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Antonio Paim é um filósofo de trajetória intelectual tão rica quanto rocambolesca. Foi um comunista perseguido pela ditadura... de Vargas. Depois, foi para URSS tornar-se bolchevique. Ficou fluente em russo e doutorou-se em filosofia por lá. Voltaria para o Brasil democrático da época da Bossa Nova, abandonaria o comunismo e se tornaria um liberal. Correu para se livrar do prejuízo intelectual que a formação estritamente bolchevique lhe causou, e acabou se tornando um historiador da filosofia brasileira, que pesquisa desde a escolástica portuguesa até a obra dos colegas vivos. Redigiu uma abrangente História do Liberalismo Brasileiro.
Durante a última ditadura, lutou contra a censura... comunista. Esta se dava dentro do seu local de trabalho, a PUC do Rio de Janeiro. Um capítulo desse imbróglio está registrado no livro Liberdade Acadêmica ou Opção Totalitária, no qual Paim colige artigos de professores de filosofia pró e contra a censura de textos de Miguel Reale na PUC, efetuada por Raul Landim. Foi uma batalha vencida por Paim: os principais jornais do Brasil fizeram editoriais em defesa da liberdade acadêmica, contra a opção totalitária dos comunistas e teólogos da libertação.
À batalha vencida em jornais seguiu-se uma grande derrota na guerra universitária. Sua cátedra foi extinta pelo MEC. Vélez Rodríguez alega que os pró censura, pupilos do Padre Vaz, usaram de suas posições no MEC para perseguir Paim. O outro lado replica que a decisão de excluir a filosofia brasileira foi estritamente técnica. Seja como for, fato é que fiz graduação, mestrado e doutorado em filosofia sem ouvir da boca dos professores o nome de Antonio Paim. E de José Guilherme Merquior também, outro proscrito, ainda que tratasse dos mesmos assuntos que a comunidade acadêmica.
Como a universidade brasileira opta por não velar pelo patrimônio intelectual do país, façamos nós – os jornais, as editoras e os leitores cultos em geral – o trabalho dela. Passemos agora ao objeto do título, um livro de Paim, em particular, que não pode passar despercebido.
“Marxismo e descendência”
De toda a obra de Paim, há apenas um livro que trata exaustivamente do marxismo. Chama-se Marxismo e descendência, foi publicado pela primeira vez com o autor já octogenário, em 2009. No ano passado, saiu a segunda edição pela Távola Editorial. O autor segue vivo e lúcido.
O livro se propõe a desvendar por que o marxismo, mesmo sendo de grande pobreza intelectual, logrou tanto êxito cultural. Antes de responder, se empenha em mostrar ao leitor não familiarizado com o marxismo o porquê de este ter tal pobreza. Mostra, dentre outras coisas, o fato de Marx ignorar a parte rural da sociedade.
A resposta de Paim residirá na cultura dos países em que o marxismo vingou. Assim, divide a descendência marxista em dois frondosos ramos: o soviético e o francês. (À nova esquerda, existencialista ou frankfurtiana, ele não dispensa muita atenção.) O marxismo soviético teria origem no despotismo russo; e o francês, no cientificismo.
Ambas essas explicações têm seus precedentes, e não são inteiramente originais. A tese de o marxismo ter logrado êxito na Rússia por causa de uma cultura de despotismo é tomada de empréstimo do sociólogo weberiano Karl Wittfogel. Quanto ao cientificismo francês, Paim segue muito Raymond Aron. Reunindo essas duas correntes, Paim mostra como são muito diferentes. Para ele, tamanha diferença entre os marxismos se explica pelo caráter contraditório da doutrina de Marx, combinado às diferentes tradições culturais que o receberam. É como se Marx fosse um Frankenstein, e russos e franceses tivessem escolhido partes diferentes para levar para casa.
Mas isso ainda não explica por que o marxismo se converteu numa força intelectual internacional, a despeito de seu fragoroso fracasso. E aí reside a originalidade de Paim: o marxismo russo é entendido por ele como uma retórica filosófica voltada à legitimação do Estado patrimonial, no qual a burocracia central é mais forte do que a sociedade.
