No mesmo dia que o presidente do parlamento venezuelano, Julio Borges, rasgava frente às câmeras as decisões do Tribunal Supremo que deixaram ao poder legislativo sem funções; no mesmo dia que o Henrique Capriles Radonski, governador do estado Miranda e líder da oposição denunciava um “golpe de Estado” semelhante ao Fujimorazo peruano, e Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), confirmava a manobra escusa; nesse mesmo dia, o 30 de março de 2017, tornou-se viral nas redes sociais a foto de um homem morto. Estava em uma rua movimentada de Caracas, deitado sobre o lado do motorista de um Ford Fiesta cinza, montando uma moto ainda vertical pelo efeito da física. Da sua cabeça, coberta com um capacete integral, caía um jorro de sangue que pingava a porta do carro e formava um poço no asfalto.
Morre manifestante ferido a bala nos protestos em Caracas
Leia a matéria completa“O que aconteceu, parça? Você adormeceu na moto ou o quê ...?” Comentou alguém à imagem em Twitter do ladrão com jeans e hoodie, que encontrou a morte naquela quinta-feira às 7:30 am. O motorista do Ford Fiesta que ele abordou num assalto rotineiro de semáforo acabou por ser um funcionário armado da Direção-geral de Contra Inteligência Militar preparado para se defender. Outros comentários celebraram o fato: “Um já foi,” “Eu amo esta notícia,” “Está bom, esse NÃO rouba mais do que nunca.”
Eu ouvi sobre o incidente na recepção de uma clínica quando fui pegar uma receita. As enfermeiras estavam agrupadas em torno de um monitor vendo a foto. Morte e outras formas de violência não são incomuns no país com quatro das dez cidades mais violentas do mundo. Aqui você convive com ela sem maior espanto, mas também como um risco da vida cotidiana.
Me deparei com uma cena comum em cidades de todo o país: um homem de cerca de 50 anos, com roupas limpas e mochila, revirava dois sacos grandes de lixo colocados fora de um edifício de escritórios
Saindo da clínica, me deparei com uma cena comum em cidades de todo o país: um homem de cerca de 50 anos, com roupas limpas e mochila, revirava dois sacos grandes de lixo colocados fora de um edifício de escritórios. Ele revistou seu conteúdo sem necessidade de abrir. Eles tinham papéis, mas como na Venezuela os resíduos não são separados nem reciclados, você sempre pode encontrar um pouco de comida não tão decomposta, ou algo para usar, vender ou trocar.
Em qualquer caso, lixeiras e caminhões de lixo nas proximidades dos restaurantes, mercados, e “áreas boas” são a aposta mais segura para muitos (cerca de 2,4 milhões, de acordo com estimativas de novembro de 2016) que passaram da vergonha à resignação de ter que aliviar sua fome com restos. Muitos deles têm empregos e abrigo, mas os seus salários não dão para comer.
Simultaneamente, um outro homem morto tornou-se viral: 79 anos, ataque cardíaco fulminante enquanto esperava em uma fila para comprar comida a preços regulados fora de um supermercado em Caracas
Mais tarde, em três farmácias diferentes me informavam que os medicamentos listados na minha receita estavam fora do estoque em todo o país. Simultaneamente, um outro homem morto tornou-se viral: 79 anos, ataque cardíaco fulminante enquanto esperava em uma fila para comprar comida a preços regulados fora de um supermercado em Caracas. Por volta de 16 horas, caiu no chão onde ficou coberto com um plástico preto na entrada do estabelecimento. Dezenas de pessoas que também estavam na fila, permaneceram lá, esperando para entrar. Alguns deles gravaram um vídeo com uma voz de reprovação em segundo plano: “Depois de quatro horas de filas, olha como ele ficou, no chão. Obrigado a você, Presidente Maduro. “
Golpe de Estado, morte, fome, falta de medicamentos, fome de novo, filas, e morte novamente. Tudo em um dia, todos os dias.
