O ditador Getúlio Vargas é exaltado por grupos “antifascistas”| Foto: Reprodução
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Em meio aos protestos contra o presidente Jair Bolsonaro que tomaram as ruas de diversas capitais do país no último sábado (3), a presença de uma figura inusitada entre grupos autodenominados “antifascistas” reverberou nas redes sociais. Pelo menos duas bandeiras com o rosto do ditador Getúlio Vargas foram empunhadas por militantes da Juventude Socialista do Partido Democrático Trabalhista (PDT), o partido que, na década de 1930, abrigou o presidente responsável pela instalação do Estado Novo - com cerco à imprensa e ao Congresso e alinhamento declarado ao fascismo italiano.

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Embora a exaltação pública à figura de Getúlio Vargas tenha alvoroçado o debate - o assunto passou o dia entre os mais comentados do Twitter e houve quem tenha tentado defender o “lado bom do fascismo” -, a defesa incondicional do mais longevo ditador brasileiro (nenhum presidente da ditadura militar governou por tanto tempo) é uma constante entre alguns partidos de esquerda.

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“Atual e necessário”

Não faz muito tempo desde a última vez que Ciro Gomes levantou o debate acerca do “legado” do ditador ao lhe atribuir, por ocasião dos 65 anos de sua morte, o título de “o maior dos brasileiros”. Em agosto de 2019, poucos dias após o presidente Jair Bolsonaro exaltar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, Ciro, que reiteradas vezes criticou o presidente por suas exaltações a um notório torturador, homenageou o homem que não apenas manteve relações estreitas com a Alemanha nazista, como teve seu próprio bárbaro de estimação.

Filinto Müller, o chefe da polícia política do Estado Novo, responsável por sessões de tortura, nunca escondeu sua admiração pelo Eixo ao longo da Segunda Guerra Mundial e viajou à Alemanha para conhecer pessoalmente uma das instituições que mais admirava: a Gestapo.

Nenhuma destas informações é sequer pouco conhecida. Mas, já em 2021, o partido de Vargas reforça que o ditador segue “atual e necessário”. “Sessenta e sete anos após sua morte, nenhum chefe de Estado superou ou se aproximou desta liderança e deste magnetismo que ainda hoje permeia o Varguismo. Crescendo ao longo do tempo, não há como não ponderarmos que a cada período histórico, Getúlio se torna maior, mais atual e mais necessário”, diz um artigo publicado em abril deste ano pelo secretário-nacional do PDT, Manoel Dias, no portal oficial do partido.

“Desde Vargas nenhum outro presidente conseguiu dividir a História e se aproximou do gigantismo de sua obra de desenvolvimento nacional e direitos sociais deixados” continua o texto. Outro artigo, sobre os 65 anos do suicídio de Vargas, completados em 2019, classifica o Estado Novo como “um governo nitidamente voltado para os interesses nacionais”.

Uma biografia “sem machas”

Não é só o partido de Getúlio Vargas que insiste em tratar o ditador como uma figura benevolente. “Vargas teve sua vida devassada pelos adversários políticos e pela imprensa em decorrência da postura que adotou”, afirmou a deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR), então senadora, em um artigo publicado no portal do partido sobre o “legado” do ex-presidente. A presidente do PT compara a “perseguição” sofrida por Getúlio com o processo que culminou no “golpe” contra Dilma Rousseff.

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Gleisi também equipara os governo petistas às figuras de João Goulart, Juscelino Kubistchek e, finalmente, Vargas: todos “vítimas de campanhas de difamação” por tentarem “reduzir a desigualdade social para transformar o Brasil em um país melhor”.

No que diz respeito ao ditador fascista, o texto vai muito além de meramente defender as empresas estatais e as leis trabalhistas criadas durante seu governo. “Todos eles foram acusados impiedosamente de corrupção pelas forças conservadoras, mas ao final terminaram absolvidos pela História, pois ninguém conseguiu levantar uma única prova que manchasse suas biografias”, arremata.

É curioso que Gleisi aparentemente desconhecesse o fato de que uma das maiores provas do alinhamento de Vargas ao nazismo fosse uma militante comunista, hoje com 84 anos. Anita Leocádia Prestes, filha do revolucionário Luiz Carlos Prestes, nasceu em um campo de concentração alemão poucos meses após a mãe judia, Olga Benário, ter sido entregue a Hitler pelo fascista brasileiro que o chamava de “grande e bom amigo”.

A deportação de Olga, um dos mais conhecidos acenos de Getúlio ao Eixo, está longe de ser o único crime do ditador. A pesquisa da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo (USP), aponta uma série de ações que comprovam o caráter eugênico de seu governo.

No artigo “Rompendo o silêncio: a historiografia do antissemitismo no Brasil”, a pesquisadora comprova como "...os governos de Vargas e (Eurico Gaspar) Dutra mantiveram circulares secretas antissemitas, entre 1937 e 1948, de forma a impedir a concessão de vistos aos judeus refugiados e sobreviventes dos campos de concentração". Maria Luiza descreve também como o antissemitismo foi um elemento relevante - e não uma situação pontual - na conjuntura que levou ao golpe de Estado de 1937.

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"Através da omissão e 'negacionismo', o Brasil perdeu a oportunidade de salvar milhares de judeus cujo destino até hoje nada se sabe", escreve a pesquisadora. Isso tudo sob a mão de ferro do homem que Ciro Gomes afirmou ter “lutado até o fim pelos direitos humanos” e a quem Gleisi Hoffmann atribui uma biografia irretocável.

Hoje, os militantes “antifascistas” na Avenida Paulista justificam sua presença com o que, com muita boa vontade, só pode ser classificado nos termos sugeridos pela exígua parte da esquerda que, de fato, rejeita as ditaduras. Como escreve o deputado estadual Eduardo Jorge, para passar pano para Getúlio Vargas, é preciso dar “piruetas históricas”.