Cito Paim:
"em alguns países da Europa, a centralização redundou numa forma de organização estatal – o Estado patrimonial –, fenômeno que explica a resistência à aceitação das regras de funcionamento do Estado Liberal de Direito. Tenho em vista a verificação histórica de não se limitar a outras culturas, o fato de que o governo democrático representativo não é dado a todos. No caso da Europa, teve de enfrentar desafios inimagináveis ao longo do século XX.
É certo que o patrimonialismo provém do Oriente. Mas a Prússia era certamente um Estado Patrimonial, tão arraigado que a única forma de a Europa se ver livre da ameaça em que se transformou consistiu em fazê-la desaparecer do mapa. Também na Península Ibérica instaurou-se tal espécie de Estado.
O Estado Patrimonial é aquela estrutura mais forte que a sociedade. Floresceu ali onde a burocracia estatal não se defrontou com grupos sociais capazes de afrontá-la. O marxismo veio fornecer-lhe poderoso álibi. Não se acha no poder para desfrutar de suas benesses, mas para construir uma sociedade justa. Acontece que a experiência histórica veio a demonstrar que o comunismo, longe de ser, como se alega, uma ‘opção pelos pobres’, consiste, na verdade, numa ‘opção pela pobreza’."
Ao cabo, segundo Paim, a faceta do marxismo escolhida pela União Soviética é a apologista do Estado Patrimonial. A URSS então montou uma máquina de propaganda sem precedentes, e espalhou o marxismo pelo mundo. A França se manteve marxista mesmo após o Relatório Kruschov, por causa de sua arraigada tradição cientificista, na qual o marxismo tem um pé.
Para provar isso, Paim percorre com minúcias desde o pensamento hegeliano até os comunistas italianos do pós-guerra.
Ex-bolchevique enciclopédico
Em cursos acadêmicos de história da filosofia, aprendemos que é preciso haver um distanciamento entre o filósofo estudado e o historiador estudioso. É preciso saber olhar para um sistema situando-se de fora dele, sem abraçá-lo como visão de mundo. Trocando em miúdos, se alguém for estudar Aristóteles, é forçoso não escrever como um defensor do aristotelismo, guardar distância e descrever o pensamento de Aristóteles sem se comprometer com ele. Em se tratando de um autor tão distante como Aristóteles, isso é fácil. Os autores que escrevem sobre autores são chamados de historiadores ou, como é mais comum, de comentadores.
Na academia brasileira, faltam bons comentadores do marxismo, e abundam marxistas comentadores de outras filosofia. Entre nós, vingou o marxismo francês, que nem sempre compreende o soviético, ou sequer percebe ser diferente dele. Assim, um estudante brasileiro verá Althusser (um stalinista francês professor de filosofia) não como um marxista a ser estudado, senão como um comentador de vários filósofos, inclusive de Marx. Nesse cenário, Paim é uma luz.
Em Marxismo e descendência, toda a sua experiência de bolchevique fluente em russo é posta a serviço do esclarecimento do marxismo soviético, da investigação do que é propriamente marxista e do que é leninista, da comparação entre leninismo e stalinismo. Paim compara a trajetória político-partidária de Marx à de Lênin para mostrar que este estava em pleno acordo com as práticas e doutrinas daquele. (A exceção é apenas a crença de que a Rússia, agrária, estava em condições de fazer uma Revolução Comunista.)
Segundo Paim, a Nova Política Econômica (NEP) de Lênin foi o resultado de uma vitória dos camponeses sobre os bolcheviques, urbanos, e serviu para encerrar uma guerra civil movida pelo campesinato insatisfeito com a coletivização das terras. Lênin tentara aterrorizá-los, sem êxito. Mandara executá-los e deixar os corpos expostos. A tarefa de suprimir a força do campo seria levada a cabo, com êxito, por Stálin, em estrita observância do leninismo. O proletário era o protagonista da História, em Marx. Lênin e Stálin acreditavam, portanto, que poderiam, de maneira centralizada, transformar o camponês em proletário, e matavam os recalcitrantes.
