A Internet tem esse poder estranho de pegar uma imagem excêntrica, adicionar alguns elementos que reforçam esse caráter de exceção e bizarrice e transformar o produto final em argumento. É o que está acontecendo agora mesmo, nas redes sociais, com o chamado “Meme do Caixão”.
Você já deve ter visto o meme por aí. Funciona assim: uma pessoa (relevante ou não) faz algum comentário (relevante ou não) sobre uma situação potencialmente perigosa e logo em seguida alguém publica o meme que, com uma música eletrônica ao fundo, mostra ganenses dançando com um caixão sobre os ombros.
O Meme do Caixão é um contra-argumento em forma de ameaça: se você ignorar o perigo de dirigir embriagado ou a gravidade do coronavírus, por exemplo, daqui a pouco estará dentro do caixão carregado pelos entusiasmados ganenses.
A imagem, contudo, despertou minha curiosidade mórbida para saber como os povos ao redor do mundo lidam com esse momento tão temido.
Caixão em forma de Coca-Cola
E comecei justamente por Gana, um país que tem uma relação bastante especial com os ritos funerários. Para os ganenses, a morte é um evento social espetacular e uma oportunidade para os vivos ostentarem riqueza. E também é um meio de vida para os mais pobres.
Como os carregadores dançantes do “Meme do Caixão”. Eles não são uma presença tradicional nos animados funerais de Gana. Ao contrário, são, de acordo com uma reportagem da BBC, uma invenção bem recente, criada para combater o também mortal surto de desemprego que assola o país africano.
Tudo foi ideia de Benjamin Aidoo, que formou uma trupe com mais de 100 pessoas que são contratadas para carregar o pesado caixão nos ombros, dançando animadamente ao levarem o falecido até seu local de descanso eterno. No original, contudo, a música a embalar o cortejo não é a eletrônica Astronomia 2k19, de Stephan F., e sim uma versão local de uma marchinha de carnaval.
Apesar de os cortejos coreografados serem uma novidade, Gana tem, sim, uma tradição de enterros que parecem excêntricos ao nosso olhar. Tudo começa com os outdoors anunciando a morte da pessoa. Eles pontuam os locais mais disputados das cidades ganenses. Depois a cerimônia em si, geralmente realizada no fim de semana e reunindo multidões que se fartam de comida, bebida e música.
Isso sem falar nos caixões, que chegam a custar US$20 mil e assumem qualquer forma que a pessoa quiser. Há caixões em forma de avião, de sapato e até de garrafa de Coca-Cola. Vale tudo para chamar a atenção e, de alguma forma, celebrar a vida do falecido.
Dedos
Os ganenses podem ser criticados por seus ritos fúnebres extravagantes e caros. Mas pelo menos os ganenses podem manter os dedos intactos. O mesmo não acontece com os 25 mil membros da etnia Dani, que vivem na região indonésia da ilha de Nova Guiné.
Lá, quando um ente querido morre, a pessoa se submete a um ritual chamado ikipalin – basicamente ela tem um de seus dedos amputados. Ao que consta, o ritual representa a dor pela perda do falecido, além de ser uma forma de agradar ao espírito do morto.
Só uma pessoa da família tem o dedo amputado e – péssima notícia para as feministas – geralmente uma mulher. Os homens têm um de seus dedos amputados quando a esposa ou filha morre.
Vou poupar o leitor da descrição mais detalhada do ritual, que é bastante primitivo e dolorido. Se serve de alívio, o ritual está formalmente proibido pelas autoridades hoje em dia. O que não quer dizer que ele não continue sendo clandestinamente praticado.
Filipinas
Por causa do tal “Meme do Caixão”, Gana está levando a fama (perdão pela rima), mas o país que concentra os rituais funerários mais estranhos mesmo é as Filipinas. Sem entrar muito nos detalhes de cada um deles, acho que vale a pena mencioná-los – até para que o leitor entenda que a forma como encaramos a morte é mais do que uma questão meramente sanitária.
Os nativos da região de Benguet, por exemplo, vendam os olhos dos mortos e depois os colocam sentados na entrada da casa durante oito dias. O ritual inclui ainda anciãos que recitam a vida do falecido e o som de pedaços de bambu batendo uns contra os outros, a fim de guiar o espírito até o céu.
Os itneg, por sua vez, não só enterram os mortos na cozinha de casa como também passam algum tempo agindo como se nada tivesse acontecido, vestindo os falecidos com roupas do dia a dia e colocando até cigarros acesos em suas bocas.
Já os caviteños têm o costume de enterrar os mortos na vertical, dentro de um tronco de árvore previamente escolhido pelo falecido, enquanto na montanhosa província de Sagada os caixões costumavam pender da parede de um penhasco.
Vale notar que, nas Filipinas, o catolicismo levado pelos conquistadores espanhóis não pôs fim às práticas funerárias estranhas.
Defumação e sexualidade
Os aborígenes australianos também têm uma forma bastante distinta de lidar com a morte. O ritual começa com a defumação tanto do falecido quanto de sua casa. Depois disso, eles festejam a vida do morto com comida, cantos e danças. Os dias seguintes são marcados por um silêncio específico: fica proibido, enquanto durar o período de luto, mencionar o nome do morto.
O esquecimento, para os aborígenes, é fundamental para levar paz ao espírito do falecido. Essa ideia contrasta profundamente com as noções ocidentais em torno da morte, da permanência e até da imortalidade.
Outro ritual estranho, em comparação com os funerais circunspectos do Ocidente cristão, é realizado nas regiões rurais de Taiwan. E ele tem a ver mais com a moral em torno da morte do que com questões sanitárias. Para alguns dos taiwaneses, não basta celebrar a vida do falecido. Tão importante quanto é não sofrer a perda. E, para evitar esse sofrimento, eles usam de um expediente bastante curioso: strippers. Isso mesmo, mulheres seminuas que dançam nos velórios, diante de homens, mulheres e até crianças. A prática, evidentemente, não é vista com bons olhos por todos.
Questões de imortalidade e honra
Há muito mais coisas estranhas, extravagantes, excêntricas e bizarras no mundo dos mortos. Ou melhor, no mundo dos vivos cuidando de seus mortos. Há endocanibalismo em algumas tribos indígenas do Brasil, por exemplo. Nas montanhas do Tibet, não há nada mais nobre do que ter o corpo entregue aos elementos e às aves de rapina. Isso sem falar nas formas contemporâneas de dispor do corpo, como a transformação de cinzas em pedras coloridas ou pedaços de recifes de coral artificial.
Os ritos funerários diferentes ao redor do mundo são uma amostra de como cada povo encara a vida e questões como imortalidade e honra. Uma coisa é certa: seja dentro de um caixão nos ombros de animados dançarinos, seja num circunspecto velório tradicional, todos um dia passaremos por esse ritual. E será uma experiência sobre a qual nenhum de nós jamais manifestará sua opinião.