Muita coisa pode mudar em 30 anos.
Quando se sentou para anunciar à nação o lançamento do Plano Real, em 1994, o presidente Itamar Franco sabia que precisava marcar o momento com um discurso à altura.
Antes de falar em inflação, cédulas e taxas de conversão, ele discorreu sobre a força da vontade humana.
O então presidente leu:
“Os homens são construídos pela vontade, e essa mesma vontade, reunida pela esperança, levanta as nações e as projeta no tempo, em sua necessária aspiração à eternidade.
A vontade, mais do que o vento e mais do que as volúveis correntes marinhas, trouxe as caravelas a esta terra para, em seguida, abrir o caminho nos sertões, empurrar a linha de Tordesilhas até a muralha ocidental da Cordilheira e edificar a mais importante das sociedades ao sul do Equador.”
É provável que Itamar Franco não tenha escrito o discurso. Mas o tom do pronunciamento revela uma preocupação com a qualidade da retórica.
Menos de três décadas depois, no discurso que fez diante do Congresso no aniversário de 200 anos da Independência, Jair Bolsonaro conseguiu incluir a palavra “imbrochável”, em referência a si próprio.
A tradição retórica de Ruy Barbosa, Carlos Lacerda, Jânio Quadros e Leonel Brizola desapareceu gradativamente. Uma ou duas gerações atrás, bons e maus políticos, à esquerda e à direita, se empenharam em talhar a mensagem certa, com as palavras adequadas e referências a grandes figuras da história.
Os tempos agora são outros. As referências históricas desapareceram. O vocabulário se tornou mais simples. Os discursos perderam largura e profundidade. E é possível medir isso.
Discursos de posse cada vez mais pobres
Existem várias formas de se medir a qualidade de um discurso. Uma dela é a riqueza de vocabulário.
Levando-se em conta apenas o primeiro mandato, os discursos de posse tem se tornado mais simples a cada novo presidente. Fernando Collor, em 1990, usou 1979 palavras únicas (cada palavra é contada apenas uma vez, mesmo que seja repetida ao longo do discurso). A lista inclui termos como "fecundos", "cingir", "autogoverno", "voluntarista", "mandonismo", "absenteísmo", "encetar".
Itamar Franco, que assumiu depois do impeachment de Collor, não fez o tradicional discurso ao Congresso.
Quando chegou sua vez, Fernando Henrique Cardoso usou 1.818 palavras únicas. Depois, Lula (1432), Dilma Rousseff (1275), Michel Temer (1023) e Jair Bolsonaro (498) continuaram a tendência de simplificação do vocabulário, com a ressalva de que Temer falou de improviso ao tomar posse depois do impeachment de Dilma Rousseff.
Os discursos se tornaram mais simples e diretos, o que pode ser interpretado como uma tentativa de se comunicar de forma mais eficiente. Mas também é provável que, mesmo se quisessem, muitos políticos atuais já não conseguiriam se expressar em termos mais rebuscados.
Referências históricas sumiram
Outra forma de avaliar a riqueza de um discurso é identificar as referências a eventos ou personalidades históricas, o que indica uma preocupação em ir além do prosaico.
Ao tomar posse, em 2023, Lula não fez qualquer referência a algo que tenha acontecido antes de 1988. Não mencionou grandes obras literárias ou as Escrituras — que costumavam outra fonte comum de referências para políticos crentes e descrentes. Não falou em Cícero, Camões, Thomas Jefferson, José Bonifácio, Madre Teresa de Calcutá. E nem mesmo de Pedro Álvares Cabral, Padre José de Anchieta, Dom Pedro II ou Juscelino Kubitschek.
Não foi exceção. A última vez que um presidente eleito citou alguém ao tomar posse foi em 2011, com Dilma Rousseff. Ela fez duas referências a Guimarães Rosa. Curiosamente, talvez com a intenção de não soar pedante, ela não mencionou o nome do escritor — falou apenas em “um poeta da minha terra”. Ao assumir o segundo mandato, em 2015, ela incluiu apenas uma citação anônima: “O impossível se faz já; só os milagres ficam para depois".
