Não é segredo que, desde a pandemia, nos tornamos mais solitários. E que estamos cada vez mais desesperados para nos conectar com os outros. Também não é segredo que as redes sociais criaram um apetite por detalhes das vidas alheias que raramente podemos satisfazer. Este é o contexto perfeito para o sucesso de programas que nos convidam a ver a vida dos outros à distância: os reality shows.
Donald Trump não teria chegado à Casa Branca sem antes ter construído seu ethos no programa The Apprentice ["O Aprendiz"]; Kim Kardashian não teria assegurado uma fortuna de 1,8 bilhão de dólares sem ter nos contado sobre sua vida familiar em Keeping Up with the Kardashians ["Acompanhando os Kardashians"]; e ninguém saberia quem é Andrew Tate (não teríamos perdido grande coisa), se ele não tivesse participado na edição britânica de Big Brother. A menos que se viva completamente fora do radar, é impossível negar a influência que a "realidade" televisiva tem em nossa sociedade. A pergunta é: por que gostamos tanto desses programas?
Pode-se pensar que, afinal de contas, só alguém muito entediado com sua própria vida se sentaria às quintas-feiras à noite, com pipoca e um cobertor, para assistir a uma versão editada do dia a dia da esposa de Cristiano Ronaldo, ou de Tamara Falcó [aristocrata espanhola que é uma celebridade da TV do país], ou um grupo de jovens "testando" seu relacionamento em La isla de las tentaciones ["A ilha das tentações"]. Ou não. Aproximadamente 4 em cada 10 pessoas dizem consumir reality shows de algum tipo. Pode ser que esses 40% da população vivam vidas vazias, por que não, mas pode ser que por trás desse desejo de saber como os outros vivem não esteja apenas o tédio, mas também essa questão tão humana de como devemos viver nossas próprias vidas.
A arte de observar vidas alheias
É o que acredita a crítica literária Phyllis Rose. Em seu livro "Vidas Paralelas", um estudo de cinco casais que se casaram na era vitoriana, ela escreveu que "todos queremos desesperadamente informações sobre como os outros vivem suas vidas, porque queremos saber como viver a nossa. No entanto, nos ensinaram que esse desejo não é nada mais que uma curiosidade ilegítima".
Talvez a fofoca seja o primeiro degrau na escada da investigação moral, que leva ao conhecimento de nós mesmos
Isso é evidenciado, de fato, por algumas pesquisas. Segundo um estudo recente realizado pela consultoria Gitnux, 56% das pessoas que assistem à televisão acham que os reality shows são uma má influência para a sociedade.
No entanto, segundo Rose, "talvez a fofoca seja o início da investigação moral, o primeiro nível da escada platônica que leva ao conhecimento de nós mesmos". Por isso, ela argumenta que uma discussão sobre a saúde de um casamento deve ser levada tão a sério quanto qualquer outra sobre as eleições presidenciais. A primeira é muitas vezes vista como vil fofoca, mas ambas apontam para aspectos essenciais da sociedade e para a forma de ser gente em um tempo específico.
A ideia de que o cinema e a literatura podem provocar um efeito catártico (explorar nossas emoções e apontar para nós, por meio de seus personagens, um caminho para a virtude) não é nova. Remonta a Aristóteles, que destacou a capacidade das tragédias gregas de provocar a purgação emocional do público, à medida que este se identificava com os personagens.
A psicóloga María Cartagena, do centro de psicólogos Serendipia Psicología, explicou em declarações à Aceprensa que esta é também a razão mais clara pela qual as pessoas gostam tanto de realities: “Pode ser que o motivo principal pelo qual assistimos a este tipo de programa seja nos identificar, nos interessar, nos posicionar ou empatizar com alguns desses personagens que nos são apresentados”. Quando o reality show mostra o dia a dia de alguém, apontou a psicóloga, o espectador pode se colocar na situação que vê na televisão e avaliar o que faria, qual seria a melhor forma de agir naquele cenário.
Aqueles que gostam de assistir às brigas de Kourtney e Kim Kardashian talvez também tenham irmãs com quem brigam, e ver duas pessoas na mesma dinâmica familiar que a delas, ou pelo menos uma similar, pode fazer com que se sintam compreendidas, ou até ajudá-las a navegar, já com distanciamento, por suas relações de sororidade. E, mesmo que não tenham nada em comum com Georgina Rodríguez [influenciadora e modelo espanhola], protagonista de "Soy Georgina", é provável que observar seu dia a dia ensine algo sobre a experiência humana aos telespectadores, coloque-os na pele de outra pessoa e os convide a se conectar com ela.
Isso é, mutatis mutandis, o mesmo que acontece ao lermos bons romances. No entanto, a comparação entre estes (ou as tragédias gregas citadas anteriormente) e os reality shows tem, certamente, seus limites. Por um lado, a complexidade psicológica dos personagens que caracteriza quase todas as grandes narrativas (e a maioria das pessoas "reais") geralmente não ocorre na "reality TV", o que limita seu valor como radiografia social. Por outro, a função catártica das tragédias a que Aristóteles se refere se explica porque as tramas enfatizam a moralidade dos atos representados, de modo que o espectador se sinta necessariamente interpelado pessoalmente; isso também não é frequente nos reality shows, onde o tom predominante é muitas vezes frívolo.
