Agarrei o telefone com força, tentando entender as palavras, apesar da ligação tão ruim. Houve um momento de silêncio antes de a voz do outro lado da linha dizer: "Sinto muito, mas seu filho morreu."
Era o telefonema que eu temia há meses. Como ia dizer às minhas filhas que Rasheed, seu irmão, guerrilheiro do tal Estado Islâmico, tinha sido morto em um ataque aéreo em algum ponto da fronteira entre o Iraque e a Síria? Como responder as perguntas que certamente me fariam? Eu não tinha nenhuma. Nem corpo sobre o qual chorar. A única coisa que queria era abraçá-lo uma última vez e dizer adeus.
Rasheed nasceu em 26 de abril de 1996, na cidade do País de Gales onde eu passara praticamente a vida inteira. Fui criada em uma família anglicana, mas me converti ao Islamismo no fim da adolescência; minha nova fé me deu consolo e motivação após uma infância difícil. O homem que conheci depois e com quem me casei também era muçulmano; um argelino. A vida como membros de uma minoria islâmica em uma cidadezinha provinciana não era nada fácil, então nos mudamos para Birmingham.
Rasheed era um garoto alegre, cheio de energia e um interesse vital por praticamente tudo. Tinha olhos verdes grandes e um sorriso radiante no rosto o tempo todo. Podia ser meio malandro, aprontando pegadinhas com as irmãs, que gritavam e o perseguiam para lá e para cá, em protesto, o que o divertia ainda mais. Era uma casa barulhenta, às vezes meio maluca, mas assim era a minha família, meus filhos. Eu os amava e vivíamos contentes.
Birmingham, a cidade mais multicultural do Reino Unido, com uma mistura de comunidades brancas, asiáticas, somalis e árabes, parecia ser um bom lugar, onde nossos filhos poderiam se sentir integrados. E apesar dos desafios típicos de crescer em uma área intensamente urbana, Rasheed era um aluno exemplar. Chegou inclusive a cursar a faculdade e se inscreveu no programa de estágio em Engenharia Elétrica. Parecia estar progredindo a olhos vistos e sempre comentava que queria abrir o próprio negócio.
No início de 2014, porém, as coisas começaram a mudar. Meu marido e eu estávamos tendo dificuldades de relacionamento e Rasheed passou a se retrair. Meu menino, sempre tão engraçado e bem-humorado, aos poucos foi se transformando em um rapaz de 18 anos de ar indiferente. Deixou o cabelo fino crescer e virar uma juba. Sempre usara jeans desbotados e moletons com capuz, mas passara a dar preferência a calças largas com a túnica longa tradicional por cima.
De fato, chegou a me pedir, insistentemente, que encurtasse a barra de suas calças, para que ficassem acima das canelas. Sendo mãe, mas também consciente em termos de moda, o fato me incomodou, principalmente porque eu sabia que era o visual escolhido por aqueles que aderem às interpretações mais rígidas do Islã.
Ele tinha o hábito de frequentar a mesquita local com o pai. Era uma congregação moderada, que servia a primeiras e segundas gerações de imigrantes asiáticos e árabes. Só que começou a ficar impaciente com os frequentadores mais velhos e cultos; por isso, optou por uma confraria mais jovem de um templo conhecido pelos ensinamentos mais conservadores.
Rasheed, que sempre fora um leitor meio preguiçoso, passou a se mostrar ávido, trazendo para casa exemplares da literatura islâmica de autores dos quais eu nunca ouvira falar. E também começou a jejuar mais, fora das normas do Ramadã – o que causava tensão, pois significava que nunca estava presente às refeições familiares. Como nosso relacionamento já estava meio abalado, não forcei a questão porque não queria outro motivo de briga.
Foi um ano inquietante e eu me distraí com os altos e baixos do meu casamento. Meu marido e eu acabamos superando nossas diferenças, mas Rasheed se retraiu ainda mais. Com o passar dos meses, ele foi ficando cada vez mais esgotado e preocupado, como se o esforço de se conter fosse excessivo.
Às vezes, eu tinha a impressão de não mais reconhecê-lo, mas aí então conseguia ver alguns relances de seu antigo comportamento. Tinha a esperança de que, sob a angústia adolescente, Rasheed ainda fosse o mesmo, até que, em dezembro, achei que o sol voltara a brilhar. De repente, meu garoto se tornou mais descontraído e animado, voltou a sair com os velhos amigos. Fiquei aliviada, pois parecia ter superado o que quer que fosse que o estava perturbando.
Um dia, deixou um presente no meu travesseiro: um colar de diamantes com um bilhete que dizia: "Mãe, não importa quanto ouro e quantas pedras preciosas tenham sido usadas aqui; elas nunca representarão o quanto você é preciosa para mim. Te amo, Rasheed." Meu filho tinha voltado para mim.
Só muito mais tarde percebi que essa mudança estava longe de ser uma recuperação, e tinha mais a ver com algo triste e sinistro. Rasheed tinha entrado na fase de radicalização, quando a pessoa se prepara para "partir". Parece muito com a pessoa depressiva que decide se suicidar; seu humor inclusive melhora com a decisão, o que dá à família e aos amigos uma falsa sensação de segurança.
