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Quando Oswaldo e Célia Pereira receberam a notícia de que o filho recém-nascido tinha uma condição genética a qual lhe suscitaria algumas necessidades particulares, ainda na maternidade, o casal expressou ao pediatra uma de suas preocupações latentes: o que o pequeno Ian faria quando crescesse? “Fique tranquilo, ele mostrará o caminho”, respondeu o médico, conforme a recordação do pai.
Os anos dariam razão ao pediatra: desde pequeno, Ian Pereira gostava de brincar com tecidos coloridos e roupas dos pais, que perceberam a aptidão do menino para as artes cênicas. Aos 28 anos, o rapaz tem um currículo de grandes títulos: participou de uma montagem de “Muito barulho por nada”, de William Shakespeare, do musical “Os Miseráveis” e de uma adaptação de “Dom Quixote”. Também protagonizou peças publicitárias de marcas como O Boticário, Bradesco, Vivo e Google. “O Ian teve a sorte de se envolver com pessoas experientes, preparadas para não carimbá-lo apenas como uma ‘pessoa com Down’, mas enxergá-lo como um ser humano capaz”, conta Oswaldo, à Gazeta do Povo.
Já faz nove anos que o teatro e a dança deixaram de ser apenas hobbies e se transformaram em fonte de renda para Ian, um ponto fora da curva quando se trata da inserção de pessoas com Síndrome de Down no mercado de trabalho. Trata-se, afinal, de um gargalo comum à população com algum tipo de deficiência: segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), divulgado pelo Ministério da Economia, dos 46 milhões de vínculos de emprego formal no país, somente 486 mil - menos de 1% - abarcam esta população, composta por mais de 18,6 milhões de pessoas. “Estimamos que, para cada pessoa com deficiência empregada, há outras nove em condição de trabalhar que estão no mercado informal ou simplesmente estão desempregadas”, alerta Henri Zylberstajn, fundador do Instituto Serendipidade.
Embora não haja dados relativos apenas à Síndrome de Down, sabe-se também que, segundo os últimos dados disponíveis, o número de pessoas com alguma deficiência mental ou intelectual no mercado formal não chega a 35 000, em um grupo que abrange 2,6 milhões de brasileiros. Contudo, mesmo para as que trabalham com carteira assinada ou sob outra forma jurídica - como é o caso de Ian - um segundo desafio se sobrepõe à entrada no mercado: serem tratadas pelos gestores e colegas de trabalho como homens e mulheres capazes. Como garantir, afinal, que os eloquentes discursos sobre diversidade e inclusão beneficiem os que mais precisam?
No caso de Ian, além de contar com o apoio da família, o jovem Ian foi beneficiado pelo contato com o Instituto Movimentarte, onde começou a atuar e dançar. “Eu me sinto visto e querido pelos meus professores e colegas. Eles me incentivam, me desafiam, sabem quem eu sou”, diz o ator à reportagem. “Além do registro profissional de ator, o Ian tem CNPJ e tem suas próprias economias. Ele se coloca como um profissional, e é tratado como tal. Reconhecemos a importância de mecanismos como a lei de cotas para pessoas com deficiência, por exemplo, mas, como família, optamos por não utilizar desta via”, explica Oswaldo.
Sancionada em julho de 1991, a lei de cotas para pessoas com deficiência é, de fato, um dos elementos que posicionam o Brasil na vanguarda da legislação internacional voltada para a proteção desta minoria. Se, por um lado, os dados da Rais ilustram sua insuficiência para a abertura de novas vagas, por outro, a experiência de quem trabalha no ramo aponta para a dificuldade de garantir a qualificação e, uma vez empregado, uma boa integração do indivíduo à equipe. São as chamadas barreiras “atitudinais”, referentes à forma como um indivíduo com Síndrome de Down é tratado em seu ambiente de trabalho.
