Na contramão de uma extensa lista de países que estão banindo de dispositivos do governo federal aplicativos chineses de compartilhamento de vídeos, como o TikTok e o Kwai, no Brasil pelo menos 15 ministros e pessoas do alto escalão, incluindo Lula, mantêm contas nessas plataformas. Nos últimos meses, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, Alemanha, França, Índia, Afeganistão, Holanda, Noruega, Nova Zelândia, entre outras nações e o Parlamento Europeu tomaram medidas para proibir o TikTok por preocupações com privacidade e segurança de dados. Na maioria das situações, o aplicativo foi banido de dispositivos de funcionários oficiais. No Brasil, um levantamento da Gazeta do Povo mostra que a preocupação parece ainda não ter chegado ao governo federal.
Os ministros de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), Casa Civil, Rui Costa (PT), Justiça, Flávio Dino (PSB), Fazenda, Fernando Haddad (PT), Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), Planejamento, Simone Tebet (MDB), Igualdade Racial, Anielle Franco, Povos Indígenas, Sônia Guajajara (PSOL), Cultura, Margareth Menezes, Desenvolvimento Social, Wellington Dias (PT), Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva (Rede), Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta (PT), além do vice-presidente e ministro de Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin (PSB), do presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e do próprio Lula, têm contas ativas no TikTok. Haddad, Tebet, Lula e a estatal Petrobras também mantêm contas no Kwai.
A reportagem entrou em contato com as assessorias da Presidência, dos ministérios e da Petrobras, para entender quem administra essas contas (e o risco que haveria de um assessor usar o mesmo dispositivo para tratar de assuntos estratégicos das pastas), se os ministros e o presidente têm os aplicativos chineses instalados no próprio celular e se os problemas de segurança envolvendo essas plataformas estão entre as preocupações do governo.
A assessoria do ministério do Meio Ambiente se limitou a responder que “as contas pessoais da ministra não são administradas pelo MMA”. A mesma linha foi seguida pela equipe de comunicação do ministério do Planejamento e Orçamento, que “não gere as contas pessoais da ministra Simone Tebet. Somos responsáveis, apenas, pelas contas oficiais do MPO”. O ministério da Justiça e Segurança Pública também afirmou que “não faz administração de conta de TikTok” e não voltou a responder sobre quem administraria o perfil de Flávio Dino na rede. As demais assessorias, incluindo a da Presidência, não responderam até o fechamento desta reportagem.
FBI em alerta
Longe de teoria da conspiração, a segurança da informação relacionada ao uso desses aplicativos tem sido uma preocupação de importantes agências americanas, como o FBI e a Comissão Federal de Comunicações. No último mês, o diretor do FBI, Christopher Wray, disse ao comitê de inteligência do Senado dos EUA que o TikTok traz evidentes “preocupações de segurança nacional”, sendo apenas um exemplo de como o governo chinês está “engolindo informações”. Segundo ele, Pequim usaria supercomputadores e inteligência artificial para identificar alvos de espionagem e roubar propriedade intelectual. “Os dados são a moeda do reino. Aqueles que têm as melhores informações têm o poder e é isso que os capacita a agir”, afirmou, ladeado por Avril Haines, diretora de inteligência nacional norte-americana, e Bill Burns, diretor da CIA.
Em 27 de fevereiro, a Casa Branca deu um prazo de 30 dias às agências federais para excluir o aplicativo dos dispositivos do governo. Em 1º de março, um comitê da Câmara dos EUA votou no sentido de promover uma legislação que permita a Joe Biden banir o TikTok, que tem 150 milhões de usuários americanos, de todos os dispositivos do país. A medida tem raro apoio de parlamentares democratas e republicanos, e já havia sido tentada por Donald Trump, quase três anos antes.
Em quase cinco horas de depoimento ao Congresso americano, em 23 de março, o executivo-chefe do TikTok, Shou Zi Chew, tentou convencer os parlamentares a não banir o aplicativo no país ou mesmo forçar sua venda a não chineses, como condição para manter a permissão ao uso. Ele foi longamente interrogado sobre o relacionamento do aplicativo com a empresa-mãe, ByteDance, que tem escritórios em Pequim, e a influência da China sobre a plataforma.
