O menino não reconhecia mais a voz de sua mãe. Muito magro e pálido, desaparecia no casaco de inverno. Na maior parte do tempo, comunicou-se com grunhidos e gritos, a linguagem de sua doença. Ele tropeçou enquanto caminhava, sem certeza do chão sob seus pés.
O pensamento da família é que Wang Yifei, de cinco anos, teria uma vida melhor. Para garantir boa sorte, eles se apoiaram nas tradições: certificaram-se que sua mãe caminhou pelas brasas no dia do casamento e que seu berço foi forrado com um pano branco, para afastar maus espíritos.
Mas Yifei ficou doente, como mais de 300 outras crianças em Dapu, cidade de 62 mil habitantes na província de Hunan, na China central. O menino teve perda de audição, fala prejudicada e também dificuldade em andar. Muitas outras crianças também tiveram problemas de memória, deficiência no crescimento, anemia e convulsões.
Os médicos diagnosticaram intoxicação por chumbo e apontaram como responsável uma fábrica das proximidades, a Materiais Químicos Meilun, produtora de pigmentos para tintas e pó de maquiagem. Exigindo que a fábrica se responsabilizasse pela intoxicação, dezenas de famílias indignadas prepararam uma ação contra ela.
Porém, em Dapu, como em grande parte das principais zonas rurais chinesas, a indústria química impera, já que é a fonte primordial de anos de crescimento econômico acima da média. Autoridades locais do Partido Comunista dependiam da Meilun e de outras indústrias para manter seus meios de subsistência e suas fortunas políticas. Já há um histórico de violações ambientais com a finalidade de manter as fábricas a todo vapor.
O pai de Yifei, Wang Jiaoyi, não previu a reação à ação. Primeiro, disse ele, seus colegas de trabalho na fazenda local alertaram que ele perderia o emprego como embalador de legumes se continuasse. Depois, capangas apareceram em sua casa para ameaçar sua família. Meses de pressão se passaram e Wang decidiu abandonar o processo.
"Não há como ganhar. Não há justiça por aqui", disse.
Faz uma década que as empresas dos países mais ricos exportaram aos mais pobres o negócio sujo da produção de substâncias perigosas. Hoje, a China é o maior fabricante mundial de produtos químicos industriais. Sozinha é responsável por um terço da produção global, segundo estimativas.
Porém, como o governo chinês promoveu um rápido crescimento do setor, também luta contra o impacto ambiental gerado. A indústria química vem sendo alertada para que supervisione a produção e obrigue a divulgação das substâncias fabricadas. Agências ambientais locais são politicamente fracas e com poucos funcionários. Mesmo quando as empresas reconhecem alguma responsabilidade pelo prejuízo à saúde pública, como a Meilun fez, as soluções apresentadas não atendem às necessidades das vítimas.
"É um anão regulamentando um gigante", disse Ma Jun, importante ambientalista chinês.
Com o presidente Xi Jinping no poder, o governo prometeu uma chance para as pessoas lutarem contra a situação. Declarando "guerra contra a poluição", o presidente promulgou uma lei, em 2015, que facilitaria a abertura de um processo contra empresas, forçando-as a cobrir as despesas com a limpeza dos bairros. A lei permitiria que ONGs processassem os poluidores com base no interesse público. Ambientalistas consideraram isso um avanço.
Contudo, o progresso é limitado. Nos tribunais chineses, o Partido Comunista controla as decisões dos juízes e rotineiramente decide sobre os casos consultando autoridades que têm interesse político e financeiro no resultado. A polícia, a mando de figurões locais, muitas vezes assedia advogados e ativistas na esperança que desistam dos casos, dizem os defensores. Além disso, o governo é quem decide quais serão as ONGs que podem ou não processar judicialmente em nome do interesse público.
Maus Sinais
Funcionários da escola elementar de Dapu estavam assustados. As crianças mostravam sinais de hiperatividade e perda de memória em ritmo alarmante. Os professores passaram horas ensinando a seus alunos Geografia e Matemática, mas na manhã seguinte, muitos pareciam ter esquecido o conteúdo passado.
Em busca de respostas, os pais levaram seus filhos aos hospitais da capital da província de Changsha e de Xangai, a 965 quilômetros de distância. Os médicos pediram exames e descobriram um padrão: as crianças tinham altos níveis de chumbo no sangue. Até março de 2014, a intoxicação por chumbo havia sido diagnosticada em mais de 300 delas.
