"Passei por todos os trâmites: psicóloga, ministério público, juíza, audiência - todas as etapas obrigatórias. Um processo que, pela própria lei, garante sigilo para mim e para a criança. A entrega foi protegida e em sigilo. Ser pai/e ou mãe não depende tão somente da condição econômico-financeira, mas da capacidade de cuidar. Ao reconhecer a minha incapacidade de exercer esse cuidado, eu optei por essa entrega consciente e que deveria ser segura". A carta aberta da atriz Klara Castanho, publicada no último dia 25 de junho depois que a informação sobre sua gravidez após um estupro foi divulgada por um colunista profissional, acendeu o debate acerca dos desafios para a adoção no Brasil. Trata-se, afinal, de uma alternativa legítima e, certamente, preferível ao aborto, sobretudo em casos tão trágicos quanto ao relatado pela atriz – que, inclusive, foi vítima de um vazamento criminoso.
Para garantir que mães que, por qualquer motivo, desejem entregar seus bebês para a adoção de forma segura e sigilosa, foi editada em 2017 a Lei 13.509. Trata-se de um instituto jurídico criado justamente para proteger a integridade física e psicológica da mãe e da criança, desestimulando o aborto, o abandono de incapaz e as adoções irregulares. A legislação também ampara a distinção entre a gestante que oferece o filho para que seja cuidado por outra família daquela que desampara ou o expõe a situações de risco. Ocorre que, no Brasil, onde cerca de oito crianças são abandonadas todos os dias – de acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – e nas condições mais adversas possíveis, a facilitação do processo para a entrega voluntária é apenas um dos gargalos a serem superados.
Estima-se, por exemplo, que haja cerca de 21 pretendentes aptos à adoção para cada criança disponível. Por que, então, elas não estão com estas famílias? A solução deste problema envolve um aprimoramento urgente das equipes técnicas ligadas ao judiciário, responsável por alocar a criança e por capacitar e selecionar os pais que buscam a adoção. Há lacunas relevantes a serem preenchidas em todos os passos do processo. O primeiro passo, por exemplo, é garantir que a gestante que deseja entregar o bebê receba o devido acompanhamento profissional por parte de psicólogos e assistentes sociais.
À brasileira
“Tudo que a gente quer evitar é que as mães que desejam prosseguir com a gestação, mas não querem exercer a maternidade, façam uma entrega direta. O ideal é que ela passe por uma rede de acolhimento que verifique o motivo de ela não querer ficar com a criança - se é uma falta de condição que pode ser superada ou se é uma decisão definitiva. No segundo caso, é importante que ela saiba também de quais direitos está abrindo mão ao entregar o bebê”, explica Ana Morena Sayão Capute Nunes, coordenadora acadêmica do Observatório Nacional de Adoção. Esta é uma das razões pelas quais especialistas consideram tão importante evitar a adoção intuito personi, quando a mulher entrega a criança diretamente para um parente ou conhecido, ou “à brasileira”, quando o parente em questão registra a criança como sua.
“Acompanhamos muitos processos nos quais a mãe desconhece as consequências da entrega legal e acha que está apenas delegando a criação do filho. Então, quando a pessoa que está cuidando ingressa com a ação de adoção, ela se sente violentada, porque não queria abrir mão por completo do seu papel. Essa falta de conhecimento técnico prejudica as mães e ela tende a acontecer quando o processo não passa pelo judiciário”, completa Nunes.
Adotabilidade
Outro processo importante, diretamente impactado por este acolhimento oferecido às mães e à família próxima da criança, que carece de celeridade no Brasil é a definição da condição de adotabilidade da criança. Trocando em miúdos: ao entregar um filho para a adoção, é preciso que os pais tenham seu poder familiar suspenso ou destituído para que, então, a guarda da criança possa ser legalmente transferida para outra família. Sempre que possível, a justiça brasileira tende a privilegiar a reintegração familiar: é preferível que a criança ou adolescente em questão seja criada junto com os irmãos biológicos, se houver, e por algum parente próximo.
Ainda que seja justo, este esforço precisa ser feito de forma rápida e efetiva, uma vez que só depois deste processo é possível acionar o cadastro nacional. “Quando uma criança é abandonada, ela pode passar de três a quatro anos em um abrigo, até que se esgotem todas as possibilidades de reintegrá-la a uma família biológica. A ideia de que o melhor para a criança é que ela esteja com algum parente não necessariamente é verdade e pode ser um empecilho”, explica Bruno Bonifácio, que assiste cerca de 350 famílias que desejam entrar na fila da adoção.
