O perturbador mundo da cirurgia no século XIX é o tema de ‘Medicina dos Horrores’, livro de Lindsey Fitzharris lançado no Brasil pela editora Intrínseca.
Doutora em História da Ciência e da Medicina pela Universidade de Oxford, ela mostra as condições de trabalho dos cirurgiões pioneiros – que operavam em anfiteatros abafados e sem assepsia, diante de plateias lotadas.
A obra é centrada na trajetória do britânico Joseph Lister (1827-1912), considerado o “pai da cirurgia moderna”. Visionário, ele buscou atribuir um caráter científico à medicina e, com isso, salvou milhões de vidas.
O trecho a seguir trata de outro cirurgião fundamental nessa história, o escocês Robert Liston (1794-1847), e sua experiência com uma substância que transformaria para sempre as operações: o éter.
Em 1846, diante das pessoas reunidas no novo anfiteatro cirúrgico do University College de Londres, dias antes do Natal, o veterano cirurgião tinha nas mãos o vidro de éter líquido transparente que poderia eliminar a necessidade da rapidez na cirurgia.
Se o produto estivesse à altura das afirmações norte-americanas, talvez a natureza da cirurgia mudasse para sempre. Ainda assim, Liston não pôde deixar de se perguntar se o éter seria apenas mais um produto da charlatanice, com pouca ou nenhuma aplicação útil na cirurgia.
Era grande a tensão. Apenas 15 minutos antes de Liston entrar no anfiteatro, seu colega William Squire havia se dirigido à plateia abarrotada de espectadores e pedido um voluntário que servisse de cobaia.
Um murmúrio nervoso enchera o recinto. Na mão de Squire estava um aparelho parecido com um narguilé árabe, feito de vidro, um tubo de borracha e uma máscara em formato de sino.
O aparelho fora criado pelo tio de Squire, Peter, que era farmacêutico em Londres, e usado pelo cirurgião-dentista James Robinson para extrair um dente apenas dois dias antes. Mas aquilo parecia estranho aos membros da plateia, e ninguém se atreveu a ser voluntário para testá-lo.
Exasperado, Squire ordenou que Shelldrake, o porteiro do anfiteatro, se submetesse ao teste. Não foi uma boa escolha, porque o homem era “gordo, pletórico e com um fígado que, sem dúvida, estava bem habituado a bebidas fortes”.
Com delicadeza, Squire pôs o aparelho sobre o rosto gorducho do homem. Depois de respirar fundo algumas vezes, inspirando o éter, dizem que o porteiro deu um salto da mesa e saiu correndo da sala, xingando em alto e bom som o cirurgião e a plateia.
Não haveria outros testes. O momento inevitável tinha chegado.
Às 14h25, Frederick Churchill, um mordomo de 36 anos da rua Harley, foi levado numa maca. O homem sofria de osteomielite crônica na tíbia, uma infecção bacteriana dos ossos que fizera seu joelho direito inchar e se entortar violentamente.
Sua primeira cirurgia ocorrera três anos antes, quando a área inflamada tinha sido aberta e “vários corpos laminados de formato irregular”, que variavam do tamanho de uma ervilha ao de um grão de feijão, tinham sido retirados.
Em 25 de novembro de 1846, Churchill voltara ao hospital. Dessa vez, Liston tinha feito uma incisão e introduzido uma sonda no joelho.
Usando suas mãos não lavadas, apalpara o osso, para garantir que não estava solto. Ordenara, então, que lavassem a abertura com água quente, fi zessem um curativo e deixassem o paciente descansar.
Nos dias seguintes, porém, o estado de Churchill havia deteriorado. Ele não tardara a sentir uma dor aguda, que irradiava do quadril até os dedos dos pés. Isso voltou a ocorrer três semanas depois, o que levou Liston a decidir que a perna deveria ser amputada.
Churchill foi carregado para o anfiteatro cirúrgico numa maca e deitado em cima da mesa de madeira. Dois assistentes ficaram por perto, para o caso de o éter não surtir efeito e eles terem de recorrer à contenção do paciente apavorado, enquanto Liston amputava o membro.
