Podemos dizer que o Brasil se divide entre cidadãos e plebe. Cidadão é aquele que mora em imóveis regulares, paga uma porção de imposto e que, se morrer de morte matada, sai no jornal e mobiliza a polícia. Já o plebeu pode morrer à vontade, que ninguém dá bola. Mora em favelas. Seu senhor é o traficante ou miliciano, que controla o local, tem poder para roubar-lhe a propriedade e barra-lhe o direito de ir e vir. O plebeu tem aparição efêmera na TV em programas policialescos. Ele não reclama quando alguém apenas morre de morte matada, mas só quando a morte é considerada injusta. Assim, quando morre criança e a culpa não é sabidamente do traficante, os plebeus queimam pneus em via pública para cobrar providência.
O direito à vida é a razão de ser do Estado. Duas coisas fazem com que esse direito seja negligenciado: uma é a violência trazida pelo narcotráfico, que normalizou os assassinatos; e outra é alguma patologia mental da classe de cidadãos, que pune os plebeus. Essa patologia consiste em achar que sua missão é ser a redentora dos pobres, que vai tirá-los da cadeia e dar-lhes esmolas. Vendo a desigualdade entre a sua própria condição e a dos plebeus, o cidadão é guiado em parte pelo sentimento de culpa e em parte pela vaidade. Se há desigualdade, pensa, a culpa é dele. E distribui esmolas e faz leis progressistas. Depois das esmolas e das leis, sente-se muito vaidoso e toma gosto pelo papel de redentor da humanidade.
Quando esse cidadão vê um plebeu preso, diz: “Coitado! Temos que soltar essa pobre vítima da sociedade, que fez o que fez por falta de escolhas!” Daí o plebeu bandido é solto e vai atormentar plebeus honestos. O cidadão se sente muito heroico, enquanto a plebe paga o preço da sua suposta boa ação. Ao mesmo tempo, essa instabilidade a que a plebe fica sujeita a impede de subir na vida (imagine o que é comprar um celular para o trabalho e tê-lo roubado sempre), de modo que sempre haverá plebeus para serem alvo das “boas ações” do nobre cidadão, que precisa de algo assim para se sentir bom. De quebra, se o nobre cidadão aprontar alguma e for apanhado, terá todo um aparato jurídico leniente para ajudá-lo.
O caso da bandidolatria é manjado e pode ser circunscrito à esquerda. Mas a, digamos assim, mendigolatria é generalizada.
Tem albergue?
Veja-se o caso do padre Júlio Lancelotti, que dá quentinhas e barracas de camping para drogados em São Paulo e que agora foi festejado por quebrar a barreira antimendigo debaixo de um viaduto. Isso pode ser muito bem descrito como uma medida para manter drogados no itinerário do plebeu trabalhador. O nobre cidadão anda de carro – seja carro próprio ou do motorista de aplicativo. Quem usa transporte público quase sempre faz um pedaço do itinerário a pé, e é essa a figura que o drogado assalta para financiar o vício. O custo da “boa ação” do padre Lancelotti é repassado a eles.
Os cidadãos têm uma dificuldade muito grande em entender que viver na rua entorpecido é uma opção que parece agradável a alguns. Inclusive para bem-nascidos, cujos pais ficam loucos, tentando tirá-los das ruas e sendo impedidos por lei antimanicomial. O único meio legal de tirá-los da rua é torná-la o menos confortável possível. Quer comida e teto? O padre Júlio Lancelotti concorre com a família na oferta, sem exigir contrapartida.
É provável que as grandes metrópoles brasileiras ainda tenham memória das massas paupérrimas que, ali pelos anos 1970, migraram dos rincões rurais do Nordeste para as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Essas massas eram famintas, não-violentas e trabalhadoras. Dar-lhes esmola significava, muitas vezes, salvar vidas. Por outro lado, hoje existem programas de segurança alimentar como o Bolsa Família, albergues para receber sem-teto, e o fluxo migratório não chega aos pés do dos anos 1970. E ainda existe o crack, que vem da Venezuela.
