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A Amazon enfrenta uma de suas maiores batalhas legais nos Estados Unidos. No dia 26 de setembro, a Comissão Federal de Comércio (FTC) e 17 estados abriram um processo contra práticas monopolistas da gigante da tecnologia que, segundo alegações, “assumiu o controle de grande parte da economia do varejo online”.
A empresa é acusada de manter os preços artificialmente elevados para os consumidores, de prender os vendedores à plataforma, forçando-os a utilizar sua estrutura logística de armazenamento e entregas, além de prejudicar empresas rivais através de suas regras e de sua influência no mercado.
“Este caso é inteiramente pró-negócios”, disse Lina Khan, a presidente da FTC, acrescentando que, se o processo tiver sucesso, “restaurará inteiramente a promessa de livre concorrência.” O processo era aguardado desde que Khan, uma crítica de longa data da Amazon, assumiu a presidência da Comissão em 2021.
Os estados que aderiram ao processo são, em sua maioria, controlados pelos democratas, dentre os quais se incluem Nova York, Connecticut, Michigan e Massachusetts. Oklahoma e New Hampshire, cujos procuradores-gerais são republicanos, também estão listados entre os demandantes.
Gigante em diversos segmentos
Atualmente, a empresa, que começou como uma livraria online, se tornou uma gigante global com valor de mercado de US$ 1,1 trilhão [R$ 5 trilhões, na cotação atual], segundo a plataforma Investing.com. Ela responde por cerca de 82% do mercado de e-books nos EUA.
Em 2022, o faturamento anual da Amazon chegou a US$ 538 bilhões de dólares [R$ 2,717 trilhões], mais do que qualquer outra empresa privada no mundo, à exceção do Walmart, de acordo com dados da S&P Global Market Intelligence.
Ainda é responsável por 38% de todo o varejo online nos EUA e, não por acaso, tem a terceira maior receita com anúncios no país. No Brasil, ocupa a segunda colocação entre as plataformas de e-commerce mais visitadas, com mais de 1 bilhão de acessos, atrás apenas do Mercado Livre, conforme pesquisa do site Conversion.
Mas as vendas a varejo e a publicidade estão longe de ser o único negócio da marca. A AWS, sua empresa de computação em nuvem, é a mais utilizada em todo o mundo – inclusive é uma das participantes dos testes para a implementação do DREX, o Real Digital.
A Amazon ainda é responsável pela fabricação da Alexa, o assistente de voz e dispositivo de streaming mais vendido no mundo. O Prime, seu programa de assinatura que garante descontos nas compras e acesso à plataforma de streaming de filmes e séries, conta com mais de 200 milhões de assinantes em todo o mundo.
Os negócios ainda incluem a estocagem, distribuição e entrega de produtos, feitos a partir de seus armazéns espalhados em localidades-chave do globo, por meio de uma frota de milhares de veículos próprios e, até mesmo, de drones.
E não é só. No dia 9 de outubro, a empresa lançou seus primeiros satélites, em parceria com a United Launch Alliance, a Arianespace e a Blue Origin, também de propriedade do fundador da empresa, Jeff Bezos.
A ideia é investir US$ 10 bilhões [R$ 50 bilhões] para formar uma rede de 3.236 satélites em baixa órbita para fornecimento de internet de banda larga em todo o globo, e competir com os satélites da Starlink, uma iniciativa da SpaceX, de Elon Musk – com quem Bezos tem uma rixa pessoal.
As acusações e argumentos da FTC
Tamanho alcance e, por que não, acesso a dados de clientes e de empresas dão à Amazon vantagem nas negociações com parceiros, incluindo vendedores terceirizados. E essa é uma das principais questões abordadas pelo processo.
Segundo a Comissão, a Amazon utilizaria não só de seus dados, mas de sua infraestrutura para prender vendedores que dependem da capacidade que a empresa tem de chegar a uma gigantesca base de clientes diariamente.
As alegações são de que as empresas que vendem por meio da Amazon precisam se adequar a uma série cada vez maior de taxas e mudanças de regras para permanecer utilizando os serviços da Big Tech.
De forma discreta, os comerciantes que também anunciam em outras plataformas com descontos ou valores inferiores aos praticados na Amazon são punidos. Seus anúncios dentro da própria plataforma podem se tornar menos efetivos, por exemplo, ou o algoritmo pode oferecer produtos similares mais baratos quando os clientes buscarem os da marca em questão.
De acordo com a FTC, por meio dessa prática, a Amazon prejudica os consumidores com preços mais elevados, pois pune as empresas que participam de sua plataforma, caso ofereçam descontos mais baixos em qualquer outro lugar.
“Essa vinculação restringe ilegalmente as escolhas dos vendedores” e “reduz a seleção de produtos disponíveis para os rivais da Amazon”, afirma a FTC. Khan ainda explicou que o grande perigo é que seus clientes sejam conquistados por outra empresa e, portanto, “suas táticas têm sido decididas para privar os rivais dessa escala”.
O governo ainda afirma que a empresa obriga os vendedores a utilizarem seus sistemas de logística para ter seus produtos incluídos no Amazon Prime, o programa de assinatura cujas vantagens incluem prazos de entrega mais rápidos.
Outro ponto questionado é se a empresa utilizou práticas enganosas para inscrever assinantes no Prime e se isso impede ou dificulta a capacidade dos consumidores de cancelarem suas assinaturas.