A um sinal do cirurgião, Squire se aproximou e segurou a máscara sobre a boca de Churchill. Em poucos minutos, o paciente ficou inconsciente.
Squire, então, depositou um lenço embebido em éter sobre o rosto de Churchill, para garantir que ele não acordasse durante a cirurgia. Fez um aceno para Liston com a cabeça, dizendo: “Acho que ele está pronto, senhor”.
Liston abriu um estojo comprido e retirou dali uma faca reta de amputação que ele mesmo havia criado. Um espectador na plateia, nessa tarde, observou que o instrumento devia ser um dos favoritos do cirurgião, porque o cabo tinha pequenos entalhes que mostravam o número de vezes que já fora utilizado.
Liston roçou a unha do polegar na lâmina para testar se estava afiada. Convencido de que ela funcionaria bem, instruiu seu assistente, William Cadge, a “cuidar da artéria”, e então se virou para a plateia.
“Agora, senhores, marquem o tempo!”, gritou. Ouviu-se uma onda de cliques, à medida que relógios de bolso eram tirados dos coletes e abertos.
Liston se virou outra vez e, com a mão esquerda, prendeu a coxa do paciente. Num movimento rápido, fez uma incisão profunda acima do joelho direito.
Um de seus assistentes atou imediatamente um torniquete na perna, para conter o fluxo de sangue, enquanto Liston empurrava os dedos por baixo da aba de pele e a puxava para trás. Ele fez outra série de manobras rápidas com a faca, expondo o fêmur. Fez, então, uma pausa.
Muitos cirurgiões, uma vez confrontados com o osso exposto, sentiam-se intimidados pela tarefa de serrá-lo. Anos antes naquele século, Charles Bell alertava os estudantes a serrarem devagar e com gestos firmes.
Até aqueles que eram hábeis em fazer incisões podiam perder a coragem quando se tratava de amputar um membro.
Em 1823, Thomas Alcock proclamou que a humanidade “estremece ao pensar que homens sem habilidade com qualquer outra ferramenta, a não ser com garfo e faca no cotidiano, têm a pretensão, com suas mãos profanas, de operar seus semelhantes sofredores”.
Ele recordou uma história de dar calafrios sobre um cirurgião cuja serra entalou a tal ponto no osso que não se mexia mais. Um contemporâneo de Alcock, William Gibson, recomendava que os novatos praticassem com um pedaço de madeira, para evitar semelhantes pesadelos.
Liston passou a faca para um dos assistentes cirúrgicos, que, por sua vez, lhe entregou um serrote. Esse mesmo assistente repuxou os músculos, que depois seriam usados para formar um coto adequado para o amputado.
O grande cirurgião serrou meia dúzia de vezes, até que a perna caiu nas mãos de um segundo assistente, que a jogou prontamente numa caixa cheia de serragem bem ao lado da mesa de operações.
Enquanto isso, o primeiro assistente soltou por um instante o torniquete, revelando quais artérias e veias cortadas precisariam ser atadas. Numa amputação no meio da coxa, é comum haver 11 a serem presas por ligaduras.
Liston amarrou a artéria principal com um nó quadrado e voltou a atenção para os vasos sanguíneos menores, os quais foi puxando um a um, usando um gancho afiado chamado de tenáculo. Seu assistente afrouxou mais uma vez o torniquete, enquanto Liston fazia as suturas restantes na carne.
Ao todo, Liston levou 28 segundos para amputar a perna direita de Churchill, durante os quais o paciente não se mexeu nem gritou.
Quando acordou, alguns minutos depois, teria perguntado quando ia começar a cirurgia e recebido como resposta a visão do coto elevado, para grande diversão dos espectadores, pasmos com o que tinham acabado de testemunhar.
Com o rosto iluminado pela empolgação do momento, Liston anunciou: “Senhores, esse truque ianque põe o mesmerismo no chinelo”!
A era da agonia estava chegando ao fim.