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Ética

Na França, lésbicas e solteiras podem ter “direito a filho” pago pelo Estado

Projeto levanta muitas questões pertinentes, como se os casais homossexuais se qualificam como "inférteis" e como lidar com a "mercantilização" do processo. (Foto: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo)

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Na França, está prestes a ser aprovada uma nova lei que estende às mulheres solteiras e aos casais de lésbicas o acesso a técnicas de reprodução assistida como a fertilização in vitro e a inseminação artificial. Originalmente, o projeto da lei ainda previa que o pagador de impostos francês reembolsasse em até 100% as usuárias dessas técnicas, mas, no vai-e-vem entre a Assembleia e o Senado, o reembolso está limitado às “necessidades médicas”.

Pode ser que o reembolso para todo tipo de demandante retorne quando a Assembleia concluir seus debates (no sistema francês, as duas casas devem aprovar o mesmo texto, mas, em caso de discordância, prevalece a Assembleia). Porém, uma novidade dada como certa é que a nova lei deve equiparar a França à Inglaterra, que, desde 2005, proíbe a doação anônima de esperma.

Distinções teóricas e consequências práticas

A direita francesa diz que o debate está sendo menos acalorado do que devia porque os manifestantes contra ela não quebram nada nas ruas. Mas ao menos o debate está ocorrendo e a voz que mais se destaca neles é a da filósofa Sylviane Agacinski, ex-aluna de Jacques Derrida, feminista da velha guarda, professora da École des Hautes Études em Sciences Sociales, autora de vários livros, entre os quais o recente L’Homme désincarné [O homem desencarnado], opúsculo em que examina a questão do acesso às técnicas da reprodução assistida, tanto do ponto de vista das distinções teóricas quanto das consequências práticas.

O primeiro esclarecimento que Agacinski oferece diz respeito ao uso da expressão “casais inférteis”. Como ela diz, a sexualidade é a demonstração de que os indivíduos não são completos. A ideia de fertilidade humana só faz sentido levando-se em conta a distinção entre macho e fêmea. Um casal homossexual nem é infértil nem não é: essa categoria simplesmente não se aplica. (Se esse casal deve ter o direito de adotar crianças é outra questão.)

Não há desconstrução de gênero que possa eliminar a diferença sexual. Nem mesmo as mais vanguardistas teorias de desconstruir não o gênero, mas o próprio sexo, como as elaboradas por Judith Butler e Paul B. Preciado, chegaram perto de eliminar a diferença entre macho e fêmea na hora de produzir um bebê.

Assim, como em muitos debates públicos, a formulação do problema já indica a solução desejada. Se os casais são inférteis, uma técnica de reprodução assistida é uma solução médica para uma capacidade que se esperaria que estivesse presente. Por outro lado, se estamos falando não em casais inférteis, mas em casais “heterossexuais”, então impedir que casais homossexuais – ou, por que não?, mulheres solteiras de quaisquer inclinações – utilizem essas técnicas é apenas um ato discriminatório.

Por insistir nessas distinções, Sylviane Agacinski teve sua palestra “O ser humano na era de sua reprodutibilidade técnica” (referência ao clássico texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin) cancelada na Universidade de Bordeaux-Montaigne em 2019. No entanto, é preciso observar que a comissão do Senado francês responsável pela lei a chamou para falar e a apresentação, de pouco mais de uma hora, está disponível no YouTube (naturalmente, em francês e sem legendas).

Testes de DNA recreativos

Quanto ao fim do anonimato dos doadores de esperma, a nova lei francesa seguirá uma lei inglesa de 2005 de mesmo efeito. O motivo para o fim do anonimato é duplo. Em primeiro lugar, há o lobby organizado de filhos de doadores anônimos que simplesmente querem saber quem foram seus pais biológicos. Esse lobby é representado na França pela organização PMA, ou Procréation Médicalement Anonyme, que repete a sigla francesa para reprodução assistida, PMA, ou Procréation Médicalement Assistée.

O segundo motivo vem de uma daquelas consequências da tecnologia nas quais ninguém pensou à primeira vista: o surgimento de testes de DNA recreativos como o 23&Me simplesmente facilitou que os filhos de doadores encontrassem seus meios-irmãos. Antes, eles descobriam esses meios-irmãos pelos números dos doadores – e, aliás, não são poucos os doadores que têm dezenas de filhos.

A lei inglesa que logo será imitada pela francesa cria uma situação, digamos, peculiar: a partir dos 18 anos, qualquer filho de doador poderá obter o nome completo e o último endereço conhecido do doador, mas o Estado não reconhecerá nenhum grau de parentesco entre os dois. Em outras palavras, o filho que venha a bater na porta do pai biológico – ou, para usar o termo legal, do “genitor” – poderá ser simplesmente expulso, com uma advertência para que pare de perturbar.

