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Os ares de 2011 voltaram.
Em 6 de outubro daquele ano, a Executiva do PT aprovou uma resolução em que decide pela “implantação dos Núcleos de Militantes Petistas em Ambientes Virtuais (MAVs)”. Na época, nove meses depois de tomar posse, a então presidente Dilma Rousseff estava encurralada por denúncias de corrupção que derrubariam sete ministros em seu primeiro ano de mandato. As primeiras manifestações já eram vistas nas ruas — depois de um longo hiato sem atos contra o governo federal. O PT buscava assumir as rédeas da narrativa. A estratégia se baseava em três pilares: as figuras influentes, as publicações de esquerda e a militância propriamente dita.
Embora boa parte das menções aos MAVs tenha desaparecido das páginas petistas, é possível encontrar referências ocasionais, como uma página da Fundação Perseu Abramo (mantida pelo PT) que divulgava um evento sobre os MAVs em 2011.
A sigla se transformou em um símbolo do modus operandi petista, que coloca a lealdade ao partido acima da preocupação com a verdade. A hostilidade constante era usada como estratégia contra a imprensa profissional. Militantes petistas chegaram a depredar a entrada da Editora Abril, em São Paulo, em 2014.
Agora, o partido parece retomar a estratégia de confrontar jornalistas que causem incômodo ao governo. Saem os MAVs, entra a "Rede da Defesa da Verdade". Sai Dilma Bolada, entra Felipe Neto. Sai Marilena Chauí, entra Márcia Tiburi. Já as páginas da internet que o tucano José Serra chamou de “blogs sujos” permanecem as mesmas.
Manobra diversionista
Em 14 de novembro, o jornal O Estado de S. Paulo mostrou que integrantes do governo receberam Luciane Barbosa Farias, mulher (e braço direito) do chefe do Comando Vermelho no Amazonas. Ela se reuniu com dois secretários e dois diretores do Ministério da Justiça, chefiado por Flávio Dino.
Embasada com imagens e detalhes de investigações da polícia, a reportagem trazia a admissão, por parte do Ministério da Justiça, de que Luciane foi recebida no órgão.
Ainda assim, a publicação gerou uma onda de ataques virtuais ao jornal — e a Andreza Matais, editora-executiva de O Estado de S. Paulo.
Era um exemplo concreto daquilo que o ministro Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação Social, havia chamado de "rede da defesa da verdade” para combater as "fake news".
Desafeto de Paulo Pimenta, o ex-deputado Jean Wyllys acha que o governo deveria ser ainda mais agressivo: depois da reportagem de O Estado de S. Paulo, ele veio a público pedir que o governo apresente um plano "para enfrentar este mal que ameaça a democracia e produz danos a indivíduos e coletivos".
Felipe Neto abandona trégua
Quando os MAVs foram criados, Felipe Neto era antipetista. Mas os tempos mudaram. No dia 19, ele publicou uma foto da editora-executiva do Estadão, Andreza Matais, acompanhada da seguinte legenda: “Quem financia a dama das fake news?”. Ele havia comprado a tese petista de que a reportagem do jornal paulista distorcera fatos para atingir o governo.
Cerca de um mês antes, Felipe estava mais calmo. Em 13 de outubro, pressionado por uma campanha de boicote ao chocolate Bis — que havia contratado o youtuber como garoto-propaganda, — ele havia pedido que os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro voltassem a ver os seus vídeos. “Que tal agora a gente tentar seguir com as nossas vidas? Tentar diminuir essa intensidade de ódio?", propôs Felipe Neto. Ele prosseguiu: "Você não precisa concordar comigo politicamente para ver meus vídeos aqui no YouTube ou permitir que algum familiar seu veja os vídeos”.
Horas depois da publicação contra Andreza Matais, Felipe Neto pediu desculpas a Andreza — mas manteve os ataques ao jornal.
