Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Filosofia

Não dá para ser cristão e marxista ao mesmo tempo

Apesar dos esforços do filósofo Terry Eagleton, o Papa João Paulo II refuta a ideia de que é possível ser marxista e cristão ao mesmo tempo - algo que Fernando Haddad tentou durante as eleições de 2018.
Apesar dos esforços do filósofo Terry Eagleton, o Papa João Paulo II refuta a ideia de que é possível ser marxista e cristão ao mesmo tempo " algo que Fernando Haddad tentou durante as eleições de 2018. (Foto: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP)

Em seu mais recente livro, Radical Sacrifice [Sacrifício radical], o prolífico erudito e crítico literário Terry Eagleton continua com sua defesa apaixonada do marxismo, que teve início em 2011, com o livro Marx estava certo. Aqui, como em vários outros de seus textos, Eagleton argumenta — explicitamente, com erudição e, aqui e ali, uma perspicácia brilhante — que o marxismo não é apenas um resquício do passado, e sim uma forma viável de propor e aceitar um futuro melhor.

Mas Eagleton não é o defensor típico do materialismo dialético, isolado numa torre de marfim. O que torna Eagleton um caso raro entre seus pares acadêmicos é que ele é um católico e um marxista – e não demonstra qualquer arrependimento por isso. Em Radical Sacrifice, Eagleton se aproxima mais um pouco de seu objetivo final de, de alguma forma, combinar o marxismo e o catolicismo.

Infelizmente, o elefante na sala – a questão se essas antropologias profundamente conflitantes podem mesmo coexistir — aparece com ainda mais clareza no fim do livro. Não há muita esperança de que o projeto de Eagleton um dia triunfe. Na verdade, tudo, na história e na doutrina, sugere que ele fracassará. O receituário marxista-católico de Eagleton é intrigante, mas, ao longo do livro, fica cada vez mais claro que ele está defendendo não uma mistura das duas coisas, e sim a subordinação de uma a outra.

O anawim: um proletariado bíblico

O marxismo de Eagleton não bebe do vocabulário comum do gênero. Seu vocabulário é uma espécie de reflexão sobre a dinâmica do pensamento marxista baseada na Bíblia e nos Grandes Livros. Fundamental para o projeto católico-marxista de Eagleton é o conceito de “anawim”. Eagleton vê o anawim — termo hebraico para os marginais e os pobres, cuja libertação depende apenas de Iavé — como uma espécie de proletariado imbuído de poder metafísico. Por meio do anawim contemporâneo, argumenta Eagleton, o sistema mundial dominante será desestabilizado. Inspirado na história do sacrifício no Ocidente judaico-cristão, Eagleton propõe o anawim realizando um desfile bakhtiniano em oposição ao paradigma socioeconômico e político.

Como a pedra jogada fora que agora se torna a base de um edifício, os pobres da Terra darão origem à nova ordem, revelando a “arrogância” do mundo que ignorava seu sofrimento, tornando-se, assim, um instrumento de salvação. “Para a fé cristã”, escreve Eagleton,

Deus está mais presente nos despossuídos. A perda de dignidade deles reflete seu próprio caráter não-humano, assim como a assustadora natureza inumana de seu amor incondicional. Os pobres são sinais de Iavé no fato de que eles dependem apenas de Deus, depois de abdicarem de qualquer poder humano.

É justamente na ruína que Eagleton vê os pobres no auge de seu poder sobrenatural e terreno. Em sua morte, Jesus de Nazaré acabou com a esperança daqueles que pensavam que ele veio para liderar uma revolução política. Por outro lado, Eagleton quer, sim, trazer o Reino dos Céus para a Terra, e quer que os pobres nos inspirem a fazermos isso.

Eagleton argumenta que os pobres “só por existirem (…) traduzem o que ainda há para ser feito politicamente a fim de ajudá-los a alcançarem [o Paraíso]. Eles são um sinal de tudo o que ficou por ser feito na história e, neste sentido, são um testemunho do que ainda tem de ser feito”. Quando Eagleton menciona positivamente “a revolta iminente que Marx chama de comunismo e o Evangelho chama de Reino de Deus”, ele pretende associar a revolução marxista e a antiga ideia cristã de sacrifício. De acordo com sua visão de mundo, os seres humanos têm de se revoltar, recusando-se a se prostrarem diante do capital e se sacrificando em nome de uma ordem social mais justa.