Usar os outros como entretenimento
Há outra diferença óbvia entre ler um romance de Jane Austen e assistir a Tamara Falcó: la marquesa. Qual? Que Tamara é uma pessoa real, e que está vivendo ao mesmo tempo em que está sendo vista. Isso faz com que os reality shows convidem a uma maior conexão com o público, mas ao mesmo tempo representa um perigo: essas vidas reais são editadas posteriormente para criar uma narrativa cujo principal objetivo é ganhar o máximo de dinheiro possível, frequentemente às custas de distorcer, mercantilizar e objetificar uma pessoa. María Cartagena diz que, como as imagens que vemos serão determinantes para que nos prendamos ao programa (e que seja renovado por outra temporada), muitas vezes se falsifica "o comportamento e as reações originais" que o protagonista teria se não estivesse sendo gravado.
Os reality shows podem provocar que o espectador coisifique os protagonistas, transformando-os em objetos de consumo.
Por outro lado, frequentemente esses programas colocam seus protagonistas em situações extremas, emocionalmente devastadoras, para conseguir aquele “twist” no roteiro perfeito, o melhor gancho para o próximo episódio ou a cena de choro mais realista.
De fato, muitos programas, como Love is Blind ["O amor é cego"] ou The Bachelor ["O Solteirão"], foram processados por seus ex-astros, devido às condições de trabalho injustas em que foram filmados, ou até mesmo por supostos casos de racismo ou abusos sexuais. Nick Thompson, que participou da segunda temporada de Love is Blind (um “experimento social” no qual vários solteiros se conhecem separados por uma parede e se comprometem antes de se verem), denunciou ter sido vítima de “tortura psicológica e manipulação” por parte dos produtores do programa.
Além disso, ele diz, sua vida profissional foi arruinada: após aparecer no programa, foi demitido da empresa de software onde trabalhava, e agora ninguém lhe oferece emprego porque não o consideram alguém sério. Sua vida foi exposta para que todos pudessem analisá-la ou imitá-la, e por isso foi marcado com uma letra escarlate [referência ao livro de Nathaniel Hawthorne de 1850, em que pessoas ostracizadas são marcadas com uma letra "A" de cor escarlate]. No entanto, ele sabia perfeitamente no que estava se metendo, ao contrário do protagonista da distopia O Show de Truman. Mas, assim como este, suas emoções e experiências foram transformadas em um objeto de consumo para o público.
Radicalmente diferente foi a experiência de Donald Trump. O ex-presidente dos Estados Unidos ficou conhecido pelo grande público através do programa The Apprentice (2004-2011), onde várias pessoas competiam por uma posição em tempo integral como empregado do magnata americano. O editor-chefe das primeiras seis temporadas explicou em uma entrevista que o principal objetivo era “fazer Trump parecer bom: que fosse percebido como alguém rico, com legitimidade”. A verdade é que os traços que o caracterizavam no programa — sua tendência a humilhar os outros, gerar caos e conflitos, e também sua “franqueza” — foram as coisas que levaram muitos americanos a votar nele nas eleições de 2016, e que marcaram sua estadia na Casa Branca durante quatro anos.
Os reality shows refletem a sociedade… e a moldam
A telerrealidade funciona, em parte, como um espelho da sociedade, mas também como um molde. Não se sabe se o sucesso de The Apprentice deveu-se ao fato de que a sociedade americana já valorizava aqueles traços de personalidade que mais tarde viram refletidos em Trump, ou se foi o programa que os fez apreciá-los. O que se sabe é que os protagonistas desses programas muitas vezes se tornam arquétipos de como se supõe que deve ser um ser humano no século XXI, e acabam redefinindo, para toda uma geração, conceitos como amor, família ou ambição.
Outras vezes, a influência afeta questões mais do "dia a dia". Por exemplo, no momento em que Kim Kardashian começou a perder peso há um ano e meio, soaram os alarmes de que isso poderia levar a sociedade a glorificar novamente a extrema magreza. E, como já foi comentado na Aceprensa, não foi um exagero: pouco tempo depois, começou-se a falar do Ozempic.
Como dizíamos no início, não é segredo que desde a pandemia todos nos tornamos mais solitários. Nem que as redes sociais criaram em nós um apetite por conhecer os detalhes da vida dos outros. E, embora casos como os de Kardashian, Trump ou Nick Thompson mostrem que colocar vidas alheias no horário nobre tem sua utilidade (ensinam-nos o que valorizamos como sociedade e, inclusive, podem nos guiar no caminho para o autoconhecimento), seria importante que o desespero para conectar-se com os outros não nos impedisse de ver a humanidade de quem está na tela.
©2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.
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