Hoje eu sei que o presente de Rasheed era a maneira que encontrara de se despedir.
A sexta, 29 de maio de 2015, começou como outro dia qualquer, mas foi a última vez que vi meu filho. Não teve beijo, nem mesmo um bilhete. Ele simplesmente foi embora. Rasheed abandonou a vida que levava conosco com a roupa do corpo, deixando para trás tudo o que conhecia.
Apreensivos, notificamos a polícia de sua partida abrupta. E enquanto as autoridades conduziram sua investigação, era como se houvesse uma nuvem pairando sobre nós. Entendíamos por que tinham que fazer aquilo, mas sentíamos também o peso da suspeita: será que sabíamos mais do que dizíamos? Isso só aumentou nossa culpa por não termos interpretado melhor os sinais com antecedência e, de alguma forma, feito algo para impedi-lo.
Os policiais nos pediram para ver as cenas de uma das câmaras de segurança do aeroporto, que mostravam um jovem se preparando para embarcar em um voo para a Turquia. Com o olhar fixo nas imagens pouco nítidas, não tive dúvida. Era Rasheed.
Eu, que até então estava entorpecida, fiquei furiosa. Como ele tivera a coragem de fazer aquilo comigo?
Depois de 2,5 meses de angústia, Rasheed finalmente entrou em contato através do WhatsApp. Disse que estava na Síria. Assim que ouvi isso, sabia que tinha que me preparar para o pior.
Mas também teria que fazer uma escolha: poderia continuar alimentando a raiva que sentia do meu filho pelas decisões que tomara, correndo o risco de perder contato com ele para sempre, ou tentar me acalmar e manter nossa relação viva na esperança de que acabasse caindo em si. Escolhi a segunda.
De vez em quando parecia surgir um raio de esperança; durante a conversa com uma das irmãs, ele comentou: "Se estiver errado em relação à escolha que fiz, reze para que Deus me tire dessa situação."
Será que estava tendo dúvidas? Foi a forma que encontrou de pedir ajuda, uma saída?
Ao me comunicar com Rasheed nos meses que se seguiram, através de telefonemas e mensagens, tentei desesperadamente vencer a batalha para recuperar o coração e a mente do meu filho. Resolvi confiar nos laços que já tinham nos unido. O garoto que eu criara desaparecera; entretanto, sempre que nos falávamos, ele continuava a me chamar de "mamãe".
Um dia, meio sem graça, me contou que um dos líderes do Estado Islâmico se propusera a lhe encontrar uma noiva jihadi. E comentou o nervosismo por causa do encontro com a jovem e da ideia de se casar. Perguntou o que eu achava. O que poderia dizer? Apesar de tudo, ainda queria a aprovação da mãe.
Ele e o grupo com quem estava viviam com o medo constante de ataques aéreos que, quando aconteciam, forçavam-nos a procurar por sobreviventes sob os escombros. Comentou que eram forçados a assistir a decapitações públicas, que serviam de alerta grotesco para quem pensasse em deserdar. Ele nunca me disse das coisas de que era incumbido – pois os telefonemas eram monitorados –, mas uma vez, quando seu pai insistiu, Rasheed disse que tinha sido enviado ao reduto oriental do EI, Raqqa, para "visitar Bashar Assad". Assumimos que, com isso, ele dizia ter se envolvido na luta contra as forças do governo sírio.
Eu sabia que ele podia ser morto a qualquer momento e lutava contra a tentação do luto antecipado. Não há manual que prepare um pai para isso.
Foi quando recebi o telefonema.
Desde a morte de Rasheed, repasso todos os detalhes de cada lembrança, em busca de indícios sobre o que o fizeram sair de casa para ir lutar na Síria. O que foi que perdi?
As pistas eram difíceis de decifrar; o contexto sempre dava espaço para outras explicações, perfeitamente inocentes. Em minha busca por respostas, conheci famílias de várias partes do globo que tiveram os mesmos problemas de identificação dos sinais de alerta. Quase sempre havia algum antecedente de histórico de problema mental, ou seja, os pais entendiam a frequência maior no comportamento agitado, ansiedade social ou isolamento social através desse prisma e não como sinais de radicalização.
No caso de Rasheed, teve a mudança de sua aparência e a decisão de frequentar uma mesquita diferente. Pensando bem, eu deveria ter questionado mais seu distanciamento do grupo social a que pertencia – e, provavelmente, do olhar vigilante do pai. Ingênua, interpretei as mudanças dele como sua maneira de explorar e formar a identidade sem a interferência dos pais. Foi o maior erro e arrependimento da minha vida, mas aí pergunto aos pais de qualquer adolescente: no meu lugar, vocês teriam feito melhor?
Não posso trazer Rasheed de volta, mas encontrei consolo em meu trabalho, ajudando famílias com experiências semelhantes às minhas a processar as delas. Precisamos de um lugar onde os pais sintam que estão sendo ouvidos e compreendidos, onde falem sem medo de preconceito, julgamento ou vergonha. É no desenvolvimento da confiança entre as famílias, comunidades e governos que podemos encontrar a força e a determinação necessárias para derrotar o terrorismo.
*Nicola Benyahia é a fundadora de Families for Life, ONG que investe na desradicalização e no apoio às famílias das vítimas.
Deixe sua opinião