Ao contrário de Marx, que via as classes operárias lutando nas fábricas capitalistas como estandartes da mudança histórica hegeliana – ou até de Mao, que substituiu os operários pelos camponeses como estopins da revolução socialista – o marxismo de Eagleton deposita o peso pela defesa da dialética nos ombros dos pobres. Para Eagleton, o anawim não é uma classe, e sim um povo bíblico, os desgraçados da Terra vistos com bons olhos por Deus. A justiça que eles trarão não tem nada a ver com a “destreza histórica”, e sim com a vontade de Deus.

Beatitudes radicais

Este ponto é importante. Ao posicionar o anawim como o novo proletariado, Eagleton espera que nós, os não-anawim que gozamos dos confortos da abundância material do capitalismo, não seremos obrigados a encenar o drama marxista da história por meio da violência de ter uma arma apontada para a cabeça (como Marx, Lênin, Stalin, Mao, Pol Pot, Kim Jong-Il, Fidel Castro e outros marxistas acreditavam entusiasmadamente). Em vez disso, seremos inspirados pelos pobres ao nosso redor a fazermos as mudanças necessárias para criarmos um mundo mais justo para todos. Em outras palavras, em vez de os anawim tomarem os meios de produção e mandarem todos os industriais e a pequena burguesia para a guilhotina, eles expressarão o amor de Deus pela sociedade como um todo, amor este que, por sua vez, nos transformará todos numa comunidade mais solidária e amorosa.

Exageros marxistas de lado, isso soa como algo que Jesus mencionava em várias de suas parábolas, incluindo, claro, o Sermão da Montanha. Os pobres, os sofridos, os negligenciados, os desprezados – eles serão exaltados, disse Ele, enquanto os orgulhosos de hoje ficarão, amanhã, na vontade.

Em termos mais concretos, Eagleton insinua que a Igreja Católica pode servir de modelo para a sociedade que ele procura. Radical Sacrifice é dedicado às irmãs carmelitas do Priorado Thicket de York, na Inglaterra. As freiras lá são “descalças”, o que significa que elas usam sandálias como forma de aderirem aos rigores das normas estabelecidas por Santa Teresa d´Ávila há quase quinhentos anos. A comunhão e a solidariedade radicais, uma sociedade baseada no amor e às margens do mundo, uma reunião de pessoas que aceita a pobreza e busca a caridade aos mais pobres: se há uma comunidade de sacrifício transgressivo elevado do tipo que Eagleton busca é com certeza essa.

Mas Eagleton não se contenta em nos deixar vivermos nossas beatitudes. As carmelitas são um bom começo, mas não chegam nem perto. Santa Teresa de Calcutá pode recolher os marginais das sarjetas do mundo o quanto quiser, mas tais feitos simplesmente não servem para a visão hiperbólica de Eagleton. No final das contas, Eagleton quer algo radicalmente diferente do que Cristo descreveu — não compaixão pelos pobres agora e o ajuste de contas mais tarde, de acordo com a lei de Deus, e sim o nivelamento das diferenças sociais e a redenção final aqui e agora. Caridade, por assim dizer, mas do tipo que antes verifica suas credenciais políticas.

Utopismo violento vs. Amor cristão

Aí é que está o problema. Será que o Cristianismo, centrado a morte de Deus no contexto da destruição da esperança humana por um Paraíso político, pode mesmo “fazer a transição” (como espera Eagleton) para o marxismo, que busca a utopia no presente e que nunca provou ser capaz de usar outro recurso que não a violência para realizá-la? Levando em conta o histórico assustador do marxismo no que diz respeito à religião, como Eagleton pode ter certeza de que, dessa vez, o marxismo será capaz de sacrificar seu verdadeiro caráter – a hostilidade impecável contra as fés religiosas – a fim de aceitar o amor desapegado e caridoso, a não-violência e tolerância paciente que tornam as irmãs carmelitas tão diferentes daquilo que Eagleton diz ser seu verdadeiro herdeiro? Neste sentido, será que o Cristianismo – que tem por uma de suas consequências a resignação política – pode “fazer a transição” para uma doutrina de politização racial e luta de classes?

Apesar de a história marxista ser sangrenta o bastante para fazer com que todos, exceto os utópicos mais entusiasmados, parem para pensar, talvez não haja refutação melhor do trabalho de Eagleton do que a obra de Karol Wojtyła, o Bispo de Cracóvia que se tornou Papa João Paulo II. Durante seu ministério na Polônia comunista, Wojtyła sofreu na pele a violência marxista contra os cristãos e todos os que professavam suas fés. Era de se esperar, portanto, que Wojtyła denunciasse o marxismo com base nos fatos históricos de massacre contra todos os povos de fé.

