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A possibilidade de que a Suprema Corte dos EUA revogue a sentença de 1973 que liberou o aborto parece próxima, a julgar pelo rascunho, vazado, que o site americano Politico publicou. Isto causou alarme e uma forte reação entre os abortistas, que tomariam a mudança na lei como um retrocesso histórico. Mais sobriamente, se o temor deles se concretizar, a regulação do aborto ficaria mais ou menos como quer a maioria do povo e chegaria ao fim uma anomalia na democracia.
Repetiu-se que os norte-americanos estão contra, com a maioria de 70%, a revogação da sentença Roe v. Wade de 1973. Mas não dizem o mesmo quando perguntados em detalhes. Por exemplo: 69% querem que se mantenha a sentença (pesquisa da CNN de janeiro passado), mas uma proporção similar, 65%, está a favor de que o aborto seja ilegal no segundo trimestre da gravidez, coisa que Roe não permite (pesquisa da AP de junho de 2021). O mesmo paradoxo se deu na última sondagem da Fox News: 63% contra a revogação de Roe e 54% a favor de algo incompatível com Roe: proibir o aborto desde a 16ª semana.
Uma sentença extremista
Deduz-se que bastante gente não sabe como é extremista a sentença Roe. Em general, as leis de aborto europeias permitem-no, sem necessidade de alegar justificativa, dentro de um prazo – cerca de 12 semanas de gravidez –, e a qualquer momento se forem dadas determinadas causas (perigo para a saúde da mãe, malformações do feto…).
Roe, por outro lado, definiu o aborto como um direito protegido implicitamente na Constituição, e só admite que se proíba no terceiro trimestre de gestação (depois das 24 semanas), porque até então “não há vida humana com sentido”. No primeiro trimestre não pode ser proibido nem limitado de modo algum, e no segundo só se podem regular as condições para praticá-lo, a fim de proteger a saúde da mãe, pois a essa altura da gestação o risco é maior.
Roe foi confirmada, mas reformada, na posterior sentença Casey (1992), que também cairá se a Suprema Corte revogar a primeira. Casey fez duas alterações importantes. Primeiro, substituiu o prazo de 24 semanas pelo começo da “viabilidade” do feto fora do útero, que pode dar-se um poco antes, às 22 semanas. Segundo, relaxou as condições para regular o aborto antes do terceiro trimestre: já não exige a “necessidade estrita” que corresponde a um direito fundamental; agora se requer que qualquer limitação não acarrete um “peso desproporcional” para a mulher que deseja abortar.
Isto é excessivo para a maioria dos norte-americanos. Segundo a pesquisa da Gallup em 2018, só 13% estão a favor de que o aborto seja legal no terceiro trimestre, e não mais que 28% requerem que seja legal no segundo; 60% só o admitem no primeiro. Ou seja, a maioria é mais restritiva que a lei do Mississipi que a Suprema Corte examina atualmente (caso Dobbs), pois fixa o limite em 15 semanas, dentro do segundo trimestre. O Mississipi é, inclusive, mais permissivo do que a França, que acaba de ampliar de 12 para 14 semanas o prazo para abortar livremente.
Volta à normalidade
Caso se anule Roe, a regulação do aborto voltará a estar nas mãos dos estados. Com a atual partilha do poder entre os estados, treze vão proibi-lo em qualquer momento da gestação, com exceções para o risco à vida ou à saúde da mãe, violação ou incesto. Outros 15 reduziriam o prazo para abortar: geralmente entre 15 e 20 semanas, e alguns às seis. Os 22 restantes, que agora permitem o aborto quando o feto é viável, ficariam na mesma, salvo uns poucos que ampliarão o aborto legal ou o incluirão em suas constituições. Em suma, a maior parte do país terá leis de aborto tal como as que prefere a maioria dos cidadãos. Mais importante ainda, todos os estados poderão ter as leis que a maioria dos seus eleitores apoia.
Portanto, a revogação de Roe não seria uma decisão tão drástica, tampouco por não respeitar um precedente jurídico, pois a Suprema Corte dos EUA anulou total ou parcialmente mais de trezentas de suas próprias sentenças. E do ponto de vista internacional, os EUA simplesmente voltarão à normalidade: quantos países que permitem o aborto o consagraram na Constituição?
Drástica mesmo foi Roe v. Wade, que achou um direito constitucional duvidoso e deu por resolvida uma questão discutida, impedindo que o debate civil se traduzisse em leis através dos órgãos de representação política. Sem Roe, as disputas em torno do aborto poderão se resolver democraticamente, em uma direção ou outra. Durante quase cinquenta anos, a legislação sobre o aborto nos EUA foi praticamente um quadro estático; caso se anule Roe, o filme poderá começar a rodar.
Os argumentos do texto vazado
A Suprema Corte confirmou que o texto publicado pela revista Politico é autêntico. É a proposta de sentença elaborada em fevereiro passado pelo magistrado Samuel Alito, que propõe revogar as sentenças Roe v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992).
Ao mesmo tempo, a Corte advertiu que o rascunho vazado não é a versão final e que não se pode deduzir a partir dele o que ditará a sentença, prevista para final de junho ou início de julho deste ano. Com efeito, ainda que a maioria dos magistrados – seis de nove – seja considerada conservadora, não se pode prever com segurança como votaria em cada caso. Dá-se por certo que Alito e Clarence Thomas se pronunciarão a favor de revogar Roe, e muito provavelmente vão se somar a eles Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett; mas os casos do presidente John Roberts e de Neil Gorsuch não são tão claros.
Roberts lamentou o vazamento, que chamou de “grave deslealdade”, e ordenou uma investigação interna para averiguar quem o fez. Abundam as especulações sobre o interesse que o moveu. Segundo a postura de cada comentarista, se atribui a alguém conservador, que quer preparar o terreno para a revogação, ou a alguém progressista, que pretende suscitar reações contrárias para intimidar os membros da Corte. De todo modo, essa violação do sigilo é inédita na Suprema Corte.
Um erro de princípio
No rascunho vazado, Alito argumenta a favor da revogação de Roe começando por negar que exista um direito constitucional a abortar, derivado – segundo aquela sentença – do direito à privacidade, que tampouco aparece na Constituição, mas estaria implícito no direito à liberdade individual reconhecido na 14ª emenda (“Nenhum estado poderá privar uma pessoa da vida, da liberdade ou da propriedade sem o devido processo legal”). Aponta Alito: “A Constituição não faz referência nenhuma ao aborto, e nenhum preceito constitucional protege implicitamente tal direito”. Roe padece de um grave erro de princípio, acrescenta, e “seu raciocínio era excepcionalmente fraco”.
Antes de 1973, “cerca de um terço dos estados havia liberalizado suas leis, mas Roe cortou abruptamente esse processo: impôs o mesmo regime altamente restritivo à nação inteira, e de fato aboliu as leis de aborto de todos os estados”. Foi, segundo Alito, um “exercício de poder judicial bruto” e deu origem a “uma controvérsia nacional que envenenou nossa cultura política durante meio século”.
Ao impor uma solução nacional, “a Corte fez um curto-circuito no processo democrático, vedando-o ao grande número de norte-americanos que divergiam de Roe”. Assim, em alguns estados, diz Alito, os eleitores podem querer ampliar o direito ao aborto; noutros, podem querer restringi-lo. “A ideia de liberdade ordenada, historicamente arraigada em nossa nação, não impede que os representantes eleitos do povo decidam como regular o aborto”.
Por isso, “é hora de acatar a Constituição e devolver o assunto do aborto aos representantes eleitos pelo povo”.
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