Mia Khalifa, uma libanesa de 27 anos radicada nos Estados Unidos, se tornou famosa na internet em meados de 2014. Mais especificamente por conta de um vídeo pornográfico, estrelado pela jovem que na ocasião usava um hijab, lenço tradicional que cobre a cabeça das mulheres islâmicas. O vídeo em questão fez parte da breve carreira de Mia como atriz pornô, que durou apenas 3 meses. Breve, mas suficiente para que ela se levantasse contra essa indústria bilionária.
A fama obtida no meio pornô quando ela tinha 21 anos ainda a persegue, e Mia quer mudar esse cenário. A ex-atriz e hoje influenciadora digital abriu uma petição online onde pede a remoção dos vídeos protagonizados por ela. O documento já conta com mais de 1,5 milhão de assinaturas, metade da meta estipulada.
Ela tornou o caso público em agosto de 2019, em uma entrevista à BBC. Mia disse ser 100% responsável pela decisão de ter entrado nesse meio, mas disse que algo precisa ser feito para “proteger outras garotas para que elas não caiam na mesma armadilha”. A armadilha, aqui, foi o contrato assinado pela ex atriz. Mia alega ter recebido US$ 12 mil (pouco mais de R$ 64,2 mil em valores atualizados) por um total de seis vídeos gravados, mas não havia nada no contrato sobre royalties ou bônus sobre os acessos aos vídeos.
Ela diz ter sido classificada pelos produtores como “um fenômeno raro”. E esse fenômeno chamou a atenção também do Estado Islâmico. Um de seus integrantes, ofendido pelo uso do hijab pela ex-atriz pornô, colocou uma foto de Mia sobre uma pessoa que havia sido decapitada. “Não lembro exatamente o que disseram. Mas era algo sobre eu ser a próxima”, disse Mia na entrevista.
Condições degradantes e trauma
Esse “fenômeno raro” ainda rende lucros aos produtores dos filmes e aos sites que hospedam esse material. E não é pouco dinheiro envolvido nesse meio. O lucro da indústria pornográfica chega a ser estimado em US$ 90 bilhões ao ano. Pouco desta fortuna é repartida entre atores e atrizes, que na maioria das vezes se submetem a condições degradantes durante as gravações das cenas -- grande parte das atrizes acaba sofrendo de estresse pós-traumático em níveis equivalentes a veteranos de guerra.
Esses danos não se restringem ao lado de dentro dessa indústria, mas se reflete também em quem consome a pornografia. A exposição a esse tipo de conteúdo na infância pode gerar consequências para toda a vida. Por ser muito mais fácil de encontrar do que combater, a pornografia está cada vez mais acessível em todas as telas a ponto de ser considerada “inevitável” e como “parte de toda uma geração”, como mostra um estudo feito na Nova Zelândia.
Direcionamento a crianças
Um dos maiores sites de hospedagem de vídeos pornográficos ostenta, com orgulho, os números astronômicos. Em 2019 foram 42 bilhões de visitantes – mais de 115 milhões de acessos diários. Foram quase 7 bilhões de novos vídeos carregados para o site, que estima em 169 anos o tempo estimado para assistir a todo esse conteúdo agregado – caso fosse possível assistir a um vídeo após o outro em sequência, a fila de exibição apenas com o material carregado em 2019 acabaria só em 2189.
Em quantidade de dados, esse volume representa, segundo o site, mais de 6,5 mil petabytes (cada petabyte corresponde a 1.000.000.000.000 de megabytes). Se esse amontoado de dados fosse colocado em discos rígidos comuns, a pilha alcançaria uma altura de 100 quilômetros. Tamanha audiência serve de lastro para cobrar pela publicidade exibida nos sites, a real fonte de renda num mercado onde a maioria do conteúdo acessada é gratuita e fácil de ser localizada.
Mundo afora existem diversas entidades e organizações que buscam dar amparo e proteção a quem decide sair do mercado. Organizações como a Fight The New Drug e a Exodus Cry chamam a atenção para como o mercado pornográfico trabalha, inclusive com denúncias sobre o modo com que os sites de hospedagem de vídeos supostamente direcionam seu conteúdo a crianças.
