No começo do ano, para simbolizar a austeridade que marcaria seu governo e em oposição à mamata que marcaram os governos petistas, o presidente Jair Bolsonaro passou a assinar os documentos oficiais usando uma prosaica caneta Bic – dessas que qualquer mercadinho da esquina vende a R$ 0,99.
Na semana passada, contudo, depois dos embates entre o presidente brasileiro e o francês Emmanuel Macron por conta dos incêndios na Amazônia, a caneta inventada pelo judeu húngaro Lázló Biró e popularizada por Marcel Bich (cidadão francês nascido na Itália) se transformou no símbolo da animosidade latente entre os dois países. Em retaliação às palavras ecologicamente tolas de Macron, Bolsonaro decidiu trocar a onipresente Bic pela Compactor, que em seu site se diz 100% nacional, mas que não esconde a parceria estratégica com uma indústria alemã. “A Compactor é o braço da Schneider no Brasil”, lê-se no site da empresa.
A história da caneta esferográfica é fascinante. Biró, frustrado com o tempo que desperdiçava tendo de encher as canetas-tinteiro, uniu algumas tecnologias já existentes para criar a caneta esferográfica em 1938. A inovação não estava apenas na bolinha na ponta da caneta (daí o termo “esferográfica”), mas também na tinta. Daí veio a guerra e Biró se mudou para a Argentina. Sua invenção ajudou, inclusive, no esforço de guerra, já que os pilotos dos caças britânicos usavam esferográficas para fazer anotações nos apertados cockpits.
Depois da guerra, surgiram vários projetos de canetas esferográficas, mas nenhum deles é mais icônico do que a Bic Cristal desprezada por Bolsonaro em nome da soberania nacional. Tanto que a caneta hoje está no Museu de Arte Moderna de Nova York. Tudo ali é pensado para o bem-estar do usuário: o formato hexagonal da caneta, por exemplo, impede que ela role pela mesa. E o buraquinho na tampinha da caneta existe para evitar o sufocamento de algum desaviado que possa engoli-la.
Eu, a caneta
Em 1958, Leonard Read escreveu um famoso ensaio intitulado “Eu, Lápis”, que mostrava como eram necessárias as contribuições de inúmeras pessoas de todo o mundo para se produzir um único lápis. O texto pretendia exaltar o milagre que é a economia colaborativa do capitalismo e do livre comércio. E ele se aplica com perfeição à caneta Bic.
Para se ter uma ideia, a Bic conta hoje com 24 fábricas ao redor do mundo. Juntas, elas empregam cerca de 13 mil pessoas de 89 nacionalidades – o número é bastante reduzido porque, claro, a maior parte do processo é mecanizado. Em 2016, a empresa bateu a marca de 100 bilhões de canetas produzidas.
Para se fabricar a caneta esferográfica, tanto a Bic quanto a Compactor (ou a Kilométrica que marcou a infância de muitos), são necessárias matérias-primas que vêm de todas as partes do mundo.
O corpo da caneta é feito de plástico. Mais precisamente, de poliestireno. O poliestireno é feito a partir do petróleo, cujos maiores produtores são Rússia, Estados Unidos, Arábia Saudita, Iraque e Canadá. 55% do poliestireno fabricado no mundo vêm da Ásia, principalmente da China. A América do Sul responde por 4,1% da produção mundial do plástico. E as principais comercializadoras do produto são empresas alemãs. Já a tampinha numa ponta, o tampão no extremo oposto e o tubo de tinta são feitos de polipropileno. Que também vem do petróleo e que tem na China seu maior produtor.
Ambos os plásticos, em seu processo de fabricação, usam catalizadores metálicos que vêm de todo o mundo.
As partes mais intrincadas da caneta, no entanto, são a ponta e a tinta. A ponta é feita de latão, uma liga de cobre e zinco. O maio produtor de cobre do mundo é o Chile, que responde por nada menos do que 27% da produção mundial. O cobre responde por 10% do PIB do Chile, gerando riquezas em torno de US$270 bilhões por ano. Já o zinco vem sobretudo do Peru, que exporta US$ 2,8 bilhões do metal por ano.
A esfera dentro da ponta é o componente que dá nome à caneta e também sua maior maravilha tecnológica. Ela é feita de tungstênio, cujos maiores produtores são a China, a Rússia e a Bolívia. Mas também pode vir do Congo – um dos maiores produtores mundiais e país onde a extração do minério é extremamente politizada e militarizada. O diâmetro da bolinha varia de 0,5mm a 1,2mm. O tungstênio é usado por sua durabilidade e resistência à deformação.
Por fim, temos a tinta – outra maravilha da tecnologia moderna. Todos os ingredientes usados na tinta da caneta influenciam a suavidade da escrita, o brilho e o fluxo. Na composição da tinta preta é usado o negro-de-fumo, um resíduo da indústria petroquímica. Nas tintas azul e verde se usa azul-ftalo, pigmento que leva cobre em sua composição. E na tinta vermelha se usa eosina, cuja composição leva sódio e bromo.
Patriotismo esferográfico
Não existe, portanto, caneta 100% nacional. Na verdade, hoje em dia é improvável que haja qualquer produto que esteja restrito a uma única nacionalidade. Até o brasileiríssimo açaí é embalado em plástico feito de petróleo “estrangeiro”, cultivado em solo preparado com insumos que vêm até da Austrália, transportado em navios com bandeiras de outros países e provavelmente vendido por uma rede de supermercados multinacional.
Nem mesmo se o presidente Jair Bolsonaro cedesse à pressão dos detratores que sugeriram que ele usasse o polegar para assinar os documentos oficiais ele estaria usando um produto 100% nacional. Afinal, Bolsonaro é produto da imigração em massa de europeus – italianos e alemães - que fugiam dos conflitos e da pobreza do Velho Continente.