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Professor de criação literária há 34 anos, Luiz Antonio de Assis Brasil reúne sua vasta experiência em "Escrever ficção - um manual de criação literária".
Professor de criação literária há 34 anos, Luiz Antonio de Assis Brasil reúne sua vasta experiência em “Escrever ficção”| Foto: Douglas Machado/ Divulgação

O escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, que há 34 anos conduz a Oficina de Criação Literária da Escola de Humanidades da PUC-RS, é bem preparado para discorrer sobre o turbulento universo literário — tanto sobre a prática da escrita em si quanto as questões que a orbitam, como a necessidade urgente de atenção que assola o século 21. “Muitos caem na armadilha da fama instantânea”, reflete Assis Brasil na entrevista a seguir.

A experiência que ele reuniu ao longo de mais de três décadas como professor, além de também ser autor de 20 livros, rendeu-lhe neste ano a publicação de Escrever ficção — Um manual de criação literária. Elaborado com a colaboração de um de seus ex-alunos, o também escritor e professor Luís Roberto Amabile, essa espécie de guia para a criação de romances e novelas passeia por todos os meandros técnicos do fazer literário — da importância das personagens à delicada questão do estilo, passando pelo foco narrativo e o uso do tempo e espaço na ficção.

Em nove capítulos bem delimitados e utilizando trechos de livros de escritores consagrados para embasar a argumentação, Assis Brasil fornece um material acessível aos aspirantes. No último capítulo, aliás, ele vai além dos exemplos e entrega ao leitor “um guia para conduzir você em meio à selva”, oferecendo um roteiro para a escrita de um romance linear.

Aos que desejam se embrenhar nessa “luta contra a morte e contra o Nada” através da escrita, por mais que seja “uma enorme tolice” tentar contornar nossa mortalidade e que vivamos numa época “em que nada pode durar mais do que um clique”, o autor de O inverno e depois (2016) e A margem imóvel do rio (2003), entre outros, deixa um alerta: “Não há mais espaço para escritores de fim de semana”.

O texto de abertura de Escrever ficção alerta: “antes de pensar em sucesso, pense em ser competente”. A era da internet — com a facilidade para se compartilhar conteúdo, a superexposição e glamourização generalizada — mudou a forma que os jovens enxergam o fazer literário?

Sim, inevitável. Muitos caem na armadilha da fama instantânea, que, naturalmente, desaparece no ano seguinte. As redes sociais estimulam esse equívoco, com expressões que denotam uma atitude novidadeira e voraz — “quem é o cara do momento?”, “o que o pessoal está lendo hoje?”. Isso é tão trágico quanto perverso. Já vi pessoas nitidamente vocacionadas que se perderam nos faits-divers da vida literária e tornaram-se personagens de si mesmos, contaminados pelo que chamo, de brincadeira, de síndrome de Rimbaud. No sentido contrário, permanecem vivos apenas aqueles que consideram a literatura como atividade profissional — e as profissões, como sabemos, exigem pessoas competentes, que dedicam o melhor de seu tempo e poder intelectual a sua atividade. Não há mais espaço para escritores de fim de semana. E a competência não impedirá ninguém de ganhar o Nobel. Isso nos conduz a outro dado: nunca os jovens escritores estiveram tão preocupados com a forma — e isso a ponto de, por vezes, “esquecerem” a matéria humana.

No manual, sugere-se que o ficcionista tem, em alguma medida, a noção de que sua literatura resistirá para além de sua existência física. Seria o escritor uma espécie de megalomaníaco lutando contra a mortalidade?

Não sei se é megalomania, mas talvez seja a simples expressão de um sentimento partilhado por toda humanidade, que é a luta contra a morte e contra o Nada. Para superá-los, as pessoas engendram mil artifícios, sabendo de antemão que é uma batalha perdida. Mas não custa tentar — não fosse assim, não haveria o D. Quixote[do espanhol Miguel de Cervantes], nem o quarteto A dissonância, nem o Taj Mahal. Assim eu explico o porquê das tantas obras que alguém pode publicar. Cada uma delas representa o desejo de escrever a obra perfeita, que conferirá a imortalidade a seu autor. O problema já foi expresso pelo jovem príncipe da Dinamarca: ninguém deseja ir logo para a quietude do “lado de lá”, por desconhecer o que vai encontrar. E mais, digo eu, ninguém deseja ir no anonimato. E por isso “lutamos, mal rompe a manhã”, para construirmos uma impossível ponte com alguma transcendência que nos garanta certa notoriedade. Uma enorme tolice.

O manual sugere que o ficcionista precisa de muita vivência, e são citados casos de escritores que versaram sobre o que conheciam — Hemingway e as touradas, Bukowski e o álcool. A academia, porém, faz sempre questão de separar autor e obra. Como enxerga a aproximação acadêmica da literatura?