O FBI alerta que a ByteDance pode compartilhar dados de usuários do TikTok, como biometria, histórico de navegação e localização, com o governo autoritário chinês. A preocupação se fundamenta em uma lei chinesa de 2017, que obriga empresas a entregar dados pessoais relevantes à segurança nacional da China. Em dezembro, a mantenedora do TikTok admitiu ter demitido quatro funcionários que acessaram dados de jornalistas do Financial Times e do Buzzfeed News, o que acendeu mais um sinal de alerta sobre a segurança da informação.
Em março, um ex-gerente de risco do TikTok disse aos parlamentares americanos que o plano da empresa para proteger os dados dos usuários dos Estados Unidos é profundamente falho. Em entrevista exclusiva ao jornal Washington Post, o funcionário que trabalhou por seis meses, entre meados de 2021 e o início de 2022, na divisão de Confiança e Segurança da ByteDance disse que há evidências de que mais de 100 milhões de usuários americanos podem estar expostos a funcionários baseados na China, ainda que a companhia prometa novas regras de segurança para isolar informações de usuários domésticos.
Confira no infográfico as restrições impostas ao TikTok pelos países
Em fevereiro, as três principais instituições da União Europeia (UE) – o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho da UE – proibiram o TikTok em dispositivos de funcionários e aconselharam os legisladores e funcionários a remover o aplicativo de dispositivos pessoais. Medida semelhante foi adotada por outros países.
Na Índia, assim como no Paquistão, a medida foi ainda mais restritiva, e a proibição a aplicativos chineses passou a valer para toda a população. Em 2020, o governo indiano baniu 59 plataformas chinesas por questões de segurança de dados, o que inclui o Kwai, rival do TikTok na Índia e na China. No fim daquele mesmo ano, uma denúncia enviada pelo Centro de Pesquisa de Políticas de Economia Digital a membros do governo indiano, incluindo o ministro do interior, afirmava que o Kwai contornou a proibição apenas mudando o nome para Snack Video no país.
Alvos de espionagem
No Brasil, além de o TikTok continuar a ser usado por pessoas do alto escalão, a agência de notícias do governo publicou um conteúdo em fevereiro promovendo uma iniciativa da plataforma. "O TikTok transmitirá, ao vivo, o conteúdo do Ultimate Fighting Championship (UFC). A novidade faz parte de um acordo com a organização que promove lutas de MMA (artes marciais mistas), informou a rede social chinesa", reproduziu a Agência Brasil.
O jornalista Leonardo Coutinho, colunista da Gazeta do Povo e pesquisador do Center for a Secure Free Society, uma rede global de acadêmicos com sede em Washington, DC, que trabalha com a promoção da segurança e da liberdade, lamenta que no Brasil segurança nacional soe “como assunto de gente maluca”.
“Telefones celulares funcionais de chefes de Estado, ministros e funcionários que lidam com informações críticas não devem ser tratados como aparelhos de uso pessoal e muito menos como se fossem de um cidadão qualquer – ou seja que não é um alvo de espionagem. Isso significa que muitas das funcionalidades e potencialidades dos smartphones, por questões de segurança nacional, devem ser bloqueadas”, opina.
Coutinho recorda que muitos dos aplicativos coletam dados de uso, localização e acessam agenda de contatos e galeria de imagens do usuário. “Há a opção de bloquear isso nos aparelhos modernos, mas muitos apps só funcionam condicionando o acesso. Há a promessa de respeito à privacidade do usuário, mas não são raros os casos de violações. O TikTok já foi multado por violar a privacidade de seus usuários. No caso, a plataforma foi acusada de coletar sem autorização dados e até dados biométricos dos usuários”, acentua.
Outro risco, segundo Coutinho, é esse tipo de aplicativo servir de “backdoor [porta de acesso para hackers] para atores maliciosos que podem explorar falhas para ter acesso aos celulares de personagens críticos, como um presidente. “Nem sempre uma plataforma pode ser ativamente violadora da privacidade, mas pode ser usada involuntariamente para fins de espionagem. O caso da vaza-jato [a divulgação midiática de supostas mensagens de celular entre o juiz Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato] é talvez o exemplo mais bem-acabado sobre isso”, analisa.
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