O fim do anonimato também desperta em Agacinski aquele que deve ser o mais tradicional pavor francês: o pavor da “mercantilização”. Hoje, na França, o esperma pode ser doado, mas não vendido, e a nova lei não deve alterar isso. Porém, mesmo na situação atual, as doações anônimas não bastam para atender a demanda dos casais inférteis. Se a demanda for expandida, Agacinski se pergunta se não aumentarão os incentivos para um mercado de esperma.

Esse mercado, na verdade, já existe, e seu maior expoente é a Dinamarca. Uma busca no Google por “sperm donation Denmark” traz imediatamente um anúncio oferecendo até 4200 coroas dinamarquesas (613 dólares em 11/02/2020) por mês para doadores de esperma. Para além da discussão das leis liberais da Dinamarca, posso mefistofelicamente apenas deixar no ar uma pergunta. Se o acesso à reprodução assistida é uma pauta de esquerda, uma pauta “inclusiva”, o que pensar dessa sua primeira consequência prática, que é a criação de um mercado de bebês louros e de olhos azuis, com empresas prometendo realizar “o sonho do bebê viking”?

Incubadoras ucranianas

O outro aspecto da “mercantilização” que preocupa Agacinski é o uso da “barriga de aluguel”, que continuará proibida na França. Será permitida a gestação que no Brasil é chamada de “solidária”, isto é, gratuita. Só que outros países, como Estados Unidos, México, e Ucrânia oferecem esses “serviços”. Na Ucrânia, as mulheres que fazem barriga de aluguel são chamadas de “incubadoras”. Entre os países, o pacote completo para a gestação de um bebê pode custar entre 58 a 130 mil dólares. Mas ainda resta a questão da legalização do bebê no país dos... compradores? Afinal, embora a venda de bebês seja tecnicamente proibida, é difícil evitar falar em “compradores”.

Essa dificuldade leva de volta à questão de como os termos definem uma questão. Falar em casais inférteis é diferente de falar em casais heterossexuais. Em vez de “compradores”, os defensores da barriga de aluguel esperariam que adotássemos os termos do tribunal da Califórnia que confirmou em 2013 naquele estado americano a legalidade desse tipo de serviço: “pais por intenção” (intended parents). Os pais por intenção contratam um serviço de incubação, que inclui a incubadora, acompanhamento médico, a exigência de que a incubadora siga um certo estilo de vida durante a gestação, etc.

Os termos podem assustar, mas Agacinski observa em seu opúsculo que muitas “incubadoras”, assim como muitas prostitutas, acabam deixando de se identificar com o próprio corpo.

E a filósofa ainda acrescenta que, nesse caso, os filhos gerados pela barriga de aluguel se distinguem de órfãos adotados na medida em que os filhos da barriga de aluguel foram gerados para serem abandonados.

A conclusão de tudo é um argumento que está longe de ser “conservador”, na medida em que a autoridade convocada em seu apoio é o antropólogo Claude Lévi-Strauss, para quem o parentesco biológico está na base de todas as sociedades. Mesmo a ideia popular de “mãe é quem cria” só pode ser entendida como uma resposta à ideia de “mãe é quem gera”, mas sem que isso implique que a mãe que gera não seja “mãe”.

Brasil

Como um epílogo, caso o leitor esteja se perguntando como é regulamentada a reprodução assistida no Brasil, a resposta é que existem duas fontes. A primeira é a Lei de Reprodução Assistida de junho de 2003, que diz que “A utilização das técnicas de Reprodução Assistida será permitida, na forma autorizada nesta Lei e em seus regulamentos, nos casos em que se verifique infertilidade e para a prevenção de doenças genéticas ligadas ao sexo”.

A segunda fonte é a Resolução 2618, promulgada em 2017 pelo Conselho Federal de Medicina, na qual se lê que “é permitido o uso das técnicas de reprodução assistida para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras”, e, mais explicitamente, que “é  permitida  a  gestação  compartilhada  em  união  homoafetiva  feminina  em  que  não exista infertilidade”.

Sylviane Agacinski foi “cancelada” na França pela aparente deselegância de recordar certas distinções, mas foi ouvida no Senado, e pode-se dizer que na França ao menos há um debate. A contradição de termos entre a lei promulgada pelo Senado brasileiro e a resolução do CFM gera a pergunta: onde estava a nossa Sylviane Agacinski?

Conteúdo editado por: Paulo Polzonoff Jr.

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