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Liberdade de expressão

Na era da patrulha e do cancelamento, o humor desaparece da tevê aberta

Hubert, Reinaldo, Beto Silva, Maria Paula, Marcelo Madureira, Cláudia Rodrigues, Helio de La Peña e Claudio Manoel em um episódio do Casseta & Planeta Urgente.
Hubert, Reinaldo, Beto Silva, Maria Paula, Marcelo Madureira, Cláudia Rodrigues, Helio de La Peña e Claudio Manoel em um episódio do Casseta " Planeta Urgente. (Foto: Divulgação/João Miguel Júnior (Rede Globo))

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Um setor da indústria cultural brasileira que, definitivamente, não está em crise é o humor. Nunca os comediantes estiveram tão em evidência e com tantos canais de expressão – dos teatros às redes sociais, passando pelos cinemas, plataformas de streaming, bares, rádios, podcasts. A ressalva, por ironia, fica por conta do veículo mais popular, responsável por revelar ou consolidar nossos maiores talentos da área: a televisão aberta.

Basta uma passada rápida nas grades das cinco maiores emissoras para perceber o sumiço da comédia. Ainda há alguns talk-shows apresentados por humoristas (Danilo Gentili, Tatá Werneck, Fábio Porchat), atrações baseadas em vídeos virais da internet e uma ou outra exceção que confirma a regra – como a 'Praça' velha de guerra comandada por Carlos Alberto de Nóbrega. No entanto, séries ou programas de esquetes simplesmente não são mais produzidos.

Mesmo durante a ditadura, os comediantes estavam entre as maiores estrelas da tevê. E mais ainda no período da reabertura política. Entre os anos 80 e 90, nomes já estabelecidos (Chico Anysio, Jô Soares, Agildo Ribeiro, Ronald Golias, Os Trapalhões) dividiam as telas com uma geração vinda do teatro "jovem" carioca (Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Diego Vilela, Miguel Falabella), das publicações alternativas ('Casseta Popular', 'Planeta Diário') e de outros grupos que experimentavam novas linguagens (como o Olhar Eletrônico, de Marcelo Tas e Fernando Meirelles).

Mais tarde, já com a internet popularizada no Brasil e o início da febre do stand up comedy, foi a vez dos humoristas do ‘Pânico’ e do ‘CQC’ conquistarem o público, além de toda uma turma surgida na MTV (que não era exatamente um canal aberto, porém podia ser acessado em UHF e apresentou à audiência nomes como Marcelo Adnet, Hermes & Renato, Fábio Rabin, a já citada Tatá Werneck). Sem contar os inúmeros seriados produzidos pela Globo – 'Os Normais', 'A Grande Família', 'Tapas e Beijos', 'A Diarista', 'Sob Nova Direção', 1Toma Lá, Dá Cá', 'Minha Nada Mole Vida', entre outros.

Mas a ditadura agora é outra. Sob a vigilância permanente da militância politicamente correta, as emissoras não veem mais sentido em investir na comédia. Afinal, ninguém quer perder patrocinadores por causa de um cancelamento ou enfrentar um processo judicial porque alguém decidiu que uma piada é "errada".  Ou você consegue imaginar, por exemplo, um dos humoristas do Casseta & Planeta vestido de Xandão e tirando sarro do STF em pleno ano de 2023?

Aliás, por mais surreal que isso pareça, mesmo o juiz Alexandre de Moraes foi vítima do patrulhamento quando classificou os episódios de vandalismo ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro deste ano como "tentativa tabajara de golpe" – em uma referência às Organizações Tabajara, que tinham como garoto-propaganda o personagem Seu Creysson, interpretado por Cláudio Manoel.

Imediatamente após a fala de Moraes, lideranças indígenas foram a público condenar o uso do termo "tabajara", considerado preconceituoso. "Tabajara é um povo muito forte do Nordeste, um povo de resistência. É muito triste ver essa utilização do nome. Não é para achar engraçado", declarou o representante pataxó Vitor "Suhyasun" Vulga ao site 'Poder 360'.