Todoróv tem uma obra preciosa: A literatura em perigo. Dentre outras coisas — especialmente os equívocos dos epígonos do Estruturalismo, movimento que ajudou a acalentar —, ele trata do tipo de literatura que fazem os escritores franceses da atualidade. Para ele, há três categorias: os que são metralhadoras giratórias e nada constroem, os que escrevem em torno do próprio umbigo e os que escrevem para serem lidos na universidade. Uma vez, em conversa com o próprio Todoróv, perguntei-lhe se isso acontecia apenas com os escritores franceses; ele sorriu discretamente, muito civilizado, e disse “penso que não...”. Acho que ele está certo, passe seu natural exagero reducionista. Mas observo com curiosidade certos setores da academia prestigiarem justamente os textos escritos para serem lidos na própria academia. Claro, é algo minoritário. No geral, prepondera um bem-vindo multiculturalismo e uma atenção às questões de gênero e etnia, que utiliza teóricos dessas vertentes.

“Um ficcionista escrevendo representa o momento mais solitário e completo que alguém pode conceber” é o que você registra a certa altura. Há algo de necessariamente melancólico no ofício do escritor?

A solidão não é necessariamente algo negativo; ao contrário. Para alguns, ela é uma condição para o ato de escrever. Claro, existe a melancolia errante, que nos assalta de inopino, tal como a fera na selva de James; mas são igualmente melancólicos jovens cheios de vida que se suicidam. É uma situação que não é exclusiva do escritor. Talvez ela seja mais visível porque o escritor tem um meio privilegiado de externá-la — e exagerá-la — com eficiência, que é a palavra. E com isso as pessoas se impressionam. Os próprios escritores são responsáveis por dar curso a essas lendas.

No manual se fala da “busca sem fim” por uma história melhor. É somente esse impulso perfeccionista que move o escritor? Como enxerga a história de Rimbaud e sua desistência precoce, por exemplo?

Curioso, Rimbaud está povoando esta entrevista... Assim posso explicar melhor: eu referia, acima, à irreverência de Rimbaud, à sua genialidade, à sua busca do brilho e da glória e no seu esgotar todas as possibilidades da vida. Já agora você fala na desistência de Rimbaud. Difícil fazer um diagnóstico à distância e no tempo, mas acho que o retirar-se da literatura deveu-se mais a uma questão profunda de alteração de personalidade, com pouco a ver com a literatura. Li muito material primário acerca de Rimbaud — seria muito longo dissertar agora — e tudo converge para essa conclusão. Contudo, é arrepiante pensar que, talvez, não tenha sido nada disso.

O livro trata do fazer literário, mas não entra necessariamente no mérito de por que escrever. Qual a motivação mais recorrente que você observou nesses 34 anos como professor? E qual sua visão pessoal sobre?

Há uma vontade geral de “ser escritor”. É difícil especular muito além disso, mas eu não estaria demasiado longe da verdade se dissesse que o motivo inicial passa pelo desejo de reconhecimento perante as pessoas de sua geração, passa por algum narcisismo, e, junto, pelo algo de inconformidade com o destino que eventualmente desenharam para si mesmos e que envolve uma “carreira séria”, isto é, que dá dinheiro. Com o amadurecimento pessoal e literário surgem “outros motivos”, quiçá mais ligados às interrogações de natureza existencial ou social; tipicamente, é a preocupação com a finitude e a morte, de que falei acima. Quero dizer: é possível que alguém comece escrever por vaidade; no decorrer dos anos isso se altera, e a literatura passa a ser uma tentativa de explicar-se a si mesmo e entender o seu destino — e aí ela se torna indeclinável, um precário escaler do Titanic, independentemente da maior ou menor receptividade da obra.

Fala-se dos “ficcionistas que duram uma temporada e no ano seguinte são substituídos”. Vemos isso com bastante frequência. O mercado editorial caminhou para isso ou, até onde você vê, sempre foi assim?

Não sei se esse é um fenômeno restrito à literatura, nem sei se é possível atribuir o fenômeno ao mercado editorial. Penso ser o reflexo do nosso Zeitgeist, necessariamente atarantado, fugaz e frívolo, em que nada pode durar mais do que um clique. Assim se explica a perversidade que está embutida na expressão “escritor da temporada”. Quem cai nessa armadilha tem frustração à vista. E muita gente boa cai nela, vivendo o resto da vida num vale de lágrimas e ressentimento. No meio disso tudo, o melhor a fazer é manter o foco, gastando suas energias em qualificar-se como profissional da escrita.

Pode apontar uma característica em comum nos seus alunos que mais se destacaram?

Não só nos que mais se destacaram: vejo, neles, algo em comum, que é o rigor e a qualidade textual.

Algum manual de criação literária teve influência na sua própria formação como escritor ou professor?

