Médicos têm sido atacados por prescreverem medicamentos para tratamento da Covid-19 nos estágios iniciais, o chamado tratamento precoce. Contra esses médicos foram realizadas denúncias no Ministério Público e em Conselhos Regionais de Medicina (CRM). Em alguns casos, levando ao impedimento desses profissionais de atenderem seus pacientes em meio à pandemia. Outros estão sendo investigados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado e tiveram seus dados, obtidos através de quebra de sigilo, vazados à imprensa.
Para o Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda não há estudos científicos, com metodologia inconteste, que comprovem o efeito de medicamentos na fase inicial da Covid-19, antes da manifestação de sintomas graves da doença. Diante disso, o CFM emitiu parecer, em abril de 2020, estabelecendo que os médicos têm autonomia, em conjunto com os pacientes, para decidir qual a melhor opção terapêutica para tratar os casos diagnosticados. Essa decisão foi amparada na Declaração de Helsinque, de 1964, que determina, no caso de não existirem intervenções comprovadas, que o médico, com consentimento informado de um paciente ou representante legal, pode fazer uso da medicação off-label (fora do propósito específico para o qual o remédio foi desenvolvido) na tentativa de salvar vidas.
Em entrevista ao programa Direto ao Ponto, da Jovem Pan, no dia 2/08, Mauro Ribeiro, presidente do CFM e médico cirurgião, defendeu que a autonomia médica é um dos dois pilares da medicina hipocrática, ao lado do sigilo médico. "Se perdermos um destes pilares, acaba a medicina", afirmou, acrescentando que a autonomia médica deve ser limitada apenas pela ética e pela lei, obrigatoriamente visando a beneficência e jamais a maleficência.
Segundo Ribeiro, apesar da morte de mais de 900 médicos no país durante a pandemia, a medicina brasileira nunca foi tão atacada quanto hoje, sendo demonizada por políticos e pela mídia.
"Capitã Cloroquina"
Mayra Pinheiro é uma médica pediatra cearense de 54 anos, secretária do Ministério da Saúde que no início deste ano teve destaque por sua defesa do tratamento precoce. Reportagens traziam o apelido de “Capitã Cloroquina”, surgido dentro das próprias redações dos jornais, segundo Mayra, com objetivo de a desqualificar e de fazer chacota.
Acusada de advogar pela utilização de medicamentos sem eficácia comprovada no Ministério da Saúde e de influenciar a tomada de decisões do governo federal durante a pandemia, a médica foi convocada para depor na CPI da Covid-19 no Senado. Mayra conta que durante as sete horas do seu depoimento foi constantemente ofendida e humilhada pelos senadores, mesmo tratamento dado à médica oncologista e imunologista Nise Yamaguchi, também convidada a depor na CPI uma semana depois.
“É um grupo bem organizado para destruir reputações e acho que chegou no auge. A ideia era que eu saísse de lá ultrajada e humilhada. Isso não aconteceu. Fui para defender algo que estudo e que acredito. Me posicionei corretamente, não agredi ninguém, não fiz nenhuma ofensa, pelo contrário”, afirma.
Vazamento de dados
Em junho, a CPI pediu a quebra do sigilo telemático de Mayra e de diversos outros médicos e cientistas — como o virologista Paolo Zanotto, professor da USP acusado de integrar um suposto Gabinete Paralelo no Ministério da Saúde. Os dados de Mayra, no entanto, foram posteriormente vazados à imprensa. Era um vídeo onde ela se preparava para a oitiva na CPI e que foi considerada uma prova de que não sabia do que estava apoiando. A médica conta que recebeu o pedido de quebra de sigilo como abuso de autoridade, pois já havia oferecido seu celular voluntariamente à Polícia Federal (PF) e que não tinha nada a esconder.
“Sou médica contratada como técnica do Ministério da Saúde e, saindo daqui, volto para a porta de entrada, que é minha profissão. Nunca tive receio, mas acho que é um abuso de autoridade. Não sou ré, sou testemunha da CPI e a questão de quebrar meu sigilo telefônico e telemático é para infringir medo, para mostrar ‘o que fizemos com ela, vamos fazer com qualquer um que quiser se contrapor ao que nós desejamos’”, afirma.
Em resposta a uma ação impetrada por Mayra no STF, em razão destes vazamentos, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), alegou não ter meios de guardar o sigilo, pois inúmeros senadores acessam o cofre contendo estas informações sigilosas. Para Mayra, isso é uma confissão pública de que o senador não possui condições de ser o guardião destes documentos.