Foco no cliente ou no anunciante?
A FTC também aponta o número crescente de anúncios na plataforma para explicar por que a Amazon tem prestado um serviço pior aos consumidores. Segundo o processo, as páginas de resultados de compras da empresa estão “cheias de anúncios”, tornando mais difícil encontrar os produtos desejados.
Uma engenheira de software que trabalhou na Amazon e que preferiu não se identificar por questões profissionais, confirmou que isso realmente acontece.
“Tanto externa quanto internamente na Amazon, eu vi reclamações de clientes sobre a dificuldade de encontrar produtos relevantes, incluindo nas entrevistas que a empresa realiza com clientes para encontrar possíveis melhorias na plataforma”, disse.
Além disso, os anúncios também criam um sistema pay-to-play [pague para anunciar], no qual os vendedores precisam pagar para ter sua presença garantida nos resultados de busca por meio da compra de anúncios de publicidade.
A esse respeito, a ex-funcionária afirma que “nas páginas de resultados de busca e em outras páginas de listagem de produtos realmente tem uma priorização de produtos sponsored [patrocinados por meio de anúncios]. Os vendedores precisam pagar para ter esses espaços”.
“A Amazon diz que tem como principal ‘princípio de liderança’ a obsessão pelo cliente, mas o que realmente é usado como fator decisivo para realizar a maioria das mudanças é o que gera mais lucro”, disse.
Ela conta que a empresa utiliza uma ferramenta interna para realizar testes que avaliam o aumento ou redução de vendas decorrentes de cada potencial alteração em cada região do mundo.
A partir dos testes, “a empresa calcula os possíveis ganhos ou perdas que podem ser geradas por essas mudanças, o que é geralmente usado para decidir o que realmente vai ser implementado”, explicou.
Argumentos e teses de Khan ou da FTC?
Crítica das práticas monopolistas da Amazon desde a faculdade, Khan disse que o atual processo da FTC contra a Big Tech inova na aplicação da lei antitruste ao abordar os aspectos únicos do comércio online, em que plataformas como a Amazon ficam entre compradores e vendedores, ganhando dinheiro de ambos os lados.
“Esta alegação realmente reflete a vanguarda e o melhor pensamento sobre como a concorrência ocorre nos mercados digitais e, da mesma forma, as táticas que a Amazon usou para sufocar rivais, privá-los de oxigênio e realmente deixar um cenário atrofiado em seu rastro”, disse Khan em um comunicado.
No entanto, essa não é a teoria mais comumente utilizada em processos antitruste, que se baseiam, em sua maioria, nos danos causados aos consumidores através da manipulação de preços mais elevados, redução da produção ou da qualidade dos produtos.
Alguns dos críticos de Khan, incluindo antigos presidentes do FTC, dizem que ela faz uso de novas teorias que já levaram a Comissão a perder causas anteriormente. Ela também é vista por alguns setores como antiempresarial.
O histórico recente da Comissão não é positivo: a FTC ganhou alguns casos nas décadas de 60 e 70 do século passado, mas suas teses atuais não têm se provado efetivas. Em suas últimas incursões antitruste, Khan encontrou dificuldade para convencer os tribunais, perdendo processos movidos contra a Microsoft e a Meta.
A resposta da Amazon
David Zapolsky, conselheiro geral da Amazon, afirmou que a empresa já colaborou de forma cooperativa com a FTC durante uma investigação abrangente do seu negócio.
“Esperávamos que a agência reconhecesse que as inovações e o foco centrado no cliente da Amazon beneficiaram os consumidores americanos através de preços baixos e do aumento da concorrência na já competitiva indústria varejista”, afirmou ele em um comunicado publicado no blog da empresa.
Ao analisar que a FTC parece se afastar dessa abordagem, Zapolsky alega que, caso o processo seja bem-sucedido, ele forçaria a Amazon a se “envolver em práticas que realmente prejudicam os consumidores e as muitas empresas que vendem em nossa loja – como ter que apresentar preços mais altos, oferecer remessas Prime mais lentas ou menos confiáveis”.
O comunicado alega que, ao afirmar que as práticas da Amazon são anticompetitivas, a FTC demonstra desconhecer as práticas do varejo.
“A FTC entendeu tudo ao contrário e, se for bem-sucedida neste processo, o resultado seria anticompetitivo e anticonsumidor, porque teríamos que parar muitas das coisas que fazemos para oferecer e destacar preços baixos – um resultado perverso que seria diretamente contrário aos objetivos da lei antitruste”, escreve.
Ao contar a trajetória da empresa de vendedora de livros à plataforma de varejo de diversos produtos, Zapolsky alega que os vendedores parceiros “passaram de 0% para mais de 60% das vendas na Amazon”.
Outro ponto destacado pelo executivo foi o sistema Fulfillment by Amazon (FBA), no qual a empresa cuida do "armazenamento, embalagem, remessa, devoluções e atendimento de produtos para o cliente, permitindo que os vendedores se concentrem no crescimento de seus negócios”, afirma.
Após defender algumas de suas outras ferramentas, a empresa afirma que “a ação movida pela FTC hoje está errada nos fatos e na lei”, e espera “levar esse caso ao tribunal.” Até o momento ainda não há data prevista para o julgamento.