O trauma dos russos que viveram o socialismo, juntamente com a campanha de obscurantismo do regime soviético - e, posteriormente, do governo russo - teve resultados. Uma pesquisa revelou que mais da metade dos cidadãos russos entre 18 e 24 anos nunca tinha ouvido falar da repressão feita por Stalin. Como resposta a isso, o Youtuber Yury Dud se propôs a falar aos jovens russos sobre os horrores do regime soviético - principalmente dos gulags.
A missão de Dud vai contra o status quo de desinformação no país: os livros escolares e os meios de comunicação evitam falar sobre o regime soviético. "Tomamos isso como um desafio", afirma Dud na introdução de seu filme Kolyma: the home of our fear [Kolyma: a casa do nosso medo].
"Não sei quanto a você, mas toda a minha vida tenho ouvido meus pais dizerem: 'tenha cuidado e não atraia atenção desnecessária, pois é perigoso. E, além disso, somos pessoas simples – não decidimos nada’", diz Dud, graduado em jornalismo pela Universidade Estadual de Moscou e editor de um dos sites de esportes mais populares da Rússia.
"Mas eu queria entender: de onde vem o medo da geração mais velha? Por que eles estão convencidos de que atos de coragem, não importa quão pequenos sejam, estão fadados a serem punidos?", questiona.
O filme foi gravado como um diário de viagem, abrangendo dois mil quilômetros em nove dias. Dud intercala paisagens de terras inóspitas com entrevistas com os descendentes das vítimas do Grande Terror de Stalin e os residentes atuais da região que abrigou gulags.
"O programa que você está prestes a ver tem dois objetivos. O primeiro é explicar a alguns, e lembrar aos outros, os horrores que nosso país viveu. O segundo é mostrar que há lugares em nosso planeta que parecem inabitáveis, mas onde uma pessoa pode, no entanto, adaptar-se, viver e ser feliz”, diz Dud no início do filme.
O filme de Dud foi batizado em referência ao rio Kolyma e a rodovia homônima construída por detentos dos gulags. A história sinistra faz parte também da composição da rodovia: ela é conhecida como Estrada dos Ossos, afinal os restos mortais de milhares de pessoas que morreram durante sua construção foram enterrados sob a própria estrada.
"Kolyma não é o nosso passado, mas nosso presente", diz Yury Dud. "O medo é o principal inimigo da liberdade. A libertação só pode ser alcançada reconhecendo o passado e respeitando uns aos outros. Não tenha medo. Talvez assim nosso país não verá mais vezes em que as pessoas são tratadas pior do que animais.”
Registros pouco confiáveis
Mais de 16 milhões de pessoas foram mandadas para campos de trabalho forçado, em condições desumanas, privadas de liberdade e sem condições de saúde. Estimativas apontam que pelo menos 2 milhões de pessoas foram mortas como prisioneiros políticos, incluindo os "kulaks" (camponeses ricos) e membros de minorias étnicas (por exemplo, coreanos, alemães, poloneses e chechenos). No entanto, os números podem ser ainda maiores. Muitos arquivos secretos ainda se encontram indisponíveis para estudos até hoje.
O número de vítimas do Gulag é desconhecido. Por um lado, o governo soviético mantinha registros pouco precisos dos horrores do regime; por outro, o atual governo russo mantém esforços de esconder a verdade sobre o sofrimento do povo durante a União Soviética.
“Após a Segunda Guerra Mundial, houve uma enorme onda de processos por roubo e muitas pessoas consideradas culpadas de infrações menores, como roubar um pedaço de pão para sobreviver, receberam sentenças longas em campos de prisioneiros. Havia muito pouco processo legal para os presos - a maioria foi julgada de forma acelerada, sem a possibilidade de se defender”, diz Alan Barenberg, professor do Departamento de História da Texas Tech University e especialista em história da União Soviética, em entrevista à Gazeta do Povo.
No livro Gulag: Uma História (Ed. Record), a escritora Anne Applebaum afirma que ter dados exatos de vítimas seria importante para mensurar o horror do regime soviético.
“Um número exato de vítimas mortas seria extremamente bem-vindo, sobretudo porque nos permitiria comparar Stalin diretamente com Hitler ou com Mao. Mas, mesmo que pudéssemos chegar a um número, não tenho certeza se ele realmente contaria toda a história do sofrimento.”
Applebaum ressalta que a história do Gulag (acrônimo, em russo, para Administração Central dos Campos) é a história da União Soviética, pois foi a consequência lógica de muitas outras políticas.
“O Gulag exercia dois papeis. Primeiro, o punitiva. Isso gerou medo. O Gulag estava muito espalhado, tinha filiais por toda a União Soviética e todos sabiam disso. Todo mundo sabia que o sistema existia. O Gulag não era algum tipo de parte oculta da sociedade. Ele funcionava como algo que assustava as pessoas, mas também exercia um papel econômico muito importante”, explica.
Por outro lado, o Gulag tinha a tarefa de explorar minas de carvão, urânio e ouro. No seu auge, no final dos anos 1940 e começo dos anos 1950, o Gulag era um enorme império econômico, controlando fábricas e áreas inteiras da Rússia.
“De certa forma, ele distorceu a maneira como a União Soviética pensava a economia. Então, quando um grande depósito de carvão era descoberto no extremo norte, os russos não enviavam, como se faria no Alasca, equipes para trabalharem lá durante algumas semanas, voltando para se recuperarem e retornando mais uma vez ao trabalho. Em vez disso, como tinham mão-de-obra gratuita e não se importavam com os custos, os soviéticos construíram cidades enormes no Extremo Norte, algo que praticamente ninguém faria em outro lugar”, explica Applebaum.
