Caneta azul, azul caneta/ Caneta azul/ Tá marcada c’a minha letra. É com essa estrofe simples, de uma simplicidade insuportável, de tão grudenta, que o maranhense Manoel Gomes viu sua vida transformada. Lavrador e segurança noturno, apesar do porte franzino, Gomes virou celebridade no combalido meio musical brasileiro, para o desgosto de Milton Nascimento.
A fama repentina se reflete milhões de visualizações no YouTube, 70 mil novos seguidores no Instagram, aparição em shows, tapinha nas costas do prefeito de Balsas, no Maranhão, e, claro, dezenas ou até centenas de memes compartilhados por WhatsApp, o que só infla ainda mais a fama tanto do “artista” e de sua obra.
Percebendo o alcance de sua criação e o potencial financeiro de sua obra-prima, recentemente Manoel Gomes esteve num cartório, ao lado de um advogado, para registrar a composição – uma dentre as 200 que ele já teria escrito.
Sucesso disruptivo
O fenômeno da música Caneta Azul é, para usar o termo da moda, disruptivo. Isto é, ele provoca um incômodo bastante instintivo por não obedecer a certas regras que vemos como naturais, mesmo em se tratando do mundo artístico, onde o acaso costuma revelar talentos os mais improváveis. À composição faltam, no mínimo, uma métrica e uma melodia agradável. Ao compositor/intérprete falta, com todo o respeito, voz e aquela postura que tipicamente atribuímos a um artista, mesmo que ele seja um artista popularíssimo de funk ou sertanejo.
É isso o que causa calafrio e que, ao mesmo tempo, fascina no caso de Caneta Azul. É como se Manoel Gomes tivesse pulado todas as etapas que conhecemos da produção artística, menos uma: a da inspiração. Ali tudo é mais (ou seria menos?) do que amador; é cru e infantil a ponto de parecer uma canção ironicamente malfeita – tão ao gosto de uma geração que come, se veste e até vota ironicamente.
Sua disseminação orgânica pelas redes sociais, sem uma única gota de premeditação ou estratégia, também é disruptiva e simbólica de um tempo que parece sentir repulsa por intermediários de quaisquer tipos. Caneta Azul, por sua falta de qualidade e sucesso improbabilíssimo, carrega em si também boa dose do fatalismo que marca nossa época. Para que o trabalho, o esforço, a persistência e todo aquele papo-furado de coach se, no final das contas, o Acaso é quem dá as cartas?
A pergunta pode conter, e contém, uma boa dose de inveja e ressentimento pela fortuna alheia. Mas é justamente essa fortuna dissociada de sua irmã siamesa, a virtude, o que causa certo desconforto, certo sorriso amarelo, certo calafrio em que se depara pela primeira vez com a voz tímica, trêmula, quase um choramingo de Manoel Gomes a se lamuriar pela prosaica caneta perdida.
A maldição de Macunaíma
Para quem gosta de pensar nesses fenômenos, o sucesso de Caneta Azul e a consequente fortuna que se abateu sobre seu criador evocam a figura mitológica um tanto quanto esquecida, mas inquestionavelmente presente, de Macunaíma, o “herói sem caráter” de Mário de Andrade que seria a personificação da essência do brasileiro.
Há algo de profundamente macunaímico no fenômeno Caneta Azul como um todo, a começar pela música em si, um não-drama sobre a perda de uma simples caneta azul. A partir daí, tudo é ingenuidade, indolência, sorte e submissão à força de Tupã, com uma pitada daquele humor sem propósito que Grande Otelo soube retratar tão bem na adaptação de Macunaíma para o cinema. Manoel Gomes, com uma voz anasalada demais, uns vibratos forçados e uma entonação quase trágica de tão sentimental, faz da tal caneta azul seu Everest civilizacional – aquilo que dá sentido à sua existência e à existência de tudo ao seu redor.
Sou capaz de imaginar Macunaíma cantando o mesmo drama por uma rede ou uma vara de pesca, condensando toda a complexidade humana em algo irrisório e transitório que, naquele momento, contém em si o sentido da vida. É o que antropólogos, sociólogos e economistas mais tarde identificariam como visão de curto prazo e alcance – neste caso, curtíssimo.
É dessa forma que Caneta Azul nos pega. Inconscientemente, a música evoca todas as coisas que nos irmanam num macunainismo implícito – macunainismo este que tem como maior consequência o país que nos rodeia. Olhe à sua volta: tudo parece feito de improviso, no susto ou num momento de “inspiração” – e provavelmente é; tudo é culpa da sorte ou do azar; para tudo se dá um jeito e se as atitudes e escolhas não cabem na métrica da moral elevada, ah, que se dane a métrica.
Vale a pena se perguntar se essa evocação coletiva do herói sem caráter tem ou terá outras implicações que não o sucesso passageiro de Caneta Azul e a fama igualmente passageira de Manoel Gomes. Estaremos assistindo à gestação de algo maior? De uma forma explícita e desavergonhadamente macunaímica de ver o Brasil e a vida? Será que abdicamos de uma vez por todas da civilização e decidimos nos contentar com essa barbárie cotidiana de riso fácil?
Bolha
Outro aspecto interessante do fenômeno Caneta Azul é a redescoberta de um Brasil profundo que anda ausente do noticiário positivo, isto é, para o qual só voltamos nossa atenção quando uma chacina ou algo escabroso atiça nosso olhar mórbido ou quando nos revoltamos com a eleição de um coroné qualquer.
Há quem diga que o Brasil da letra sem métrica ou sentido, cantada por uma voz que agride os tímpanos, é o Brasil verdadeiro e que o outro Brasil, aquele capaz de escrever, ler, interpretar textos e se manifestar nas redes sociais (ainda que usando basicamente emojis e um português sofrível), é um país de mentira, no qual brasileiros de verdade vivem uma realidade muitas vezes idealizada.
Fenômenos como o da Caneta Azul, portanto, servem para nos despertar para este outro Brasil, gigantesco, muito real e na maior parte do tempo silencioso e ignorado. O Brasil de 11 milhões de pessoas que acreditam que a Terra é plana. De 46 milhões de pessoas que não sabem que pagam impostos. De 50 milhões de pessoas que não acreditam que o homem foi à lua. De 65 milhões de pessoas que nunca compraram um livro na vida. De 73 milhões de pessoas que assumem desconfiar da ciência. E de 123 milhões de pessoas que não sabem quem é o vice-presidente.
Por mais surpreendente que possa ser a alguns, é com essa matéria-prima, com esse capital humano, que temos de trabalhar a fim de construir um país, uma sociedade, um Estado. Talvez para isso Caneta Azul sirva: para nos tirar do torpor das proparoxítonas marxistas de Chico Buarque, do rap cheio de justiça social dos Racionais e do funk “woke” de Anitta.