Enquanto Papa, contudo, João Paulo II optou por denunciar o marxismo por sua incompatibilidade fundamental em relação ao Catolicismo – em termos intelectuais e teológicos, e não usando os incontáveis exemplos de sua barbárie no mundo real. O marxismo jamais poderia se associar ao Cristianismo, ensinou Wojtyła, porque ele era implacavelmente hostil a Deus e ao conceito cristão do homem.

Como ele escreveu na Encíclica Dominum et Vivificantem, de 1986:

[A hostilidade ao Espírito Santo] alcança sua expressão mais clara no materialismo, tanto em sua forma teórica – como um sistema de pensamento – quanto na sua forma prática – como método de interpretar e avaliar os fatos, e ainda como um projeto de conduta. O sistema que mais desenvolveu e levou essa forma de pensamento, ideologia e práxis às suas consequências extremas é o materialismo dialético e histórico, ainda hoje reconhecido como a essência do marxismo. Em princípio e de fato, o materialismo exclui completamente a presença e a ação de Deus, que é espírito no mundo e sobre todos os homens. Fundamentalmente, isso se dá porque ele não aceita a existência de Deus, sendo um Sistema que é essência e sistematicamente ateu.

O motivo pelo qual o marxismo é “sistematicamente ateu” é explicado pelo próprio Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte.

A Humanidade não é um coletivo vazio – somos indivíduos numa relação com Cristo

A essência da antropologia histórica de Marx é a instrumentalização coletivista, vazia, predestinada e inexorável do homem como ferramenta histórica, a redução do homem pelo materialismo dialético a figurantes sem nome e rosto no drama principal da luta entre o proletariado e a burguesia. A negação da liberdade individual por Marx fechará as portas rapidamente para a obra do Espírito Santo no coração de cada pessoa. Como diz Marx:

Os homens fazem sua própria história, mas eles não a fazem como bem entendem; eles não a fazem sob circunstâncias que escolhem, e sim sob circunstâncias que já existem, dadas e herdadas do passado.

O fato de Marx condenar toda a burguesia como classe, simplesmente por serem donos de propriedades que foram roubadas, diz Marx, no pecado original marxista da “acumulação primitiva”, o leva e leva seus seguidores a apoiarem o assassinato em massa da classe inimiga a fim de remover a mácula da transgressão anterior e contínua.

João Paulo II ensina que a abordagem cristã é completamente diferente. Jesus não age de acordo com suas preferências. Ele escandalizou seus contemporâneos ignorando limites de classe, jantando com prostitutas, coletores de impostos, pescadores e donas-de-casa. Ele encontra cada homem e mulher em seu coração, chamando-os individualmente para que eles possam, por livre e espontânea vontade, “se arrependerem e acreditarem no Evangelho”. Marx apela à consciência de classe, mas Jesus fala à consciência — e a consciência é a nossa porção mais íntima e privada. Não podemos ser ao mesmo tempo cristãos e marxistas.

Leia também: O que é marxismo cultural?

Um indivíduo — o “primogênito de toda a Criação”, como João Paulo II o chama —“ganha corpo na humanidade individual de Cristo e se une de alguma forma a toda a realidade do homem”. Nossa natureza não é a de uma engrenagem minúscula num coletivo sem identidade, e sim a de indivíduos numa relação com outro indivíduo, a Segunda Pessoa da Trindade. Esse é o ensinamento basilar da Cristandade e a hostilidade contra essa antropologia é o ensinamento basilar de Marx.

Eagleton quer fundir Cristianismo e Marxismo, mas para isso teria de fazer alterações tão profundas num ou noutro – obrigá-los a um “sacrifício tão radical” de seus ensinamentos essenciais – que o projeto inevitavelmente fracassará. Evocado pelo proletariado, campesinato, anawim ou qualquer outra coisa que o marxismo use, ele sempre buscará estrangular todos os seus concorrentes. Terry Eagleton propõe uma revolução mais amena, uma transição “tranquila” do catolicismo para o marxismo. Isso é teórica e teologicamente impossível, já que é algo sem precedentes na história. Qualquer “sacrifício radical” a outra coisa que não a lei de Deus levará a um banho de sangue e ao sofrimento humano, como sempre aconteceu em todos os lugares onde este projeto foi tentado.

Jason Morgan é pesquisador e escritor e mora em Chiba, Japão. Ele estuda história japonesa e norte-americana, política, direito japonês e filosofia.

Tradução de Paulo Polzonoff Jr.

©2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Tudo sobre:

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.