paranormalidade, Robinson Crusoé e As Mil e Uma Noites.
O cinema também não demorou a incorporar o tema. O primeiro experimento foi de Thomas Edison, com “A Trip to Mars”, em 1910 (curiosamente, o cientista fora usado como herói no romance de ficção científica “Edison’s Conquest of Mars”, em 1898, do também americano Garrett P. Serviss). No russo “Aelita – A Rainha de Marte” (1924), Marte é um planeta habitado por uma sociedade governada por um estado totalitário e a viagem dos terráqueos ganha contornos revolucionários. Em outras produções, ora íamos até o planeta para encontrar uma raça com gosto de inclinação neoclássica; ora monstros chegavam invadindo. Em “Santa Claus Conquers the Martians” (1964), os marcianos sequestram o nosso Papai Noel. Pois é.
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“Marte assumiu uma variedade de metáforas ao longo da história do cinema. Foi muitas vezes identificado com a ameaça de uma invasão alienígena, com a “ameaça comunista” (o ‘planeta vermelho’ foi relacionado ao comunismo a partir de uma série de escritores e filmes, soviéticos ou não) e com a promessa de vida alienígena, muitas vezes anterior à vida na Terra”, avalia Alfredo Suppia, professor de cinema na Unicamp. “Em todos os casos, é fácil perceber, tratamos de projeções de nossa cultura: a invasão (colonialista e/ou imperialista), o comunismo (a revolução russa) e o alento de não estarmos sozinhos no universos. Todos traumas, anseios, utopias e recalques muito humanos”, analisa.
Ciência & cinema
Desde a época de Lowell, outros cientistas sabiam que a teoria dos canais era uma mistura de interpretação equivocada e vontade de acreditar. Mas o que definitivamente varreu a teoria de que havia uma civilização em Marte foi a era espacial. O balde de água fria veio em 1965, quando a sonda Mariner 4, da Nasa, se aproximou de lá e revelou, em close-up, que tratava-se de um planeta aparentemente morto.
Parte dos escritores, afirma Crossley, optou por ignorar as descobertas, mas a “Marte mania” acabou mais ou menos ali, quando um possível cenário de máquinas trípodes e civilizações só de mulheres deu lugar a um ambiente estéril – embora o fascínio pelo planeta nunca tenha deixado de existir, entre momentos de maior e menor intensidade. Por outro lado, as noções mais novas sobre Marte se tornaram cenários para outro tipo de ficção.
“Esse Marte romântico e habitado foi substituído pelo Marte estéril e desértico”, diz Causo. “A fronteira marciana agora representava menos a fronteira da aventura ou da espiritualidade, e mais a fronteira científica da exploração espacial”, explica o escritor, citando títulos como o cyberpunk “Frontera” (1983), de Lewis Shiner, como exemplo de uma representação de um Marte científico. “O mesmo se deu na onda de romances sobre Marte na década de 1990, com as pesquisas, ainda em curso, sobre como levar uma nave humana ao planeta – agora com especulações sobre ambientalismo e utopismo de esquerda, como na ‘Trilogia Marte’, de Kim Stanley Robinson (1993 a 1996); ou mais libertariano em ‘Moving Mars’ (1993), de Greg Bear.”
Um movimento parecido acontece no cinema. Até a época da exploração espacial, há uma produção muito maior de filmes com este tema do que nas décadas de 70, 80 e 90. A tendência tem a ver com a publicidade em torno de descobertas científicas, sobre as quais o cinema busca capitalizar. É por isso que a partir do fim dos anos 1990, quando a Nasa começa seus programas de exploração do planeta, o tema parece despertar mais interesse. Em “Missão: Marte” (2000), por exemplo, a vida se revela invisível para as nossas sondas. Já em “O Planeta Vermelho” (2013), a ideia de vida microscópica é incorporada – embora em uma história do gênero zumbi. Ao que parece, “Perdido em Marte”, novo filme de Ridley Scott com Matt Damon previsto para estrear em outubro de 2015, também traz uma representação mais precisa,
“De maneira geral o cinema não acompanhou as descobertas científicas, embora tenha havido sim, em alguns filmes, maior esforço em termos de verossimilhança científica apoiada em consultoria especializada. Mas o fato é que muitas descobertas científicas sobre Marte hoje talvez não sejam tão interessantes e divertidas do ponto de vista cinemático, de maneira que o planeta continua se oferecendo mais como metáfora ou inspiração para especulações fabulosas”, explica Suppia. “Seguir estritamente os dados constantemente auferidos sobre Marte pelos cientistas talvez seja muito enfadonho diante da tradição de se elucubrar sobre o ‘Planeta Vermelho’ e seus segredos mais recônditos – a interpretação que forçava a imagem de um rosto na superfície de Marte é só um pequeno exemplo dessa curiosidade coletiva sobre nosso vizinho planetário”, diz.
Vida?