“A cidade de Vorkuta, a cidade de Norilsk, Magadan. Essas foram empreitadas enormes, grandes cidades construídas porque havia trabalho gratuito, porque havia trabalho escravo. É possível perceber as distorções que o Gulag criou para a economia soviética. E ainda é possível vê-las hoje”, acrescenta.
Parte essencial da economia soviética
Uma vez no Gulag, além de estarem em regime de trabalho forçado, os prisioneiros soviéticos - muitos deles inocentes, presos com justificativas questionáveis apenas para aumentar a mão de obra - eram colocados em condições de trabalho extremas. Enquanto trabalhavam, os prisioneiros não recebiam roupas de segurança ou equipamentos adequados para suas tarefas. Muitas vezes eles só tinham suas roupas de inverno e ferramentas manuais primitivas para escavar ou construir projetos complexos no clima extremo da Sibéria, no Círculo Polar Ártico. Como resultado, mortes por exaustão eram parte do cotidiano.
Enquanto eram mantidos nos campos de trabalho, os prisioneiros recebiam uma pequena quantidade de alimentos que, com baixo teor de proteína, não eram suficientes para alimentá-los durante jornadas extremas de trabalho manual. As mulheres enfrentavam riscos ainda piores: além de serem submetidas aos mesmos trabalhos braçais que os homens, muitas se viam obrigadas a aceitar um parceiro para evitar que fossem estupradas por guardas ou outros prisioneiros. Trocar favores sexuais por um tratamento melhor com guardas também era uma das regras básicas de sobrevivência. As mulheres que engravidavam nos gulags eram separadas dos seus filhos, que eram enviados para orfanatos. Muitas delas nunca reencontraram seus filhos, mesmo depois de libertadas.
“Prisioneiros doentes eram muitas vezes dispensados para que morressem ‘fora dos livros’ (isto é, suas mortes não contariam nos registros oficiais do Gulag). As mulheres que engravidavam geralmente podiam ficar com seus bebês por dois anos antes de as crianças serem enviadas para orfanatos. A mortalidade entre mulheres grávidas e crianças era muito alta”, reforça Alan Barenberg.
Já durante a Segunda Guerra Mundial, prisioneiros foram obrigados a lutar com batalhões - e, claro, eram levados para a morte. Os batalhões penais eram seguidos por grupos de soldados que atiravam nos condenados caso eles tentassem recuar. Além disso, eles eram obrigados a fazer trabalhos pesados e perigosos nos campos de batalha.
Um desses trabalhos era atravessar um campo minado para retirar explosivos, uma missão suicida que consistia em ser obrigado a sacrificar a própria vida para que batalhões regulares pudessem atravessar os campos em segurança.
“Mais de 1 milhão de prisioneiros foram mandados para o Exército Vermelho, a maioria usada como bucha de canhão”, diz Barenberg. Ele acrescenta que os campos produziram material de guerra e milhões foram subcontratados para as indústrias de defesa bélica.
“Os campos de trabalho forçado também desempenharam um papel importante no desenvolvimento de armas, já que os prisioneiros com treinamento especial eram frequentemente enviados para campos secretos específicos (sharashki) onde trabalhavam em projetos militares”, conta.
Legado ingrato
Os rastros dos gulags podem ser percebidos até hoje por turistas que viajam em balsas pelos canais Moscou-Volga e Báltico-Mar Branco. A construção dos canais foi parte da iniciativa de Stalin para modernizar a Rússia, que incluía planos para o transporte marítimo direto. Para construir os canais, foi empregado um grande volume de mão de obra dos gulags.
De 1931 a 1933, milhares de prisioneiros foram levados para as áreas de construção e cavaram, principalmente à mão, uma extensão de quase 50 quilômetros até o canal Mar Branco-Báltico. As condições de trabalho resultaram em quase 12.000 de mortes - os trabalhadores mortos durante a construção do canal foram jogados em uma vala comum e enterrados embaixo do canal antes de ele ser inundado.
“O Gulag foi usado para todos os tipos de projetos de construção em toda a União Soviética, de barragens hidrelétricas a ferrovias e habitações civis”, explica Barenberg. “Embora nem sempre seja amplamente reconhecido, o legado do Gulag está presente em praticamente todas as partes da antiga União Soviética.”
Princípio do fim
Quando Stalin morreu, em 1953, os gulags tinham mais de três milhões de prisioneiros. Poucos dias após sua morte, milhões de prisioneiros foram libertados e o novo primeiro-ministro, Nikita Sergeyevich Kruschev, iniciou um processo de “desestalinização”, conhecido como "degelo".
Com o fim do stalinismo, os campos de trabalho forçado foram fechados e muitos prisioneiros foram reabilitados. No entanto, o trauma que infligiu os russos de 1918 até a morte de Stalin deixou cicatrizes que permanecem nas gerações seguintes: na Rússia contemporânea, grande parte da população ainda tem medo de discutir o episódio.
“Agora, neste momento, o atual governo russo e o atual Kremlin não tentam reprimir a discussão sobre Stalin - como, é claro, foi o caso no passado. Mas ele tenta lidar com isso seletivamente. Portanto, há muito pouca discussão sobre o Gulag”, diz Applebaum.
No ano passado, o Museu de História de Gulag, em Moscou, descobriu uma ordem secreta de 2014 que instruiu os oficiais russos a destruir os cartões de registro de ex-prisioneiros que haviam atingido a idade de 80 anos - o que incluiria quase todos eles. O especialista em arquivos do museu, Alexander Makeyev, disse que eles descobriram que os cartões foram destruídos em Magadan, no leste da Rússia, região que abrigou alguns dos maiores campos de prisioneiros da União Soviética.
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