“Ora, se todas as outras comissões têm câmeras que filmam quem entrou e quem não entrou no acesso, se para poder ter acesso a esses documentos você precisa digitar seu CPF, é mentira o que o senador está dizendo. Então entrei também com uma ação de danos morais contra o senador Omar Aziz, não só pela questão do sigilo, mas também pelas inúmeras outras acusações que ele fez publicamente pedindo minha exoneração, dizendo que sou desqualificada moralmente e tecnicamente”, diz Mayra.
Em 20 de agosto o ministro do STF Edson Fachin negou habeas corpus aos senadores Randolfe Rodrigues (Rede- Ap), Renan Calheiros (MDB-AL) e Omar Aziz, que se tornaram investigados pela PF, por este e outros vazamentos de dados sigilosos obtidos pela CPI. Na decisão, Fachin informou que a PF seguiu todos os procedimentos necessários para abertura de inquérito contra parlamentares, com a autorização do STF e iniciativa MPF (Ministério Público Federal)
Para Djalma Pinto, advogado de Mayra, o vazamento dos dados com ordem judicial expressa proibindo a sua divulgação é um caso típico de abuso das prerrogativas funcionais e que se enquadra nos crimes de “quebra de sigilo” e de “desobediência”, previstos nos artigos 325 e 330 do Código Penal. Além de quebra de decoro do Código de Ética do Senado, podendo levar à perda do mandato dos infratores.
Djalma cita como fato ainda mais grave a saída do relator da CPI, Renan Calheiros, por ocasião do depoimento dos médicos Ricardo Ariel Zimerman e Francisco Eduardo Cardoso Alves sobre o Tratamento Precoce realizado na CPI em junho.
“Essa postura atesta a falta de isenção no trato de um assunto tão relevante. Não se concebe um magistrado retirando-se da audiência porque o depoente não lhe agrada. Seu julgamento estará irremediavelmente comprometido pela falta de isenção, de imparcialidade imprescindíveis para o desempenho dessa função”, afirma Djalma.
Processados pelos Conselhos de Medicina
Médicos estão sofrendo também com ações nos conselhos regionais por causa da atuação no combate à Covid-19 com medicamentos do tratamento precoce. É o caso do médico ortopedista de Londrina Alexandre Barros Barbosa, de 50 anos, que após 26 anos de profissão teve o seu registro suspenso no início de julho pelo CRM do Paraná (CRM-PR) em um processo que corre em sigilo. Impedido de exercer a profissão por cinco meses, Barbosa conta que nunca teve nenhuma condenação e processo ético no conselho da classe e que a denúncia não partiu de nenhum paciente. Além desse processo, existem mais três sindicâncias abertas, todas relacionadas a tratamento de Covid-19.
Segundo Barbosa, a denúncia enviada era genérica, citava a prescrição de medicamentos sem comprovação científica e alegava que o tratamento era incongruente. Para ele, a razão para esses processos estava apenas na discordância do tratamento precoce. Ele explica que há uma divisão na comunidade médica sobre a prescrição de medicamentos para tratamento de Covid-19 e que ele, mesmo sendo médico de outra especialidade, decidiu tratar pacientes infectados por, muitas vezes, vê-los desamparados e sem assistência médica.
“O médico deve ser livre para prescrever medicamentos em um tratamento individualizado e compartilhado, com consentimento do paciente, conforme a recomendação do CFM e a Declaração de Helsinque de 1964. Não fiz nada de errado. Eu sigo a ciência e o que se mostra diariamente, como vários outros colegas que estão buscando salvar vidas”, afirma.
A esposa de Barbosa, Renata Barros, que também é sua advogada, contou que entrará com recurso no CRM e CFM. “Ele foi suspenso de forma cautelar de toda atividade médica. Isso nos deixou chocados porque poderiam ter suspendido parcialmente e ele poderia continuar atendendo os seus pacientes de ortopedia. Não é possível que essa injustiça permaneça com tantas ilegalidades e descaso”, diz.
Antes a base do sustento de sua família, sem poder exercer a sua profissão, Barbosa, que tem dois filhos de 11 e 14 anos, tem tido dificuldades financeiras. Amigos, colegas médicos e pacientes também dão seu apoio. Uma petição foi criada em apoio ao médico e já conta com quase oito mil assinaturas. “Estou muito triste pelo julgamento porque não me ouviram ou aos pacientes. Não leram os prontuários. Eu tenho me sentido injustiçado. Mas eu tenho a plena convicção de que tudo vai dar certo no tempo de Deus”, afirma Barbosa.