“Contratar não é sinônimo de incluir. Muitas pessoas estão contratadas, mas excluídas dentro do contexto das empresas”, afirma Flávio Gonzalez, coordenador de Inclusão Social do Instituto Jô Clemente. O caso do paulista Alex Barreiro, de 28 anos, é um exemplo desta dificuldade. Contratado para uma vaga PCD em uma grande rede de supermercados, acabou demitido em menos de três meses. “Ele foi alocado para trabalhar no caixa sem qualquer preparo ou supervisão, mesmo eu tendo avisado que não daria certo. Ficou desesperado. Costumo dizer que se for só para preencher a cota, é melhor que a empresa nem abra a vaga, porque esse tipo de situação pode ser ainda mais frustrante para a pessoa e para a família”, diz Sandra, a mãe de Alex.
Infelizmente, trata-se de uma situação corriqueira para estes funcionários, que acabam destituídos de suas próprias capacidades. “Antes de contratar alguém, qualquer gestor faz uma entrevista, entende as necessidades da posição, as competências e limitações do profissional. O problema é que, quando a vaga é PCD, muitos definem as funções de antemão, sem ter sequer conversado com quem será contratado”, diz Zylberstajn.
Neste sentido, além da personalização, o ajuste de expectativas por parte das empresas e a presença de profissionais designados para acompanhar de perto a inserção dos contratados em seus ambientes de trabalho são os caminhos para o bem comum. Foi o que mudou os rumos da vida de Alex. Amparado pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), o rapaz foi contratado por uma unidade do McDonald 's, onde trabalha há dois anos. Os desafios iniciais foram amenizados pela presença de uma psicóloga, que intermediava a relação entre a família do rapaz e seus gestores e colegas de trabalho. “Fez toda a diferença”, elogia Sandra, recordando-se do apoio de um chefe em particular. “Sempre que havia algum problema, ele me garantia que o Alex não seria demitido por qualquer coisa e buscava uma solução. Aos poucos, toda a equipe foi entendendo as habilidades e limitações dele”.
Há que se destacar também as variáveis socioculturais. “No Brasil, persiste a ideia de que pessoas com Síndrome de Down serão ‘eternas crianças’, o que não é verdade. Eles têm outro ritmo de desenvolvimento, mas têm plena capacidade de desenvolver autonomia, desde que sejam corretamente estimulados”, avalia a terapeuta ocupacional Maria Clara Bezerra, residente em Toronto, no Canadá. No país, bem como nos Estados Unidos e na União Europeia, populariza-se a metodologia do Emprego Apoiado (Supported Employment, em inglês), que consiste precisamente na oferta de profissionais capacitados a garantir a inclusão laboral de pessoas com Síndrome de Down ou outras vulnerabilidades sociais. Iniciativas similares são desenvolvidas no Brasil por grupos como o Instituto Serendipidade e o Instituto Jô Clemente.
São cuidados como estes que garantem o desenvolvimento e a realização pessoal de pessoas como o paulistano Henrique Blankdenburg, de 24 anos, recentemente contratado como orientador de público do Sesi da Avenida Paulista, após quatro anos de experiência como recepcionista na Rede Bandeirantes de TV. À reportagem, Henrique conta, orgulhoso, que o trabalho lhe permitiu conhecer ex-jogadores do Santos, seu time do coração. “Ele sai para trabalhar animado, gosta das atividades e das pessoas. O carinho que os colegas têm com ele é admirável e transformou completamente a experiência da socialização”, descreve a mãe do rapaz, Sueli Marlene.
“Hoje, entendo que a inclusão está nas pessoas. Se o gestor e os colegas não estiverem comprometidos com a causa, não há emprego que resolva”, ressalta Sandra, celebrando as conquistas de Alex. “Quando Deus me chamar, sei que meu filho vai sentir muitas saudades, mas que não estará sozinho”. Não é de todo uma novidade que a dignidade humana – o pilar da democracia e dos direitos humanos – seja o verdadeiro fundamento da inclusão. Trata-se, contudo, de um curioso paradoxo: em tempos em que as pautas ESG ditam as regras do mercado, não raramente arrogando “direitos reprodutivos”, alguns de seus mais influentes defensores parecem ignorar que a Síndrome de Down foi erradicada em alguns países onde o aborto foi descriminalizado. Há que se lutar por um futuro no qual o cuidado com os vulneráveis esteja amparado não apenas por ações afirmativas e benefícios corporativos, mas por um reconhecimento integral de que toda vida tem valor.
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