Riso fofo 

"Hoje em dia, é bem difícil você manter no ar um produto de massa que funcione e ao mesmo tempo não seja alvo de muita observação. A liberdade de expressão é inversamente proporcional ao tamanho da plateia", diz o próprio Cláudio Manoel, que também viveu os personagens Carlos Maçaranduba, Kiekeylson e Seu Barrosinho no 'Casseta & Planeta Urgente', além de encarnar figuras reais como Romário, Carlos Alberto Parreira e Dilma Roussef.

Atualmente dedicado à carreira de documentarista, ele conta que, quando sua geração surgiu, qualquer tentativa de controlar um artista era sinônimo de caretice, anacronismo. "Agora, o cara fica p* com a piada de um humorista que ele nunca viu, contada em um show que ele nunca vai pagar para ir", aponta.

O resultado dessa cultura da problematização, segundo Cláudio Manoel, é a perda da espontaneidade – e, por consequência, da própria graça. "Se você não pode errar, também não pode ousar. E o humor que não corre riscos acaba sendo um humor macio, fofo, que não incomoda."

O roteirista Paulo Cursino concorda: "O humor que existe hoje na tevê aberta é quase infantil, baseado em amenidades. A pessoa vai no programa do Porchat, conta que fez cocô na calça no meio de uma viagem e a plateia no auditório ri", diz o autor e colaborador de atrações como 'Sai de Baixo', 'Os Caras de Pau' e 'Sob Nova Direção', além de comédias de sucesso no cinema e nas plataformas de streaming ('Os Farofeiros', 'Até que a Sorte nos Separe', 'O Candidato Honesto').

Com 20 anos de serviços prestados à Rede Globo no currículo, Cursino lembra da última fase do núcleo de humor da emissora, marcada pela descaracterização do 'Zorra Total' e a criação do 'Tá no Ar: A TV na TV', que só teve repercussão no nicho progressista do Twitter. “O Zorra do [comediante e roteirista] Marcius Melhem matou o humor do programa antigo, não revelou nenhum nome novo e não deixou nada no lugar”, afirma.

Conduzido, em 2018, ao posto de chefe do departamento de humor e manda-chuva de todos os programas do gênero exibidos pelo canal (uma posição que nem Chico Anysio conseguiu alcançar em sua fase de ouro), Melhem teve seu contrato encerrado em 2020, após ser acusado de assédio sexual por um grupo de atrizes e autoras. Sua derrocada também representou a extinção do núcleo cômico da Globo, que em outros tempos já chegou a produzir quase 20 atrações diferentes em um mesmo ano.

Políticos intocáveis 

Se o humor popular nos moldes clássicos brasileiros está em baixa na televisão, o que dizer da sátira política? Desde o fim do 'CQC', em 2015, praticamente não se tira mais sarro de parlamentares e governantes nas emissoras abertas. “Agora é a política que bate no humor brasileiro”, lamenta Paulo Cursino.

Para ele, a geração atual de comediantes não sabe fazer esse tipo humor. E, quando faz, sempre pende para um dos lados da polarização. Cursino ainda recorda que, até o final da era FHC, nenhum político era poupado – mas a origem pobre de Lula fez dele o primeiro "intocável". "Isso é fruto de todos esses anos de doutrinação ideológica nas escolas e universidades", diz.

"Chegamos num nível em que o programa de humor mais ousado da tevê aberta é 'A Praça É Nossa'", afirma o também roteirista Felipe Flexa ('Casseta & Planeta Urgente', 'Tapas & Beijos', 'Filhos da Pátria', 'O Dono do Lar', 'Suburbanos'). Para ele, a perseguição atual aos comediantes é um sinal de que a sociedade brasileira não está tão evoluída quanto se pode pensar. “É uma democracia tão forte que tem medo de piadista.”

Flexa, no entanto, acredita que o politicamente correto é mais uma moda comportamental com tempo de duração limitado. E cita uma das tiradas mais conhecidas de Millôr Fernandes (1923-2012): "Quando uma ideologia fica bem velhinha, ela vem morar no Brasil".

"Essa conversa de 'no meu tempo era melhor' parece coisa de velho esclerosado, mas vou me permitir dizer: no meu tempo era realmente melhor, sim", conclui o redator.

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