O CRM-PR enviou nota informando que está rigorosamente alinhado ao que preceitua o Código de Ética Médica e às orientações emanadas do Conselho Federal de Medicina, com o que a autonomia do médico é preservada, cabendo ao mesmo exercê-la dentro dos ditames éticos e legais, sempre em prol do melhor ao seu paciente.
“No âmbito deste Conselho, não há repreensão ou punição deliberada a médico quando no exercício dessa garantia de autonomia, desde que observadas as suas responsabilidades éticas, incluídas aí o estrito zelo à saúde do paciente e os limites da publicidade médica”, diz, acrescentando que não se manifestará sobre este caso específico, pois se trata de processo que corre sob sigilo.
Outro a se dizer perseguido é o médico pneumologista Wagner Malheiros, de Cuiabá, no Mato Grosso. Ele narra uma série de agressões, chegando ao ponto de receber ameaças no seu escritório. Chamado de mentiroso pela mídia, ele conta que nunca foi convidado para explicar seus comentários.
“Somos perseguidos e desacreditados a todo o momento, como se nós fossemos criminosos. Eu tratei mais de cinco mil pacientes, perdendo apenas um, mas eu sou criminoso? Talvez eles ficassem felizes se eu não tivesse prescrito nada”, diz.
Malheiros conta que foi convocado a ir até o Conselho Regional de Medicina do Mato Grosso onde foi “convidado” a assinar uma carta de ajuste de conduta para que ele parasse de defender medicações “sem comprovação científica”. Ele se recusou, alegando que não assinaria uma comprovação de culpa. Para ele, o que o CRM está fazendo é apenas pressionar os médicos para que eles fiquem com medo de prescrever medicamentos “off-label”.
“Se eles forem proibidos e forem exigidos apenas medicamentos que tenham estudos ‘grau A’, a medicina para. Porque nem sempre podemos esperar, ainda mais em um momento de pandemia como esse”, afirma.
Censura nas redes sociais
Além da perseguição sofrida por estes médicos, são diversos os casos de censura de publicações nas redes sociais sobre potenciais drogas para tratamento da Covid-19 e questionamentos sobre a forma com que instituições lidaram com a pandemia.
Uma entrevista realizada em dezembro do ano passado pela jornalista Cristina Graeml com a médica Raíssa Soares, Secretária de Saúde da cidade de Porto Seguro (BA) e defensora do tratamento precoce, foi retirada do Youtube no último mês de maio com a justificativa de que violava a sua política sobre informações médicas incorretas. O Youtube respondeu em nota informando que não permite conteúdo que dissemine informações médicas incorretas que contrariem as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) ou das autoridades locais de saúde sobre a Covid-19
Em agosto, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) entrou com ação na Justiça, solicitando a saída de Raíssa do cargo de secretária de Saúde de Porto Seguro e o bloqueio judicial de R$ 50 mil em bens, para ressarcimento coletivo. Raissa diz estar sofrendo perseguições sistemáticas que se iniciaram ainda em 2020, quando publicou vídeo direcionado a Jair Bolsonaro solicitando medicações contra Covid-19, o que levou à sua demissão do hospital em que trabalhava.
“Assistimos abuso de poder de órgãos públicos, difamação em redes sociais, até infração ética em todas as esferas. Precisamos cuidar uns dos outros e respeitar o ser humano, pois toda vida importa. Vou continuar cuidando das pessoas, e defendendo a vida com a verdade dos fatos, com lucidez e amor ao próximo”, disse Soares.
No dia 30 de agosto, a juíza Nemora de Lima Jansen, da 1ª Vara da Fazenda de Porto Seguro, indeferiu a denúncia do MP que pedia o afastamento imediato de Raissa Soares e o fim do tratamento precoce em Porto Seguro. Na decisão, a juíza disse que interferir na gestão da saúde pública a ponto de negar tratamento, quando não se tem certeza da sua eficácia ou ineficácia, é algo prematuro.
Ela acrescenta que a exigência de “grau máximo de pureza científica” em um momento em que há uma doença totalmente nova não é apenas inadequado, como irreal.
“Não há qualquer medicamento ainda que tenha indicação conforme bula para Covid-19, de forma que, negar à população os medicamentos prescritos pelo médico assistente e aceito pelo paciente, da mesma forma que praticado por aqueles que têm condições de adquirir na esfera particular, em tempos de pandemia, seria negar ao cidadão hipossuficiente e dependente do SUS seu direito ao acesso à saúde e melhor tratamento possível”, finalizou.
