Mais de 167 mil jovens de 17 anos ou menos se casaram em 38 estados, entre 2000 e 2010, de acordo com dados dos contratos matrimoniais encontrados e analisados pelo grupo Unchained at Last, que busca a proibição do casamento infantil| Foto: ANNA PARINI/NYT

Quando era uma menina magricela de 11 anos, Sherry Johnson descobriu que ia se casar com um rapaz de 20 anos, membro de sua igreja, que a estuprara.  

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"Eu fui forçada", recorda. Ela diz ter engravidado e as autoridades responsáveis pelo bem-estar infantil passaram a investigar o caso — deste modo, a família e os oficiais da igreja decidiram que, para evitar um complicado processo criminal, a melhor coisa a se fazer era organizar um casamento. 

"Minha mãe me perguntou se eu queria me casar e eu disse, 'Eu não sei o que é casamento, o que faço para ser uma esposa?'. Então me disse: 'Bom, eu acho que você vai mesmo se casar'", recorda-se ela, tanto tempo depois. 

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E se casou. Um escrivão em Tampa, Flórida, se recusou a casar uma menina de 11 anos, mesmo sendo legal no estado. Por isso a festa foi em um local próximo, em Pinellas County, onde aceitaram realizar o casamento. No contrato matrimonial (que eu mesmo examinei) consta a data de nascimento dela, o que demonstra que as autoridades tinham conhecimento de sua idade. 

Como era de se esperar, o casamento não deu certo – um estudo apontou que dois terços dos casamentos de meninas menores de idade não duram –, mas foi o responsável por fazer com que Johnson abandonasse os estudos ainda no ensino fundamental. Hoje ela faz campanha por uma lei estadual que restrinja casamentos de menores de idade, parte de um movimento nacional que quer acabar com essa situação nos Estados Unidos. Enquanto isso, crianças de 16 anos, ou menos, ainda se casam na Flórida – há pelo menos um por semana. 

Você deve estar pensando: "Casamento infantil? Isso é o que acontece em Bangladesh ou na Tanzânia, não nos Estados Unidos". 

Na verdade, mais de 167 mil jovens de 17 anos ou menos se casaram em 38 estados, entre 2000 e 2010, de acordo com dados dos contratos matrimoniais encontrados e analisados pelo grupo Unchained at Last, que busca a proibição do casamento infantil. Na pesquisa apareceram casos de meninas de 12 anos se casando no Alaska, na Louisiana e na Carolina do Sul, enquanto que em outros estados a categoria era "14 anos ou mais jovens".  

250 mil casamentos infantis

O grupo não conseguiu obter números de outros estados. Mas estima-se que em todo o país foram quase 250 mil casamentos infantis, entre 2000 e 2010. A estimativa do grupo é fortalecida pelos dados do Gabinete Censitário dos Estados: pelo menos 57.800 americanas entre 15 e 17 anos relataram estar casadas em 2014. 

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Entre os estados com maiores índices de casamentos infantis estavam Arkansas, Idaho e Kentucky. Os números tem diminuído, mas todos os estados americanos permitem que meninas menores de idade se casem, normalmente com o consentimento dos pais, de um juiz, ou de ambos. Vinte e sete estados nem mesmo definem uma idade mínima em seus estatutos, segundo a Iniciativa Contra Casamento Forçado do Centro de Justiça Tahirih. 

A grande maioria dos casamentos infantis envolve meninas com homens adultos. Tal relacionamento sexual viola as leis sobre estupro, mas o casamento pode tornar essa relação legal. 

Resistência

Em New Hampshire, quando a escoteira Cassandra Levesque descobriu que, em seu estado, as meninas poderiam se casar aos 13 anos, decidiu que era preciso mudar a lei. 

Um legislador apoiou o projeto de lei de Cassandra para elevar a idade mínima de casamento para os 18 anos, e pesquisadores descobriram duas garotas de 15 que haviam se casado recentemente em New Hampshire, além de uma menina de 13. Mas os políticos resistiram à iniciativa. 

"Estamos pedindo a revogação de uma lei que funciona sem problemas há mais de um século com base no pedido de uma escoteira", ridicularizou um deputado estadual, David Bates.

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Em março, a Casa Legislativa, com maioria republicana, votou pela suspensão do projeto de lei, mantendo a idade mínima de 13 anos. 