Essa guerra ao mundo rural fez com que a Rússia, outrora celeiro da Europa e exportadora de grãos, se transformasse em importadora de alimentos! O espaço vago da Rússia foi ocupado sobretudo pelos Estados Unidos e Argentina, e também pelo Canadá, para onde fugiram camponeses russos e continuaram seu modo de vida.
Junto com o extermínio de camponeses produtivos, a outra obra importante de Stálin foi a organização do marxismo soviético a ser difundido pela propaganda. Stálin estudou aristotelismo por sete anos para se tornar padre, e tinha conhecimentos filosóficos suficientes para fazer um arranjo esquemático em torno da filosofia de Marx. É Stálin o autor daquilo que Paim batiza como “vulgata marxista”.
Um problema apontado por Paim em Marx é a falta de uma noção de natureza humana que abranja todas as classes. Tudo se passa como se o homem nascesse ao assinar a carteira de trabalho. Se a humanidade é determinada pelo modo de produção, como diferenciar aquilo que é parte da superestrutura capitalista daquilo que é simplesmente humano?
Stálin herda esse problema, e, numa espécie de revolução cultural, ensina os marxistas a perguntarem sempre a serviço de qual ideologia está tal ou tal coisa. Lançaram-se assim as bases para o mais tresloucado relativismo. A biologia de Mendel é uma biologia burguesa; a biologia de Lysenko, adotada pela URSS, é a biologia proletária – que causaria ainda mais estrago no campo.
Quando linguistas soviéticos decidiram que o russo é uma língua czarista, e iriam elaborar uma língua científica, Stálin enfim fez artigos filosóficos para restaurar alguma objetividade e dizer que os trilhos do trem não eram czaristas, e tampouco a língua russa.
Marxismo à francesa
O estruturalismo francês dialoga com essa vulgata, e Althusser é apresentado por Paim naquela posição em que os olavistas costumam colocar Gramsci, a saber, como o filósofo do aparelhamento cultural. De minha parte, achei mais plausível a versão de Paim, já que na USP o estruturalismo é muito marcante.
Paim expressa seu espanto com o fato de um doente mental que terminou seus dias num hospício ser levado tão a sério, e acha mesmo que a sua filosofia bastava para tomá-lo por louco, sem que precisasse matar a mulher. Cito Paim comentando Althusser:
“Toda a realidade social pode ser compreendida através destas duas siglas: AE, aparelho de Estado; e AIE, aparelhos ideológicos de Estado.
Procede em seguida à sua enumeração. Para comprovar que se trata de reduzir a sociedade a um apêndice do Estado, vamos transcrevê-la: AIE religioso (o sistema das diferentes igrejas); AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e particulares); AIE familiar; AIE jurídico; AIE político (o sistema político de que fazem partes os diferentes partidos); AIE sindical; AIE da informação (imprensa, radio-televisão, etc.); e, finalmente, AIE cultural (Letras, Belas-Artes, desportos, etc.). […] A conclusão é clara: os aparelhos ideológicos do Estado constituem o local de luta de classes e, por vezes, de suas formas mais renhidas. Os comunistas não precisam esperar a chegada ao poder para dominá-los. É uma etapa a ser cumprida no processo de preparação para a sua conquista.”
Quanto a Gramsci, Paim o tem por “leninista típico”. E informa que Rosa Luxemburgo não primava pela inteligência, pois criticava Lênin apenas por opor democracia a ditadura, e jurava que o futuro seria bolchevique.
Pincelei aqui, de maneira parcial, algumas das coisas mais interessantes do livro. Mas há muito mais: a relação e a ruptura de Marx com Proudhon, a apropriação da sociologia de Durkheim pelos marxistas franceses, a história dos partidos operários franceses e italianos, a visão de mundo de Levi Strauss, os partidos da Rússia revolucionária, os hegelianos de esquerda… Quase tudo o que Paim afirma em suas 590 páginas é muitíssimo bem fundamentado. Definitivamente, é um livro filosófico e enciclopédico que enriquece o leitor, e o municia para buscar mais informações.