Não havia manuais, pelo menos no Brasil. Os escritores da minha geração aprenderam no corpo a corpo da leitura intencionada, quer dizer, não era leitura “apenas” por prazer, mas nesse ato estava incluído, também, um enorme desejo de saber mais acerca dos recursos utilizados pelos autores que admirávamos. Era, por assim dizer, uma leitura — e, principalmente, releituras — de compromisso. Digamos que era uma espécie de formação extracurricular. Muito ganho, claro, mas, também, muito tempo gasto para se chegar a uma descoberta técnica, quando hoje isso é bem mais expedito, na frequência de um laboratório de texto ou na leitura de um manual.

Aprecia-se menos a ficção quanto mais se compreende sua mecânica?

Muito ao contrário. Aprecia-se melhor o que se conhece, pois com isso é beneficiada não apenas nossa sensibilidade, mas também nossa razão — duplo ganho. E você já percebeu que aqui estou, descaradamente, repetindo o ideal do homem iluminista. O conhecer conduz a uma forte dose de prazer estético. Por isso é que o gosto se transforma e se refina. Alguém pode começar pelas estrondosas sinfonias de Beethoven e terminar nas peças para piano de Erik Satie. Basta realizar a transposição para a literatura — e só não dou um exemplo para não correr risco de morte.

Os clássicos seguem imprescindíveis para a formação de um escritor? Observou alguma mudança radical na visão de seus alunos após a explosão da “pós-modernidade”, com autores como David Foster Wallace, Thomas Pynchon, Don DeLillo?

Esses são ótimos autores, que meus alunos leem e eu leio. Estou, porém, num estágio em que não mais me satisfaz a díade opositiva “clássicos” e “não clássicos”. Mas não quero ser cínico, querendo inventar a roda e passá-la por novidade. Se você pensa em clássicos como certos autores do passado que ainda são lidos — eu aceito a redução ontológica — prefiro sugerir aos meus alunos que os leiam ad hoc. Um excelente texto contemporâneo pode ficcionalizar a personagem Agamêmnon, por exemplo; nesse caso, então proponho a leitura da tragédia de Ésquilo. Nem precisa haver uma relação escancarada como essa. O link pode acontecer num clima subliminar, no modo de contar a história ou na percepção da intimidade das personagens. Lygia Fagundes Telles pode me induzir a indicar as irmãs Brontë, e assim por diante. Simples assim.

Observa alguma temática constante no imaginário de seus alunos a partir do século 21?

Passado o furor do gênero autoficcional, vitimado por sua própria indefinição — como bem assinala a professora catalã Anna Caballé —, percebo que os alunos atuais passam a olhar para os lados, e, junto às indagações introspectivas referidas, ressurgem as preocupações de natureza social e que envolvam os outros na forma de troca, não mais de imposição da voz autocrática da personagem central. Ressurgem os textos em terceira pessoa, que estavam empoeirados nos armários da literatura. Mas atenção: ressurgem, sim, mas com um caráter sagazmente paródicos de si mesmos.

O escritor norte-americano David Foster Wallace, que também foi professor de escrita criativa, afirmou que o clichê se mostra real: aprende-se mais com os alunos do que se ensina. Você compartilha dessa visão?

É um clichê, e uma frase de efeito que assim deve ser tratada. Se isso acontecesse, eu me sentaria entre os alunos e um deles dava aula. Não sei se a turma ficaria agradada desse esquema. Posso entender o dito brejeiro de Wallace como um exagero, isso sim. Nesse espírito, entretanto, posso dizer que, a uma observação de um aluno, eu posso me dar conta de algum pormenor que me havia passado em branco em minha própria literatura. Quase sempre se trata de um material riquíssimo e não raramente, brilhante.

No capítulo 9 você comenta sobre o sonho geral de se escrever um romance. Por que acha que é especificamente esse gênero que contamina o imaginário popular? Ainda: existe uma espécie de “preconceito” com o conto, como se fosse uma narrativa de menor valor?

Sim, existe um pré-conceito. A bem falar a verdade, o conto é uma proposta sofisticadíssima, quase sempre mais sofisticada do que a do romance. Mas é um gênero pouco valorizado por duas razões: pela sua pequena dimensão em número de palavras e porque o bom conto, especialmente o conto contemporâneo, exige muito do leitor, em termos de sagacidade e percepção de seu subtexto. Sou romancista, e por isso posso dizer sem que me atirem pedras: o romance, fora os experimentais, “é mais fácil” do que o conto. Para ler e para escrever.

Na conclusão do manual, lê-se: “caso você tenha aprendido alguma coisa útil neste livro, você só será ficcionista por inteiro quando o tiver apagado da memória”. Em última instância, trata-se de absorver as “regras” somente para saber como corretamente descartá-las e, daí, realizar o excepcional?

Sim. A técnica, com o tempo, deve tornar-se invisível. E isso só se consegue caso ela se integre entranhadamente ao nosso modo de escrever. Com esse instrumental assimilado e absorvido, podemos nos aventurar a todas as experiências literárias, inclusive aquelas que são disjuntivas em relação à “boa” técnica. Se assim não acontecesse, ainda escreveríamos com o estilo de Homero.

© 2019 Rascunho. Publicado com permissão

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