Em Nova Jersey legisladores aprovaram um projeto de lei que faria do estado o primeiro do país a proibir casamentos de pessoas menores de 18 anos, mas o governador Chris Christie vetou a lei recentemente. Os legisladores de Nova York estão considerando um projeto de lei, apoiado pelo Governador Andrew Cuomo, para elevar a idade mínima de 14 para 17 anos. 

Os adversários se preocupam que o aumento da idade levará a nascimentos fora do casamento e observam que muitos casamentos de menores de idade são consensuais. 

Um estupro e nove filhos

Mundialmente, a cada sete segundos uma garota que ainda não completou 15 anos se casa, de acordo com estimativas da organização Save the Children. Como na África e na Ásia, as razões para tais casamentos nos Estados Unidos frequentemente são de ordem cultural ou religiosa. As famílias americanas seguem tradições conservadoras cristãs, islâmicas ou judaicas e os juízes sentem às vezes que não devem se intrometer com outras culturas. 

Johnson diz que sua família frequentava uma igreja Pentecostal conservadora e que outras garotas de idade semelhante também se casavam de tempos em tempos. Muitas vezes, conta ela, isso tinha o objetivo de esconder estupros cometidos por membros mais velhos da igreja. 

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Ela diz que foi estuprada por um ministro e um pároco e teve uma filha quando tinha apenas 10 anos (a certidão de nascimento confirma isso). Um juiz aprovou o casamento para acabar com a investigação de estupro dizendo, segundo palavras dela: "o que queremos é que você se case". 

"Foi uma vida horrível", recorda-se ela ao relatar seus anos de infância criando filhos. Teve que deixar a escola e se lembra de passar seus dias trocando fraldas, brigando com o marido e lutando para pagar as despesas. Teve uma gravidez atrás da outra – nove filhos ao todo – enquanto seu marido, de tempos em tempos, a abandonava. 

"Tiraram as algemas dele", diz ela, referindo-se ao risco que ele tinha de ser preso por estupro, "para me algemar, forçando meu casamento, sem eu mesma saber o que estava fazendo". 

"Você não pode ter um emprego, não pode pegar um carro, não pode ter carta de habilitação, não pode assinar um contrato de aluguel. Então por que permitem que alguém tão jovem se case?" 

O casamento de pessoas de até 17 anos é problemático precisamente por essas razões, segundo Fraidy Reiss, que fundou a Unchained at Last para lutar contra casamentos forçados e infantis. Forçadas pelos pais, as meninas se sentem impotentes para contestar – e sentem medo de dizer ao juiz que não querem se casar, diz ela. Se tentam fugir de um casamento abusivo, são recusadas em abrigos, às vezes até sendo tratadas como fugitivas. 

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Estupro na noite de núpcias

Alguns juízes e escrivães intervêm em nome das meninas; outros não. Reiss conta que um deles disse a uma jovem noiva de 16 anos de idade: "Não chore. Este devia ser o dia mais feliz da sua vida". 

"Para quase todas elas o casamento significa estupro na noite de núpcias e dali em diante", afirma Reiss. Ela própria, agora com 42 anos, diz que foi forçada a se casar aos 19 por sua família judaica ultraortodoxa. 

Lyndsy Duet, atualmente conselheira de uma escola no Texas, disse que foi forçada a casar aos 17 anos depois de suportar inúmeros estupros, que começaram aos 14, cometidos por um jovem conservador que sua família cristã hospedava em casa. Confusa, humilhada e desamparada, não conseguiu se impor, mas seu estuprador, sim. 

"Ele pediu minha mão em casamento aos meus pais. Minha mãe estava chorando; ela estava muito feliz", lembra-se Duet. 

Ela se sentiu impotente para resistir à pressão dos pais – e foram oito anos até que pudesse fugir do que define como um casamento violento. Uma vez, diz ela, o marido a ameaçou com uma serra elétrica. Foi apenas quando, por conta própria, frequentou a faculdade e provou ser uma estudante brilhante que, finalmente, foi capaz de escapar da situação. 

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"A maioria das meninas que chega até a organização ama sua família. Sua principal preocupação é que seus familiares não tenham problemas", diz Reiss. 

Os Estados Unidos denunciaram o casamento infantil em outros países como um "abuso aos direitos humanos que contribui para dificuldades econômicas", nas palavras de um documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos publicado no ano passado. 

Ouçamos a nós mesmos. Legisladores dos estados devem entender que o casamento infantil é devastador no Níger e no Afeganistão – mas também em Nova York e na Flórida. Já é passada a hora de pôr fim ao casamento infantil nos Estados Unidos.