O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conversa com o ministro da Justiça, Flávio Dino, e o ministro do STF Alexandre de Moraes, durante reunião em Brasília, em abril de 2023| Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
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Em 2022, a jornalista Vera Magalhães criticou o senador eleito Hamilton Mourão por defender que o Senado pusesse um “freio” no STF. Um ano depois, em artigo, a jornalista noticiou “acordo” do STF com o Congresso, um dia depois que o mesmo jornal falou em “coalizão” do STF com o governo Lula. “Depois de muita fumaça”, diz Vera, “o ano termina com a tentativa de concórdia entre os Poderes, sinal de maturidade republicana.”

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Infelizmente, a jornalista não está sozinha nessa visão: ela não só é muito difundida entre jornalistas, como ganhou autoridade ao ser adotada até mesmo pelos constituintes brasileiros: quando instituíram os três poderes na Constituição, descreveram-nos como “independentes e harmônicos entre si".

A palavra harmonia sugere a ideia de concordância, ou agir no mesmo sentido, como duas atletas de nado sincronizado, que se movem como se fossem uma única pessoa. Mas, se quiséssemos que os poderes agissem sempre em harmonia como se fossem um só, teria sido mais prático instituir logo... um só. O mesmo resultado seria conseguido com muito mais perfeição e a um custo menor.

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Na verdade, muita gente no Brasil tem mesmo esse desejo: é o que está por trás das reivindicações, à esquerda e à direita, por um “Poder Moderador”, superior aos demais e com monopólio no seu nível de hierarquia, para “resolver os conflitos” que surgissem entre os poderes. Como se esses conflitos fossem um erro de percurso indesejado, e não a própria intenção do sistema.

Quando os políticos brigam, o povo ganha

O mero fato de termos instituído três poderes já é pista da sua verdadeira razão de ser, que é brigar. Ao contrário dos constituintes brasileiros, os redatores da constituição dos Estados Unidos (na qual todas as constituições republicanas brasileiras se inspiraram) sempre deixaram claro, em seus escritos, que a ideia era esta.

A diferença pode ser inclusive cultural: já se tornou lugar-comum entre comentaristas estrangeiros (como o comediante francês Paul Cabannes) dizer que, no Brasil, o confronto direto é malvisto. Uma manifestação disso seria a relutância em dizer “não”; em vez disso, o brasileiro tergiversa. Parece que essa aversão ao conflito se estende à vivência política.

Já os americanos desenharam seu modelo político com o desejo de confronto em mente: a ideia era que, sempre que houvesse o risco de que um dos poderes ameaçasse a liberdade do povo ou pretendesse concentrar poder excessivo, os outros poderes, rivais seus e eternos vigias, pudessem agir para reprimir o poder ameaçador, mantendo o equilíbrio.

Chegaram a usar, famosamente, a metáfora do “freio”, que causou constrangimento no Brasil quanto repetida literalmente pelo senador Mourão. É quase como se o Brasil tivesse importado um sistema estrangeiro que não combina com sua cultura. O cenário lembra as velhas discussões sobre a cultura do Oriente Médio ser inóspita para os Estados Unidos exportarem a sua democracia.

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Quando os políticos brigam, os políticos perdem

Pelo modelo idealizado nas antigas treze colônias inglesas, os poderosos, na sua tarefa de brigar com os outros poderes, acabariam atuando no interesse do povo, mas, potencialmente, fariam isso por razões puramente egoístas, como preservar a própria influência ou até mesmo ganhar votos.

Qualquer semelhança com a mão invisível do mercado de Adam Smith não é mera coincidência. A concorrência entre empresários gananciosos beneficia o consumidor. A “harmonia” entre empresários é que é o grande perigo. Ela se chama cartel. (Entre políticos, em algumas situações, é chamada de pizza.)

Por isso mesmo, Adam Smith tinha horror à ideia de empresários do mesmo ramo confraternizarem entre si. Dizia que a conversa sempre acabaria terminando numa conspiração contra o público.

Na nossa imprensa, muito pelo contrário, sempre abundam comentários em tom elogioso a tratativas para “pacificar” os poderes da República.

A democracia é desarmônica

Um exemplo foi em 2011, quando o então presidente americano Barack Obama enfrentava impasse com o Congresso para aprovar o orçamento. Parte da imprensa brasileira chegou a proclamar a superioridade da política brasileira sobre a americana alegando que, aqui, a ala fisiológica do Congresso estava sempre aberta à negociação. Como se vê, o brasileiro é tão avesso ao confronto que prefere a corrupção.

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Mas, se o Congresso só cumprisse a sua função quando concordasse com o Executivo, isso não tornaria o Congresso redundante? Por que tolerar o risco de ele eventualmente divergir, apenas para que isso tivesse de ser custosamente “resolvido” com negociatas? Não seria mais eficiente simplesmente fechar o Congresso, atingindo o mesmo resultado a um custo mais baixo?

Deve-se observar que muitos regimes autoritários (quiçá a maioria) mantêm a tripartição de poderes, com todos eles em funcionamento. O que torna o regime autoritário nesse cenário é justamente que os três poderes agem em excessiva harmonia, assim como o povo, que é aparentemente mais dócil (em consequência, geralmente, das maiores restrições à livre manifestação).

Em última análise, não existe diferença entre vários agentes atuando em coordenação e haver um só agente atuando sozinho. Até mesmo o dito “indivíduo” humano é, na verdade, composto de múltiplos seres vivos mais primitivos (células) atuando em coordenação. Na teoria do direito concorrencial, múltiplas empresas atuando juntas em cartel são descritas como sendo em tudo equivalentes a uma única empresa em monopólio. E, na política, se os diferentes partidos políticos, o Legislativo como um todo, o Executivo, o Judiciário e o “quarto poder” (que é como às vezes se chama a imprensa) agirem em grau suficiente de harmonia, a situação será indistinguível de uma ditadura de partido único.

Então, viva a discórdia.

Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]