Antes de ceder ao impulso e dar dinheiro a mendigos, procure se inteirar dos albergues e trabalhos sociais em sua cidade. Isso é imprescindível para saber se aquela pessoa está na rua porque quer, ou se está na rua por falta de ajuda. Se você ajudar um drogado, estará contribuindo com o assaltante do trabalhador.
O mendigo escolhe o bairro chique
Se entrar numa favela, repare que lá não tem mendigo. Em favela há gente boa, disposta a ajudar o próximo, e que não é morta a fome. Em favela das grandes metrópoles com certeza há muita gente ganhando mais que um bolsista de doutorado da CAPES, com seus R$2.200. Daí o critério da renda não ser suficiente para analisar uma sociedade de status como abrasileira.
Se eu fosse uma completa desamparada e só tivesse 1 real no meu bolso, iria para uma favela, onde os preços são mais baixos do que nos bairros chiques e onde há também muito mais trabalho informal. Eu pegaria meu 1 real para tentar comer algo lá. Também procuraria qualquer bico no comércio, deixando claro que comida era aceita como forma de pagamento. Como o estabelecimento é irregular, o patrão contratará à vontade, sem carteira nem salário-mínimo, aumentando as chances de eu conseguir um almoço. Eu só iria a um bairro chique se tivesse algo para vender lá como ambulante, uma vez que poderia pedir preço mais alto.
No entanto, em favela não tem mendigo e os mendigos pululam nos bairros chiques, onde há uma profusão de cidadãos doidos para aplacar os males do mundo. Então a vida do mendigo é ficar na porta do comércio tentando excitar a piedade do cliente. Nesse momento, o cliente provavelmente estará atento demais ao pobre coitado para prestar atenção ao caixa, que estará fulo.
O comércio e o mendigo
O caixa e o atendente estarão sempre brabos com o drogado espantando a clientela e, em vez de raciocinarem em termos burros de luta de classes, veem com clareza que o sumiço da clientela está atrelado ao empobrecimento do seu patrão, e que o empobrecimento do patrão está atrelado à sua demissão. O nobre cidadão se sentirá muito bem dando algo para o drogado, mas concluirá que aquela área está caída e perigosa, de modo que é preferível escolher outra. Se vários clientes subsidiarem drogados, eles se acumularão lá, a área decairá e o trabalhador será demitido. Depois os drogados descobrirão o novo ponto da clientela e irão para lá reiniciar o ciclo – a menos que seja um shopping ou lugar cheio de seguranças. Já se ninguém subsidiar, os drogados não terão sua atividade recompensada e o posto de trabalho será mantido.
Sempre há os mais ou menos conscientes que se recusam a dar dinheiro e só dão comida. Rápidos como predadores da vida animal, alguns drogados já pedem humildemente comida, dizendo que não querem dinheiro. Puxe conversa com o comerciante e descobrirá que eles pedem comida para repassar, trocar por dinheiro e comprar crack. Ainda não identifiquei a curiosa figura do receptador de coxinha de cracudo, mas já encontrei um alvo para receptação de leite.
Um causo
Encerremos com um causo. O mendigo drogado atrapalha o trabalhador porque o rouba na saída e porque desvaloriza o ponto. E achaca, também.
Voltando do já aludido correio, encontrei um casal de idosos com uma porção de flores no capô do carro. Tal como eu faria, eles vieram de um local periférico para um bairro chique vender a sua mercadoria. Comprei com uma nota de cinquenta um vaso com onze horas que custou vinte reais. O senhorzinho foi tentar trocar e, enquanto isso, fiquei esperando com a senhora. Avistamos um homem tão moreno e tão magro quanto o senhor, mas era um mendigo. Avisou que ele foi lá até o fim da rua com uma nota de cinquenta para trocar. A senhorinha ficou alarmada, porque viu que eles acompanham tudo e depois na certa viriam pedir, sabendo que teve venda. Ele disse ainda que outro dia vieram tentar vender para ela uma lata de leite, que ela não compra de jeito nenhum por ter medo de ser roubado. Já eu duvido que fosse roubado; deve ser doação.
Se quer ajudar os pobres de uma maneira imediata e simples, recompense o trabalho. E não subsidie o ladrão ou o achacador deles, porque o mendigo não os trata do mesmo jeito que trata o cidadão de nível.
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