As postagens de Felipe Neto (que tem 16,6 milhões de seguidores no X, o antigo Twitter) com frequência chegam à marca de 1 milhão de visualizações. A do pedido de desculpas ultrapassou os 2 milhões.
Apesar de o youtuber ter apagado a mensagem hostil, o termo “dama das fake news” continua circulando nas redes petistas. A expressão foi utilizada em postagens do Brasil 247 (108 mil visualizações em apenas uma das publicações sobre o caso) e de figuras como os jornalistas de esquerda Hildegard Angel (161 mil visualizações) e Leonardo Attuch (20 mil), além dos influenciadores Lázaro Rosa (77 mil) e Ronny Teles (25 mil).
Usuários anônimos também ajudaram a espalhar os ataques. Somente uma das postagens, feita pelo perfil que se identifica como “Senhora Rivotril”, atingiu 111 mil visualizações.
"Denúncia" contra jornalista
A reação do PT também repetiu o modo de atuação da década passada em outro aspecto: o uso de publicações amigas para disparar contra os responsáveis pela reportagem.
De início, a principal linha de ataque foi a de que a mulher do chefe do tráfico, ela mesma investigada e condenada pelo mesmo crime, não é conhecida como “dama do tráfico”. Ou seja: o problema era a alcunha, e não a ligação dela com o tráfico.
Depois, a militância ajudou a espalhar uma publicação feita pela Revista Fórum, que tem um histórico de alinhamento com o petismo. A reportagem mostrava uma "denúncia" de assédio moral contra Andreza Matais. Como prova, o texto mostrava a captura de tela de um formulário na página do Ministério Público do Trabalho. A ferramenta é pública e pode ser usada por qualquer pessoa. Ou seja: a notícia da Revista Fórum é a de que alguém (anônimo) escreveu algo contra Andreza Matais em uma página na internet.
Apesar da fragilidade da denúncia, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, correu para repercutir a publicação da revista. Ela tratou o conteúdo como verdadeiro. "Matéria da Revista Fórum revela que repórteres envolvidos relataram assédio e humilhação por parte da editora de política do jornal em Brasília e disseram que o conteúdo mentiroso contra o ministro foi turbinado e divulgado também pela rádio do Estadão”, escreveu Gleisi em sua página na rede social X. A postagem foi vista por 600 mil pessoas.
Andreza Matais e O Estado de S. Paulo repudiaram a acusação. A reação à ofensiva petista também mobilizou a entidade que representa os jornais brasileiros.
Reação a ataques
Nesta segunda (20), a Associação Nacional de Jornais (ANJ) divulgou uma nota em que lamenta os ataques contra Andreza Matais e afirma que “o uso de métodos de intimidação contra veículos e jornalistas não se coaduna com valores democráticos”. No texto, a ANJ afirma ainda esperar que "tais métodos de intimidação, sobretudo contra jornalistas mulheres já empregados no passado recente, cessem imediatamente".
O diretor executivo de Jornalismo do Grupo Estado, Eurípedes Alcântara, afirmou que a reação dos petistas “mostra apenas a incapacidade de certos setores de conviver com o jornalismo independente”.
Em seu perfil na rede social X, o senador Sergio Moro (União-PR) condenou a estratégia petista. “Os ataques do Governo do PT e de seus aliados ao Estadão e aos seus jornalistas, especialmente a Andreza Matais, pelas matérias sobre a 'Dama do tráfico', apenas confirmam o viés autoritário do partido”. O presidente do NOVO, Eduardo Ribeiro, também criticou a postura do PT.
Já Flávio Dino deu crédito à "reportagem desmontando as vis difamações contra mim engendradas" — embora não tenha citado diretamente a Revista Fórum. “Follow the money”, afirmou o ministro. Se levar adiante a própria sugestão, ele vai constatar algo interessante: em setembro, a edição semanal da Revista Fórum passou a exibir anúncios do Banco do Brasil. É o único anunciante regular da publicação.