Durante anos, os habitantes acusaram Meilun de poluir a cidade. A fábrica ficava no meio de um trecho densamente povoado com casas, mercados e arrozais.
Quando os moradores de Dapu questionaram a credibilidade da permissão que a Meilun tinha para operar tão perto de casas e escolas, autoridades locais contestaram. Anteriormente uma fábrica estatal, a Meilun era uma das maiores empregadoras da cidade, com mais de 100 trabalhadores no seu auge, gerando centenas de milhares de dólares em receitas fiscais.
Com o crescimento da revolta popular, a Televisão Central da China, emissora mais influente do estado, levou ao ar uma reportagem mostrando os problemas em Dapu, dando destaque aos estudantes que se queixavam de dores no estômago e náuseas.
Em um segmento da reportagem, Su Genglin, chefe de governo de Dapu, disse que os estudantes podem ter se envenenado por mastigarem seus lápis – que contêm grafite, não chumbo.
A declaração provocou indignação popular e forçou a fábrica a interromper sua produção.
No entanto, Su manteve seu cargo. A área continuou altamente tóxica, como mostraram os testes promovidos por ativistas ambientais locais. Também não havia nenhum plano para limpá-la. Muitas crianças continuaram com os sintomas relacionados à intoxicação. O governo ofereceu leite gratuito para tratá-las, sugerindo incorretamente que o alimento teria capacidade de limpar o chumbo do corpo.
Em uma manhã, Mao Baozhu, de 63 anos, cuidou de seu neto, que sofria dores de estômago crônicas e perda de memória. Eles viviam do outro lado da rua da antiga fábrica Meilun e os testes mostraram que o chumbo no sangue do menino era seis vezes maior do que o limite de segurança internacionalmente estipulado, um dos piores casos em Dapu.
Mao disse que, quando era jovem, caminhava em meio a muitos cedros. Agora, a terra estava devastada, coberta com tocos de árvores e arbustos de jasmim sem cheiro. Ela segurou a mão do neto e disse: "Esta não é a vida que imaginávamos".
Intimidando as famílias
O julgamento estava prestes a começar e Dai Renhui estava ansioso. Ele dedicou sua carreira à defesa das vítimas da poluição. Mas poucas vezes se encontrou em um caso tão controverso quanto o processo de poluição por chumbo de Dapu.
Mesmo antes de Dai assumir o caso, a Meilun travou uma campanha para intimidar as famílias das crianças doentes, de acordo com os moradores de Dapu. No fim da tarde, grupos de homens apareciam avisando aos moradores que eles perderiam seus empregos ou poderiam até enfrentar violência se continuassem com o processo. Algumas famílias afirmaram que eles ofereciam subornos de US$1.500 para quem se retirasse do caso.
Em março de 2015, quando Dai foi ao tribunal, 40 pessoas já haviam deixado a ação de lado. Apenas 13 permaneceram.
Eles queriam mais de US$300 mil da Meilun para pagar o tratamento médico de 13 crianças contaminadas com altos níveis de chumbo no sangue.
No tribunal, os advogados da Meilun se mexeram para anular o julgamento. Questionaram a existência de documentação apropriada para provar que as crianças realmente residiam nas proximidades da fábrica, apesar de seus familiares viverem lá há décadas.
Vitória com pouca recompensa
Mao, cujo neto foi intoxicado por chumbo, esforçou-se para entender os números que via.
O tribunal do Condado de Gangding decidiu, no ano passado, que a Meilun foi responsável pela grave intoxicação de apenas duas das 13 crianças que tiveram seus casos julgados. Uma das duas era o neto de Mao. Contudo, foi decidido que a empresa pagaria a ela e aos parentes da outra criança somente 13 mil renminbi, o equivalente a U$1.900.
O dinheiro foi suficiente para pagar os honorários do advogado e o custo da coleta de provas, disse Mao. Não chegou nem perto de cobrir as contas médicas. As outras famílias não ganharam nada.
Em abril, um outro tribunal de Hengdong concordou em ouvir o caso novamente. Ainda assim, Mao estava apreensiva com o resultado. Acreditava que seria o mesmo.
"Às vezes, perco a esperança e sinto que isso nunca vai acabar. Ninguém quer assumir a responsabilidade pelo que aconteceu com nossas crianças", finalizou ela.
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