A preservação da vida e a satisfação das necessidades básicas preocupam e ocupam aos venezuelanos, com ou sem golpe, com ou sem democracia, com ou sem respeito pela Constituição. E sim, há um link direto, causal, entre a crise política e o difícil cotidiano em todo o país. Sim, há um descontentamento generalizado com o governo. A cidadania expulsou ao chavismo do parlamento em 2015, mas uma fronteira persiste, por vezes clara, às vezes difusa entre os problemas.
Alguns protestam na rua, apesar dos riscos e a repressão, e eles fazem isso por todas as razões. “Medo causa mais fome que a repressão”, gritava uma manifestante na autopista Francisco Fajardo em Caracas, em 4 de abril. Outros se adaptam e sobrevivem como podem, mas não necessariamente desconectados do ambiente político.
“Medo causa mais fome que a repressão”, gritava uma manifestante na autopista Francisco Fajardo
Antonieta*, uma senhora hipertensa e diabética de 60 anos, vende bolos em uma praça de Caracas. Ele tem nove filhos, mas apenas uma de 19 anos depende dela. Todas as semanas ela faz filas para encontrar insumos, e quando não consegue o que ela precisa, compra mais caro no mercado negro. Quando não encontra o medicamento para a hipertensão, a controla com coentro. Até agora, a alternativa “não deu errado.” Em um ano ela perdeu 30 quilos, a crise a obrigou a comer menos; hoje sobrevive com uma única “boa comida” ao dia. Concorda com os protestos, mas não com o vandalismo; acredita que precisamos de uma mudança de governo, mas isso só virá quando os militares a imponham pela força.
Balas, prisão ou morte: a realidade das ruas de Caracas contada por uma venezuelana
Leia a matéria completaEnrique, em seus 50 anos, é garçom em um restaurante de arepas (comida típica venezuelana). Não protesta, mas ele concorda com que outros o façam. “Nenhum salário aguenta isto”, diz ele. Alguns dos recentes protestos ocorreram perto de sua areperia, mas antes de fechar a porta para impedir a entrada de gás lacrimogêneo, ele deu abrigo a dezenas de manifestantes que fugiam das forças de segurança. Considera que a responsabilidade pela crise é de todos os venezuelanos.
Antonieta perdeu 30 quilos em um ano, a crise a obrigou a comer menos; hoje sobrevive com uma única “boa comida” ao dia
Nisto coincide com David de 28 anos, um vigia privado de áreas residenciais. É colombiano de nascimento, mas mora na Venezuela desde sua infância. Toda a sua família mudou-se para a Colômbia pela crise, mas ele é casado com uma venezuelana e está prestes a ser pai. “A situação não é tão ruim”, mas come menos do que antes.
Apesar de ter amigos em supermercados que o ajudam a conseguir comida, ele fica em filas nos seus dias de folga. Ele nunca votou. Admirava Chávez, mas acredita que o líder da oposição Leopoldo López não merece estar na cadeia. Ele esteve no exército por um ano, mas teve que parar por causa de problemas de saúde. Me ofereceu, sem que eu perguntasse, conselhos táticos para organizar o protesto e enfrentar as forças de segurança, “vocês devem se colocar como em um tabuleiro de xadrez, e fazer revezamento.”
Em um grande evento na semana passada em San Felix, estado de Bolívar, uma multidão recebeu Maduro com pedras, ovos e tomates (apesar de escassez e inflação)
O protesto “não é a única forma de desobediência civil”, segundo Manuel Avendaño, conselheiro político para a Assembleia Nacional e membro do partido Voluntad Popular. É apenas parte de um processo de mudança que começou com a eleição da maioria parlamentar oposição, que chegou a um “ponto de não retorno”, e que está gerando uma mudança de consciência em todos os níveis.
Certamente, reações diversas começam a ser vistas. Em um grande evento na semana passada em San Felix, estado de Bolívar, uma multidão recebeu Maduro com pedras, ovos e tomates (apesar de escassez e inflação). Vamos ter que continuar a reagir à crise, com a esperança de que a brecha entre reação e mudança diminua.
*Os nomes de algumas pessoas nesta matéria foram mudados por segurança
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