A censura do YouTube está presente até mesmo em filmes que ainda não foram lançados. É o que conta Ian Maldonado, um produtor independente que gravou um documentário onde entrevistava médicos sobre lockdown e iria distribuir o conteúdo na plataforma.
"Após um ano e meio de trabalho, subi uma prévia não listada no YouTube para exibir a alguns entrevistados e amigos antes do lançamento. Não durou 24 horas no ar", conta Maldonado.
A justificativa pelo Youtube para a exclusão do filme foi trazer "informações médicas incorretas" e "promover substâncias que podem ser nocivas às saúde".
Maldonado disse ainda distribuirá o documentário, mas em sua própria plataforma de filmes, a Aurora Prime.
"Quem sabe assim cineastas independentes ou médicos, como no caso, gozem ao menos de um traço de liberdade", disse.
Decisão Judicial
Para o médico infectologista Edimilson Migowski, pesquisador da UFRJ, esta censura das redes sociais é inadmissível, pois cerceia o direito da população em ter acesso a diferentes opiniões acerca de temas controversos, mas que podem salvar vidas. Vídeos de Migowski já foram retirados do Youtube e ele impedido de postar novos vídeos.
“Todo e qualquer tipo de censura me incomoda muito. Ainda mais quando você não tem direito de defesa. Nós seguimos à risca o que a OMS orienta em vários vídeos que foram retirados do YouTube. Quando você diz que é importante contextualizar, avaliar risco benefício das vacinas para optar pela melhor vacina, mais segura, isso soa mal e as pessoas cerceiam nosso direito de manifestação e de opinião”, afirma.
Ma, algumas vitórias na justiça já começam a aparecer. O médico Marcos Falcão, baseado em Maceió (AL), conseguiu vencer o Google na justiça. O provedor de vídeos foi condenado a pagar indenização de 500 mil reais por ter retirado do ar um vídeo onde Marcos lia a bula da vacina da AstraZeneca informando sobre como a substância age após ser inoculada no braço de alguém saudável.
Falcão conta que foi constantemente censurado pelas redes sociais, tendo seu perfil no Instagram com mais de 60 mil seguidores deletado. Quando teve seus vídeos bloqueados pelo Youtube, entrou com uma ação cível.
“Eu tenho propriedade pra falar e o Google não é ninguém pra dizer que estou indo contra diretrizes médicas, sendo que eu mesmo sou médico. Se quiserem me perseguir, vou atrás dos meus direitos, vou processar um por um e vou recuperar minhas redes sociais. Não vão calar minha boca”, disse.
O que diz a legislação
Segundo Amanda Costa, advogada especialista em Direito Médico e Direito Penal, o Código de Ética Médica é enfático ao dizer que é direito do médico requerer desagravo público junto ao Conselho Regional de Medicina quando atingido no exercício da profissão. Ou seja, o médico que tem a sua honra atingida por injúria, ultraje, afronta, desconsideração, menosprezo e diminuição da sua ação como médico, poderá ingressar com pedido de desagravo perante o Conselho Regional de Medicina.
“O médico inscrito no Conselho Regional, quando ofendido comprovadamente em razão do exercício profissional, inclusive em cargo ou função privativa do médico, terá direito ao desagravo público promovido pelo Conselho Regional competente. Em paralelo a isso, é totalmente cabível que o médico faça um registro de ocorrência junto à delegacia por injúria, difamação ou calúnia”, afirma.
O que dizem as redes sociais
O Facebook informa em nota que, embora sejam proibidas afirmações taxativas de cura para Covid-19, são permitidas discussões sobre medicamentos e impactos de políticas públicas. A rede social disse adicionar um rótulo a postagens mencionando tratamentos para Covid-19 sem comprovação científica, alertando as pessoas que remédios não aprovados para a doença podem causar danos graves.
“Desde o começo da pandemia, temos atualizado nossas políticas de conteúdo à medida que o conhecimento científico avança e novos fatos surgem, buscando sempre o equilíbrio entre a segurança das pessoas e a liberdade de expressão", informa.
O Youtube afirma que suas políticas de diretrizes de comunidade são desenvolvidas em parceria com diversos especialistas externos em políticas e setores, e cada uma delas é revisada sistematicamente para garantir a conformidade com legislações ou outros elementos vigentes.
“Nossa política de informações médicas segue as orientações mais atuais da Organização Mundial da Saúde (OMS) ou das autoridades locais de saúde, como a Anvisa, sobre a Covid-19. À medida que essas orientações vão mudando, atualizamos nossas políticas."