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Ditadura comunista

Miséria, fome e autoritarismo: Histórias proibidas da Coreia do Norte

Norte-coreanos diante da bandeira do país durante um comício em apoio à 5ª Reunião Plenária do 7º Comitê Central do Partido dos Trabalhadores da Coreia, na Praça Kim Il Sung, em Pyongyang (5 de janeiro de 2020) (Foto: KIM WON JIN/AFP)

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Alguns livros têm história para além das suas páginas: O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger, ficou conhecido por ser lido pelo assassino de John Lennon; Os diários de Anne Frank são acompanhados pela discussão sobre a interferência do pai na publicação final. É o caso também de 'A Acusação: Histórias proibidas vindas da Coreia do Norte', de Bandi (Biblioteca Azul, R$ 49,90).

Neste caso, a história se refere a como o manuscrito deixou a Coreia do Norte para ser publicado na Coreia do Sul, já que Bandi, pseudônimo de um escritor norte-coreano, ainda mora no país. Qualquer pessoa encontrada com o manuscrito do livro seria facilmente acusada e morta por traição, já que os sete contos que constituem a obra são uma forte crítica ao governo de Kim Il-sung, que comandou o país de forma ditatorial entre 1948 e 1994.

Parênteses histórico: No começo do século XX, a Coreia foi anexada pelo Império do Japão. Com a rendição japonesa no final da Segunda Guerra Mundial, a Coreia foi dividida em duas zonas: uma ao norte, ocupada pela União Soviética, e uma ao sul, ocupada pelos EUA. Em 1948, se formaram os dois governos, sendo que ambos reivindicavam a união da península sob sua própria bandeira – o que provocou a Guerra da Coreia (1950–1953). Um acordo levou a um cessar-fogo, mas nenhum tratado de paz foi assinado, e esta ainda é uma fronteira instável. A Coreia do Norte tem sido governada por Kim Il-sung e sua família desde então. Os meios de produção são estatais e as fazendas são coletivizadas.

Com uma produção literária exclusivamente propagandista e com censura fortíssima, é fácil ver porque os textos de Bandi são tão perigosos. Em sete contos, o autor revela que a Coreia do Norte é gerida por um sistema de privilégio, no qual aqueles que têm bons contatos conseguem mais chances ou vantagens. Além disso, a população vive com medo constante e as necessidades básicas de alimentação e saúde não são atendidas. Ele também apresenta o sistema com suas contradições internas: no discurso, se diz igualdade, na prática se vê a desigualdade.

Por isso, o manuscrito precisou ser buscado na Coreia do Norte pelo conhecido de um ativista contactado por uma parente de Bandi que escapou para a Coreia do Sul. Em uma situação improvável, o texto foi contrabandeado para fora do país e publicado – e desde então traduzido para diversas línguas.

Os contos têm um propósito em comum: mostrar situações de injustiça. Um dos mais marcantes é o A vida de um corcel veloz, que narra o momento em que um apoiador do regime se depara com o fracasso total do sistema. Veterano da guerra, trabalhou sua vida inteira acreditando que, no final, colheria os frutos de todo seu trabalho vivendo em uma sociedade justa e igualitária. Em determinado momento, porém, se vê sem comida ou aquecimento para sua casa durante o inverno, apesar de ter várias medalhas em homenagem aos serviços prestados durante todos os anos. Apesar de todos os sacrifícios pessoais, o país não supria nem suas necessidades básicas.

Já o conto Relato de uma deserção, que abre o livro, explora um sistema de condenação perpétua dos cidadãos. O texto apresenta uma criança que sofre bullying e não pode participar de determinados círculos da sua escola porque seu avô teria sido condenado por traição (ainda que, no relato familiar, o "crime" teria sido um erro por ignorância na hora de lidar com estufas na plantação de arroz, o que teria condenado uma safra). Todos os membros da família têm, a partir de então, a ficha marcada e a vida dificultada consideravelmente – tanto que optam por arcar com os riscos de tentar sair do país.

Entre histórias de perseguição política, falta de liberdade individual e descaso com as vidas humanas, Bandi constrói o relato de uma sociedade dura, autoritária e incoerente. Um filho não pode sair do trabalho e da cidade para visitar a mãe agonizante; um casal é proibido de trocar as cortinas de sua casa – tanto porque elas destoariam do padrão como porque aquilo foi considerado uma tentativa de comunicação entre espiões. Bandi retrata uma população sofrida, tanto fisicamente quanto psicologicamente, que vê pouca saída para seu estado atual.

Na voz de um dos personagens: "Por que você foi iludido por uma máscara, uma fachada, como eu. Enganado por aqueles slogans – 'Igualdade'; 'Democracia'; 'O Povo Escreve sua História' – que pareciam bonitos na superfície, mas que traziam a faca da ditadura escondida".

Bandi

Pouco se sabe sobre o autor, cuja identidade é mantida em sigilo para sua própria proteção. No posfácio do livro, o jornalista Kim Seong-dong conta que a publicação de uma obra como essa, que critica e satiriza o governo norte-coreano, é um caso muito particular e "nada parecido aconteceu nos sessenta e oito anos desde que a península foi dividida". Há, sim, uma literatura considerável produzida por desertores – mas esse é o caso de um livro publicado por alguém que ainda vive no país.

Os contos foram escritos entre o final da década de 1980 e meados da década de 90, quando más decisões econômicas e políticas, intensificadas por grandes enchentes, levaram a Coreia do Norte a uma situação crítica e de grande miséria para a maior parte da população. "Por isso começou a registrar as vidas levadas a uma morte precoce pela fome e pelas contradições sociais, e daqueles que foram forçados a abandonar suas casas e vagar pelo interior em busca de comida", relata Seong-dong.

Bandi significa vagalume.

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