Mesmo que em termos absolutamente distantes da teoria dos canais de Lowell, a presença de vida ainda é a principal questão – os “rovers” da Nasa estão em Marte, dentre outras missões, para tentar encontrá-la. É a tônica da exploração espacial contemporânea, e por isso só se fala na possibilidade de vida nos supostos oceanos das luas de Júpiter e Saturno nos últimos anos.
E, mesmo diante de enormes dificuldades, ainda se planeja levar astronautas para lá – daqui a coisa de vinte anos, diz a Nasa; ou dez, nos planos do projeto privado holandês Mars One, cuja viagem é apenas de ida (pesquisadores do MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, calcularam que a colônia durará 68 dias antes de todos morrerem asfixiados devido a uma série de falhas no projeto – perspectiva bastante sombria para o formato de reality show que seus idealizadores imaginam para financiá-lo).
Os custos previstos chegam a cifras como US$ 500 bilhões e as chances de êxito são da ordem dos 50% com a tecnologia atual. Sair da Terra com tudo o que é necessário para uma viagem de seis meses por trecho é o primeiro desafio. Depois, conforme conta a jornalista americana Mary Roach no divertidíssimo “Próxima Parada: Marte” (Paralela, 2013), será preciso lidar com detalhes que incluem desde efeitos indesejados e imprevistos de longos períodos em gravidade zero, imprevisibilidade comportamental provocada pelo isolamento e distância da Terra e até cocôs fujões (eles já escapuliram no complicado processo de ir ao banheiro e flutuaram pela cabine em missões anteriores).
Percorrer 225 milhões de quilômetros (em média), mesmo na época em que chegamos a Plutão, continua sendo muito mais complicado do que fazer um cruzeiro de Santos para as Ilhas Canárias. Mas é Marte o vizinho mais próximo. Depois de Vênus, tecnicamente, mas este tem uma pressão altíssima e temperaturas infernais.
O Planeta Vermelho é gelado e sua atmosfera é letal, é verdade. Mas os dias marcianos duram quase o mesmo que os nossos. Há água na composição do solo. A gravidade, de 40%, é forte o suficiente para manter o corpo humano sadio, e fraca o suficiente para ninguém nunca mais se preocupar com o ciático. E ele tem suas maravilhas: um cânion do tamanho dos Estados Unidos; o Monte Olimpo, o maior vulcão do Sistema Solar. É o passo seguinte, enfim – e em comparação com o Kepler-452b, nosso novo primo distante a 1,4 mil anos-luz, é logo ali. “Não tem nada igual a Marte”, defende o astrônomo José Manoel Luís da Silva, para quem “o infinito precisa ser compreendido se quisermos nos perpetuar como humanidade”.
“Saturno tem seus anéis. Júpiter é gigante, com uma mancha vermelha. Vênus aparece com brilho inusitado. Mas nenhum dos astros do céu deslumbra como Marte, nenhum tem o atrativo que o planeta Marte tem para nós. Imagine então quando chegarmos lá. Se eu passar dos 100 anos, poderemos comprovar.”
Linha do tempo
1877
O astrônomo norte-americano Asaph Hall (1829-1907) descobre Deimos e Phobos, as duas luas de Marte.
1877
O italiano Giovanni Schiaparelli identifica marcas finas e interpostas na superfície de Marte e as chama de “canali”. O termo “canal” é entendido como um canal construído artificialmente
1892
O francês Camille Flammarion publica
um livro de 500 páginas sobre Marte.
1895 a 1908
O astrônomo norte-americano Percival Lowell publica livros influentes sobre Marte e sugere que uma civilização estava construindo sistemas de canais para evitar a morte do planeta.
1898
H.G. Wells publica “A Guerra dos Mundos”
1938
Orson Welles assustou parte da população americana com uma adaptação radiofônica para “A Guerra dos Mundos”.
1965
A sonda Mariner 4, da Nasa, chega aos arredores de Marte e revela as primeiras imagens em close-up de um outro planeta, revelando um ambiente inóspito.
1971
Sonda Mariner 9 é a 1.ª a entrar na órbita de Marte e revelar imagens de seus vulcões e cânions.
1976
A agência espacial americana lança o programa Viking, que consegue pousar sondas na superfície do Planeta Vermelho.
1996
Um meteorito marciano com o que pareciam ser fósseis de microrganismos foi encontrado na Antártida e levantou novos debates sobre a presença de vida em Marte
1997
O pequeno robô Sojourner, do programa Mars Pathfinder, aterrissou com sucesso em Marte e mandou dados científicos durante mais de um mês.
2004
Os veículos exploradores Spirit e Opportunity aterrissam no planeta e começam a recolher dados, superando a expectativa de funcionamento que a Nasa tinha para eles.
2012
Bem maior que os anteriores, o Curiosity começa a explorar Marte em agosto de 2012. O robô continua em funcionamento.
2018
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