Possibilidades desperdiçadas
Além disso, há a questão das preferências familiares, que nem sempre batem com o perfil das crianças que estão nos abrigos – um problema agravado por uma mistura de burocracia e, novamente, falta de capacitação técnica. “Costumo dizer que é como se os pais que buscam um bebê recém-nascido, sem irmãos e sem nenhum problema de saúde é como se estivessem buscando um unicórnio. A maioria das crianças abandonadas vêm de situações de extrema vulnerabilidade, têm mais de dois anos, possuem irmãos e, algumas, necessitam de algum tratamento contínuo”, explica Nunes.
"Em 2020, havia 5040 crianças e adolescentes totalmente disponíveis para adoção e 32 mil pessoas habilitadas para adotar. Acontece que cerca de 63% dessas famílias não aceitam crianças maiores de 8 anos, que é o perfil de mais de 70% dos menores que estão prontos para serem adotados", explica Marcelo Couto Dias, diretor do Departamento de Formação, Desenvolvimento e Fortalecimento da Família.
Ocorre que, quando o cruzamento de dados fica estritamente a cargo de um sistema informático, muitas possibilidades são desperdiçadas: “Às vezes o problema de saúde que consta na ficha e impede que um menor chegue a uma família é uma coisa simples, com a qual os pais teriam condições de lidar. Da mesma forma, há irmãos que não tiveram nenhum contato prévio e que poderiam ser adotados por famílias diferentes. O sistema não dá conta dessas nuances”.
A especialista cita como exemplo a ser seguido o projeto “Quero Uma Família”, promovido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. “Trata-se, literalmente, de abrir os perfis das crianças e procurar com atenção pelo filho que a pessoa busca. É preciso lembrar que embaixo destes papéis tem gente”, conta Nunes, que reforça também a importância de se facilitar a promoção de encontros pessoais entre os menores nos abrigos e as famílias adotantes.
“Não é promover uma vitrine de crianças, mas conheço casais que buscavam um filho de até três anos, por exemplo, e se apaixonaram por uma criança de cinco ou seis. Aí você entende por que os casais com condição de ir para fora do país dizem que ‘encontraram seus filhos’ lá. Costumo dizer que muitas dessas pessoas, se tivessem oportunidade de conviver com essas crianças, encontrariam seus filhos aqui”, diz.
"O desafio é construir um processo centrado no interesse do menor: não se trata de buscar uma criança com o perfil da família, mas uma família para a criança que existe", complementa Dias.
Processo demorado
A falta de profissionais dispostos a esmiuçar caso a caso faz com que um processo que, por lei, não deveria durar mais de 120 dias, se arraste por longos anos. Some-se a isto o fato de o poder judiciário, como um todo, padecer das conhecidas desigualdades que dividem o país. “Há centenas de cidades pequenas onde há apenas um juiz resolvendo estes casos, e eles não dão conta sozinhos. Faltam psicólogos e assistentes sociais tanto para o acolhimento às mães quanto para a realização do curso de capacitação, o que faz com que os casais pretendentes não entrem na fila. Há municípios onde não há sequer uma vara especializada para dar início ao processo de habilitação”, afirma Karla Medeiros, da ONG Acolher Mairiporã, em São Paulo, especializada em processos de adoção.
Há, por fim, que se aprimorar e popularizar os cursos de capacitação para famílias pretendentes, inclusive para que se evite o pior dos cenários enfrentado pelas crianças abandonadas: a devolução aos abrigos. “Isso é pouco noticiado, mas os relatórios psicológicos de crianças que foram devolvidas são mais impactantes do que os das crianças que sofreram violência sexual. Não raras vezes, essas famílias devolvem dizendo que não se adaptaram à criança”, alerta a pesquisadora do Observatório Nacional da Adoção.
“No fundo, mesmo os casais que adotam caem no erro de idealizar o filho. A criança obediente, tranquila, sem nenhum problema de saúde e que vai bem na escola é uma idealização mesmo nas famílias biológicas. Por isso, no grupo de apoio, compartilhamos todas as dificuldades do processo: a preparação, a espera, e a vida após a adoção”, explica o especialista Bonifácio. "Cada fase merece uma atenção especial".
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