Bolsonaro Não citou nada nem ninguém, exceto o lema da bandeira nacional.
Em vez de inspirar, os discursos dos políticos brasileiros se transformaram em um relatório de empresas, com planos e realizações.
Mandato de Lula é outro exemplo
Os grandes discursos da história têm algo em comum: eles transcendem as circunstâncias imediatas e apelam à consciência humana.
Em um dos discursos mais famosos de todos os tempos, Abraham Lincoln precisou de poucos minutos para emocionar sua audiência. Dedicando um cemitério construído para os mortos da Guerra Civil, ele olhou para o passado (a fundação dos Estados Unidos) e o futuro. Falou de temas perenes e universais como a liberdade e a democracia. E encerrou com apelo: "Que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da Terra."
Algo similar pode ser dito do discurso em que Martin Luther King declarou "Eu tenho um sonho", em 1963. A pauta era clara: igualdade racial. Mas para convencer e inspirar, Martin Luther King começou citando os fundadores dos Estados Unidos, falou da Declaração de Independência, da Constituição, citou hinos religiosos e a própria Bíblia.
O atual presidente do Brasil tem um estilo diferente.
Desde que tomou posse, em 2023, Lula jamais citou José Bonifácio, Ruy Barbosa ou o Marechal Deodoro da Fonseca em seus discursos. Ele fez uma menção ao ex-jogador Pelé uma vez — para se comparar a ele. “Eu vou me desafiar, eu quero fazer 1.000 institutos [federais], que nem o Pelé fez 1.000 gols”, disse ele em abril.
"Presentismo" ajuda a explicar mudança
Estudioso da retórica clássica e medieval, o professor Ricardo da Costa, da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) diz que o problema tem duas raízes: uma vem da forma como a História tem sido ensinada; outra, com a visão contemporânea da gramática.
Para Costa, parte do problema está “na defesa do ‘presentismo’ nos cursos de História e o preconceito declarado pela história universal antes de 1789”. Segundo o professor, cada vez menos figuras públicas são capazes de entender fatos elementares da história brasileira. Ele acrescenta que o empobrecimento da língua também se deve ao sucesso da chamada visão construtivista em sua crítica contra o que eles chamam de ensino “formal” da Língua Portuguesa e a favor de um domínio das expressões mais populares.
Embora lamente a deterioração da retórica no Brasil, Ricardo da Costa lembra que o cuidado com as palavras não é exclusividade de bons políticos.
“Políticos desonestos e com desenvoltura usam a retórica para seus fins desonestos. Ela pode, sim, ser utilizada dessa forma. Mas todo o conhecimento também pode. Tudo depende da moral de quem se vale de sua formação", afirma.
É difícil se lembrar de algum discurso memorável feito pelos políticos da geração atual.
O ex-presidente José Sarney, por outro lado, não perdia uma oportunidade de dar tons grandiosos a seus discursos. Ao longo do mandato, ele demonstrou uma preocupação com a retórica — que, para alguns, chegou ao exagero.
Em 3 de maio de 1985, Sarney visitou a Expozebu, uma exposição de criadores de gado em Uberaba (MG).
Ele iniciou o seu discurso assim: “Estou em Minas, renascem as invocações de sua glória. A liberdade e a saudade. A liberdade, que é eterna, cresceu e frutificou nestas terras, e a saudade, com os olhos secos dos cantares da ausência que não se acabam, vive agora no silêncio dos sinos que, não dobrando, dobram eternamente pela memória de Tancredo Neves”.
Em seguida, emendou uma citação:
“Estou no Triângulo, onde as bacias do Rio Grande e do Paranaíba se juntam, e onde, já no passado e no dizer de Afonso Arinos, ‘o gado alçado se criava às soltas nas grotas e socavões, e fímbria das águas móveis’.”
Não está claro quantos criadores de gado de Uberaba entenderam a referência.
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