Arrependimento
No Brasil, personalidades famosas também se dizem arrependidas do passado de atuações em filmes adultos. Alexandre Frota, hoje deputado federal pelo PSDB de São Paulo, tem um histórico em produções pornô. Em diversas oportunidades ele afirmou ter feito os filmes porque “precisava do dinheiro”. Gretchen, que hoje é celebridade pelos memes de internet, também afirma ter odiado participar de filmes adultos, e que não os faria novamente.
Vanessa Danielli, ex-atriz pornô premiada por suas atuações (sim, existem premiações para filmes pornográficos) escreveu em seu perfil no Instagram um texto onde conta um pouco da experiência que teve até o fim de 2016.
“Agora que estou fora daquela realidade, consigo enxergar e entender muitas coisas que não entendia antes. Naquela época eu não tinha perspectiva de futuro. (...) Olha o que eu pensava antigamente: ‘preciso pensar em um jeito de morrer e não desperdiçar os meus órgãos, preciso pagar a cremação, vou morrer aos 30 anos, já tenho 27, tic tac Vanessa, acorda, não tem mais nada pra você fazer aqui’. (...) Eu sempre fui acostumada com as pessoas decidirem por mim o que eu merecia, e nunca era um diploma ou algo que me fizesse mais humana, era sempre algo em que tiravam proveito e em seguida eu ia direto pra lata de lixo. Bom, eu saí do olho do fundo de uma lata de lixo’.”
Ela abandonou o nome artístico de Bárbara Costa e hoje administra uma página no YouTube sobre cultura nerd, com mais de 91,8 mil inscritos.
Ninguém está a salvo
E quando os danos causados pela pornografia atingem quem nem mesmo faz parte desse mercado?
Foi o que aconteceu com Pillar Costa, de 28 anos. Ela é atriz e professora de teatro, e já participou de produções na Globo e na Record. Em novembro do ano passado ela recebeu uma ligação de seu pai. O tom de desespero na chamada assustou Pillar, e tinha uma explicação: um conhecido de seu pai que mora na mesma cidade, no interior de Minas Gerais, tinha dito que ela havia se mudado para o Rio de Janeiro para virar prostituta.
Um trecho de um vídeo gravado por ela para um canal de humor no YouTube foi editado e postado em um site que hospeda vídeos pornográficos. Tudo sem a autorização da atriz. Pillar entrou em contato com o site e pediu a remoção do conteúdo, o que segundo ela foi feito em cerca de 24 horas. Mas o estrago já estava feito.
Em um relato ao UOL, a atriz disse que chegou a pensar em tirar a própria vida por conta da culpa que sentiu. “Comecei a receber mensagens dizendo que não deveria ter gravado esse tipo de vídeo. Como assim? Eu sou uma atriz. Fiquei muito mal porque parecia que a culpa era minha”, disse.
Pillar contou que sentiu medo e vergonha, e que seu pai ficou sem falar com ela por meses. “O problema é quando nos julgam. Comecei a ter percepções que não existem sobre mim mesma. Cheguei a escrever uma carta pra minha família pedindo desculpa e pensei em me suicidar porque me sentia culpada”, contou.
A forma que a atriz encontrou para superar a situação foi criar um projeto para encorajar ouras vítimas de exposição sexual a falar sobre os casos, “Por Um Fio”. Na série, Pillar narra as histórias que recebe por email e também fala com especialistas em direito e psicologia.
“Um dos depoimentos que recebi foi o de uma mulher de 48 anos que, quando era jovem, teve fotos íntimas expostas na escola. Não tinha redes sociais na época. Uma pessoa imprimiu as imagens e colou nas paredes. Por causa disso, ela ficou três anos sem sair de casa, a mãe a prendeu, não deixava sair e ficava de vigia”, relatou a atriz. “Quero mostrar à sociedade que temos que abrir os olhos. Minha vontade é gritar para todo mundo ouvir: 'Você não é culpada', assim como eu não fui."
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